sábado, abril 30, 2022

Sábado, 30.

Toda a sorte de armamento bélico converge para a Ucrânia. Parte da NATO e do Ocidente num envolvimento de retaguarda que garanta a vitória a Zelensky. A NATO não se expõe directamente, mas está nas costas dos infelizes ucranianos. Putin mandou dizer que utilizará acções relâmpago contra os países que ajudarem Kiev. A ver vamos como tudo isto vai terminar. 

         - Entretanto, os muros altos do Kremlin vão abrindo brechas. Não deve ser por acaso que uma série de mortes de oligarcas russos aconteceram neste último mês. Sergey Protosenya, de 55 anos, executivo da empresa de gás da Rússia, foi encontrado morto, na sua mansão, em Espanha, por enforcamento. Com ele estavam também os cadáveres da mulher e da filha de 16 anos, ambas esfaqueadas. A fortuna do senhor, estava avaliada em 400 milhões de euros. Vladislav Avaev, outrora vice presidente da Gazprombank, e antigo ministro, foi descoberto morto no seu apartamento, em Moscovo, e a seu lado a mulher e a filha. Os três foram baleados e a arma foi deixada ao lado do corpo do oligarca e o apartamento trancado por dentro. Em Janeiro, o director da Gazprom, Leomid Schulman, de 60 anos, foi visto morto na casa de banho da sua residência em São Petersburgo. Uma carta apontava para suicídio. Seguiu-se Alexander Tyulyakov, de 61 anos, vice-director da Gazprom, e o magnata do petróleo Mikhail Watford, de 66 anos, ambos enforcados, um na região de São Petersburgo, outro nos subúrbios de Londres. Por último, Vasily Melnikov, antigo funcionário duma empresa de equipamentos médicos, achado morto ao lado da mulher e dos dois filhos de 4 e 10 anos, no seu apartamento de Nizhny Novgorod sem vestígios de luta ou arrombamento. Estas mortes sinistras e implacáveis, de que o ditador é useiro e vezeiro, seguem na linha do historial da nação russa ao longo dos séculos. O país sempre foi governado por loucos, sanguinários e déspotas. A vida humana nunca contou para imperadores, czares e bolcheviques. 

         - Até me custa falar do dia auspicioso e feliz que se espreguiçou pelo campo. Do céu descia bem-estar, luz quente, silêncio flutuante, paz jovial. Fui ao mercado dos pequenos agricultores e voltei para casa começando a preparar a abertura do terraço. O Black, feliz, dormitava sobre a tijoleira à sombra da mesa redonda onde acontecem refeições e trabalho sob o grande guarda-sol. Depois do almoço, sentei-me debaixo do telheiro a ler e deu-me o sono devido ao aconchego do calor que não feria. Devo ter dormido uns quinze minutos. De seguida veio a Piedade fazer arroz doce (ela faz como ninguém) e eu quis estar a seu lado para aprender. A quantidade deu uma terrina para mim e duas tigelas que ela levou. Falar assim encolhe-me de constrangimento, quando não muito longe milhares de pessoas e cidades são atacadas, mortas e destruídas por um fanático. 


sexta-feira, abril 29, 2022

Sexta, 29.

Eis o princípio que cabe em todas as religiões e devia compor os alicerces das nossas vidas: “Para alguém que se tenha preparado e praticado, a morte chega não como uma derrota mas como um triunfo, o momento supremo e mais glorioso da vida.” Palavras que fecham o primeiro capítulo de O Livro Tibetano da Vida e da Morte de Sogyal Rinpoche. 

         - O cúmulo do desafio materializado no medo de uma guerra nuclear, a experiência-sondagem à escala mundial, foi o ensaio que Putin levou a cabo ao fazer explodir três engenhos balísticos sobre o centro de Kiev, no momento em que a conferência entre Guterres e Zelensky terminou. Uma terceira Guerra Mundial parece-me inevitável. Tive pena em ver António Guterres tão fragilizado. Ele e as Nações Unidas que representa. 

         - Fui à Brasileira encontrar-me com os de costume. Fui para ver o Vergílio que me desafiou a ir lá estar um bocado à conversa. No grupo estava o João com quem acabei por subir ao meu antigo bairro (Príncipe Real) para abancarmos no restaurante onde ia quando morei em S. Marçal. Um arroz, magnífico, de cabidela de galo, que eu repeti, para espanto do Corregedor habituado a ver-me comer de uma forma simbólica. Boa conversa, nada a ver com a do café que meteu confronto entre Putin e Biden ou, melhor dizendo, entre a Ucrânia e a Rússia, e me levou a defender Zelensky. João trouxe à disputa o comportamento dos EUA com Israel, Afeganistão, Iraque e em tantas outras partes do mundo onde, em verdade, a América foi tão assassina como a Rússia de Putin. Mas o que me preocupa e era tema da conversa: a Ucrânia invadida pelos russos. E aí todos tropeçam, incluído Jerónimo de Sousa. 


quinta-feira, abril 28, 2022

Quinta, 28.

Como era de esperar, António Guterres foi enxovalhado pelo ditador que o recebeu no seu bunker e desconversou com ele a seis metros de distância, numa mesa gélida, oval, sob a sua majestosa figura de czar nouvelle vague. Ali só poderá ser assassinado por um daqueles dois generais que estavam próximos dele outro dia (que honra!) e a quem ele deu ordem para prepararem a artilharia nuclear. Nunca mais esqueci o olhar do bolachudo que ombreava com o imperador: terrível, encerrando tudo e o mais que cada um de nós possa pensar, frio como aço, malévolo, e ao mesmo tempo distante, flutuante, como se confirmasse sem, contudo, o fazer... Que seita! 

         - Ontem era suposto ter sido a derradeira sessão no dentista., a que me devolveria o sorriso aberto no meu rosto que toda a gente me assegura não ter mudado (como se eu não tivesse olhos na cara). De facto, a fieira de dentes com os pequenos defeitos dos naturais, sem os pôr, vi no espelho da memória a obra de arte que o mecânico .produziu. O pior foi o que veio a seguir. Para os colocar, tive de passar por um processo que durou hora e meia e me causou grande sofrimento. A dada altura, depois de diversos ensaios, a prótese conheceu o destinatário e o espelho veio ao me encontro e eu confirmei estavam parecidos com os que pedi para me extrair. Seguiu-se uma série de gestos para que os implantes recebessem umas esponjas mínimas com quatro cores, começando pela cor preta que eu deveria usar por duas semanas. Para que a coisa se fixasse, o técnico utilizou uma espécie de líquido abrasivo que servia para queimar o que fora introduzido no topo e fixaria a ligação à prótese. O problema, foi retirar a fileira dos lindos dentes: dois médicos, duas assistentes, o técnico, quase montaram sobre mim na tentativa de obter o que não queria sair. Todo este ,desassossego e momentos de pavor por parte da equipa, comigo a gemer e a dizer que deixassem ficar para sempre a prótese. Até que é chamada uma menina por sinal muito gira e sensível. Assim que ela pôs as mãos na minha delicada boca, senti que estava diante de alguém profissional, que sabia do ofício: não me fez doer, pegou na prótese de uma maneira diferente, muito preocupada comigo, e, de súbito, eu senti o lado esquerdo do aparelho mexer. Mais um espaço para eu descansar e a seguir a duas ou três tentativas, a beleza saiu. Alívio de toda a equipa, da minha parte nem dá para falar. São substituídas as borrachas negras por rosas (as escuras foram, entretanto, deterioradas). Voltou tudo ao princípio, mas desta vez a prótese entrou e saiu bem. A bela moça nem médica era. Aconselhei-a a tirar o curso, respondeu-me: “eu só gosto de ajudar”. 

Saí com outro sorriso, sem dores, disposto a abraçar a tarde que estava fúlgida. Fui, imprevistamente, invadido por uma felicidade crua, que me levava a cantar, a sorrir a quem se cruzava comigo, e quando me sentei perto das três para experimentar os novos dentes, estava esfuziante. Restava a apreensão de os escovar depois do jantar, mas tudo correu bem. Ufa! 

         - Comecei a limpar a erva em frente a casa. Calor. Prazer. Sentimento de paz, serenidade, murmúrios interiores vindos do horizonte vasto.


terça-feira, abril 26, 2022

Terça, 26.

Cria tanto falar da overdose do advérbio de lugar “aqui” que substituiu o termo “resiliência” e outros mimos linguísticos que são hoje bandeira de bem falar a nossa língua, apregoados por políticos diplomados nos mais diversos cursos, senhores jornalistas, meninas prendadas, naturalmente, psicólogas, apresentadoras disto e daquilo, rapazes com um corpinho adelgaçado que pulam nos ecrãs de televisão e arrasam com os seus trejeitos a língua portuguesa. Mas valerá a pena num mundo onde reina a frivolidade e a ignorância? 

         - Meti ombros à tarefa de reler em tradução portuguesa o ensaio O Livro Tibetano da Vida e da Morte de Sogyal Rinpoche. Logo na apresentação, Dalai Lama quase esquecido no Ocidente depois de ter sido corrido pelos chineses do seu mosteiro de Lhasa, diz: “Se desejamos morrer bem, também temos de aprender a viver bem: para termos a esperança de uma morte pacífica, temos de cultivar a paz na nossa mente e no nosso estilo de vida.” No fim das 570 páginas saberei se fiquei mais próximo da paz que sua Santidade reclama. O problema da filosofia tibetana é que todos dependemos das forças “cármicas” no momento da nossa morte e estas influenciam a qualidade do nosso próximo renascimento. Bref

         - A minha admiração está colada à governação de Boris Johnson e à sua luta pela liberdade e a democracia. Foi uma pena a UE ter perdido o Reino Unido que é de todos os países da União aquele que melhor e mais inteligentemente se bate pela liberdade. Desde a primeira hora, juntou-se aos ucranianos e por eles tem feito uma campanha real, sem hipocrisia, distinguindo-se dos de mais pela lucidez e coragem. Agora acrescentou ao muito que tem levado a cabo, que fossem abolidas tarifas sobre os produtos importados da Ucrânia. Todas as tarifas sobre as mercadorias importadas da Ucrânia serão reduzidas a zero e todas as quotas removidas em virtude de um acordo de livre comércio, como apoio económico à Ucrânia. Quando Boris Johnson se encontrou em Kiev com Voodimir Zelensky, este pediu-lhe que liberalizasse as tarifas e o apoio à economia do país. Está feito. Nada de patuá, acção imediata. Os outros vão reunir, almoçar, viajar por aqui e por ali, blá blá pelas noites dentro e o mais que não digo, mas diz sem papas na boca Eugénio Lisboa. A nossa imprensa sabichona e independente, acusa-o de merdelhices, pecadilhos que são próprios da sua natureza irreverente e que eu não dou importância nenhuma – antes o saúdo.  

         - A nova estratégia é esta: amedronta-se com a Terceira Guerra Mundial, como fez hoje o vitalício e riquíssimo à conta da pobreza extrema dos russos, ministro dos Negócios Estrangeiros. As mentiras e subterfúgios são mais que muitos e não se pode confiar naquela gente. Primeiro, foi a parada em torno da Ucrânia ditos exercícios normais, antes tinha sido a invasão da Crimeia, depois as repúblicas ditas independentes mas sem cheta para se governarem... Todo este crime a que somos contra vontade compelidos a assistir em directo, foi calculado desde 2014. Putin e seus comparsas, cuidaram de arranjar sistemas alternativos (o Mir, por exemplo), que levaram a Visa e Mastercard a criar sistemas de pagamentos autónomos baseados na Rússia. É o que diz a autoridade na matéria, Ricardo Cabral. Seja como for, a inflação no final do ano não deve andar longe dos 60 por cento.   

         - O que é um dia perfeito? Duas páginas no romance, leituras depois do almoço, terminar de roçar a erva em torno da piscina e, aproveitando a gasolina que restou no depósito da Stihl, começar a limpar em frente à casa e ir até ao fundo do portão. Por sobre tudo isto, não ter posto os pés fora da quinta. Oh, supremo bem! 


segunda-feira, abril 25, 2022

Segunda, 25.

António Guterres decidiu sair do seu gabinete luxuoso para um giro de paz pela Turquia, Rússia e Ucrânia. Tarde e a más horas. Entretanto, milhares morreram, cidades foram destruídas, milhões foram obrigados a deixar as suas terras e enfrentar o exílio forçado, famílias inteiras separadas, caos, sangue e sofrimento por todo o lado. À hora a que ele optou por actuar enquanto Secretário-Geral das Nações Unidas, vai sofrer o vexame, puro e duro, de Putin que só conhece a violência e se está nas tintas para a ONU e outros organismos semelhantes. A passividade e ronceirice da Organização é revoltante. Milhares foram escolhidos para nos representar, milhares instalados na boa vida da diplomacia, entregaram-se ao vício, aos ganhos excessivos, e ao que diz Ernesto da Cal (ver 14 deste mês). 

         - Macron não pode cantar victória; quando muito Marine Le Pen pode saboreá-la porque subiu imenso desde o último escrutínio. Todavia, felizmente, foi ele o escolhido dos franceses de contrário teríamos na Europa um Trump de saias – o que seria um horror. 

         - Nem por isso a guerra parou. Apesar de a Igreja ortodoxa pedir tréguas durante a Semana Santa, Putin rejeitou e pelo contrário atacou com mais intensidade. O revoltante de todo este conflito e merece ser olhado com olhos de terror e espanto, revolta e desconfiança, é que as armas que matam foram vendidas à Rússia pela França e a Alemanha que contornaram durante anos o embargo que ficou estabelecido. Eu se estivesse no lugar de Zelensky, obrigava os dois países a assumir as despesas de reconstrução do país.    

         - Hoje não pude brincar ao “25 de Abril Sempre”. Ouvi vagamente o discurso de sua excelência o Presidente da República e pareceu-me uma peça de demagogia clara. Fazer depender a democracia dos militares de Abril, é transformar os portugueses em subordinados do Exército e suas figuras de proa. Tudo o que está errado e não foi corrigido com a democracia e vem do fascismo, continua a consumir o povo português, mas isso não diz respeito aos políticos, entretidos com a pompa e circunstância em que se transformou a data, com os salamaleques provincianos do “senhor doutor”, “senhor general”, “sua excelência” a torto e eito, num hemiciclo de cangalheiros, aperaltados como se tivessem saído da missa de domingo do dia de Todos os Santos.  

         - Não me diverti no 25 de Abril porque tive aqui muito trabalho e só se avança e produz riqueza com esforço e labuta e não com patuá. Deu-se o caso, embora tivesse dormido muito mal, a cabeça sempre num rodopio de fantasias, efabulações em construção e logo desfeitas, apesar disso, fiz duas horas de manhã a roçar erva em trono da piscina e mais hora e meia depois da leitura à tarde. Não ficou tudo concluído, mas saí satisfeito para um duche cansado e feliz. 

         - Estou numa fase de maus sonhos, depois de duas semanas de noites serenas com directas de sono de sete horas. As auroras são tenebrosas, tudo desagua nelas, inquietando-me, projectando-me para um futuro que não sei de onde vem e não carrega nada de luminoso. Felizmente depois, Deus ressuscita em mim o dia e tudo se harmoniza e a confiança instala-se. 


sábado, abril 23, 2022

Sábado, 23.

Quando conduzo é usual ouvir a 2. Como ainda não se calaram as loas (bem merecidas) a Eunice Muñoz, eis que sou brindado com o excerto radiofónico entre a colossal artista e o enorme Nicolau Breyner. Ela é telegrafista, ele o que se apresenta para lhe ditar o texto dirigido à namorada. A peça dura um bom bocado e pôs-me a rir às gargalhadas, as lágrimas a correrem-me cara abaixo, de tal modo que tive de encostar o carro à berma,  porque tanto ela como ele são excepcionais comediantes e imprimem naquele pedaço de prosa bem esgalhada, um imemoriável e saboroso talento. Nada a ver com os cómicos de hoje (salvo algumas excepções), nem na representação nem na construção da personagem nem na criação dos textos. Não são comediantes, são cómicos que exprimem o que são como pessoas, quero dizer a sua imensa iliteracia, a facilidade, o produto-cliché, o débito sem arte, a escolha dos temas vulgares para um público que em tudo se lhes assemelha, o copy e paste.  

         - Enfim, o que venho dizendo sobre Guterres ouço agora por todo o lado em uníssono. Ele não mudou e quem se der ao trabalho de ler o que escrevi quando tomou o cargo há cinco ou seis anos, verá que não mudei uma linha. Com pena minha, porque gosto do homem, acho-o honesto na medida da honestidade dos políticos, quero dizer no blá blá corrente mas com mais firmeza de convicções.  

         - Em Mariupol, o número de corpos enterrados em 200 valas pode chegar aos dez mil, diz Ucrânia, a Rússia adianta outro número, cada um fazendo tábua rasa da verdade que devia orientar o bom governante. Mariupol ficou esventrada na sequência dos constantes bombardeamentos russos. Alguns órgãos de comunicação internacionais, dizem que as imagens de satélite parecem mostrar 200 valas comuns.

Imagens de satélite mostrando 200 valas comuns em Mariupol. Foto do Público. 

         - Acabo de chegar da fnac onde fui atraído por descontos prometidos de 50 por cento hoje dia do livro. Mentira. Não vi nada com essa percentagem, toda a livraria estava a 30 por cento. Mesmo assim, trouxe Jardim das Tormentas do mestre Aquilino Ribeiro, o segundo volume do Diário de Eugénio Lisboa e a tradução do monumental (570 p.) tratado tibetano do monge Sogyal Rinpoche que eu li há quinze anos na tradução francesa e me tocou tão profundamente que quero agora cotejar. 



 


sexta-feira, abril 22, 2022

Sexta, 22.

A denúncia da censura no tempo do Estado Novo (de Salazar a Caetano), à luz do olhar e da reflexão de hoje, parece ridícula e até inocente. Há centenas de demonstrações expostas na galeria do Diário de Notícias e é absolutamente indispensável conhecer o “Arquivo Ephemera” , não só enquanto testemunho de um regime, como de uma certa ingenuidade dos agentes (a maior parte oficiais das Forças Armadas) que o defendiam pela mordaça do pensamento e da liberdade de opinião. Eram os agentes da Censura, por quem passava tudo o que se escrevia, representava, filmava, proferia. Eles passavam horas infindas a ler atentamente livros, jornais, revistas, e nada lhes escapava que pudesse pôr em causa a filosofia fascista.  Para nós, João e eu, foi um revisitar de um mundo do qual fomos vítimas, num confronto desigual entre liberdade de expressão e controlo e mordaça do direito humano de concordarmos ou discordarmos. A dada altura eu disse ao Corregedor: “Sabes o meu primeiro censor foi o Saramago.” Aconteceu no Diário de Lisboa e depois no Diário de Notícias. O primeiro com artigos, o segundo com a notícia de um meeting onde eu havia falado e as minhas palavras foram deturpadas, retiradas do contexto, o que me enfureceu e me obrigou a enfrentá-lo no café Monte Carlo (episódio narrado algures nestas páginas). Quando acima falei em ingenuidade, referia-me aos pareceres dos censores. Muitos dos seus escritos, são tão ridículos, tão descontextualizados, que me deram vontade de rir e se o leitor se der ao trabalho de os ler durante a visita, confirmará o que quero dizer. É de louvar e agradecer a José Pacheco Pereira a sua paixão por um período sombrio da nossa história. É ele que persistentemente vai construindo a memória que foi o Estado Novo e servirá aos vindouros e nos põe a nós hoje de atalaia a todas as formas de censura, venham elas da direita ou da esquerda; do patrão atrasado mental ou do pdg despótico que obedece ao grande capital, indiferente à verdade dos factos e à dignidade humana. 

         - O PCP cava todos os dias a sua própria sepultura. Não tarda desaparecerá da cena político-partidária, reduzido a um punhado de agitadores. Bem sei que ele tem os sindicatos do seu lado, mas penso que essa forma de manobrar os trabalhadores - os mais jovens já não se deixam levar na onda “do nosso povo e da classe trabalhadora”. O Comité Central há muito que deveria ter sido renovado, varrida aquela ideia maluca de quem não é por nós é contra nós, substituído por gente nova, com ideias mais largas, arejadas, sem o sufoco do marxismo que formou Cunhal e a sua geração e deu em figuras sinistras como Estaline, Nikita Khrushchov, Brejnev, Putin – verdadeiros ditadores, assassinos que dizimaram milhões em proveito das suas teorias criminosas e desumanas. Não compreender ou entretecer teorias masoquistas relativamente ao que se passa na Ucrânia, tem qualquer coisa da área psicopatológica que urge tratar. Faltaram ao discurso da Zelensky na Assembleia da República com o argumento da paz; pura demagogia e insulto ao povo português que maioritariamente está com o martirizado povo ucraniano.   

         - Voltou o frio e a chuva. Estamos no fim de Abril e ainda aprecio o conforto da manta inglesa sobre os joelhos. E agora que ia embalado a dizimar a erva ruim, eis-me retido em casa a admirar através das janelas o trabalho já realizado. Em breve terei de ir a Badajoz (o João já se candidatou a acompanhar-me e quer ir mais além rever Sevilha) comprar um cortador de relva Stihl. É mais caro, mas vale o seu preço em duração, leveza, conforto e... beleza. Quanto ao preço, devo economizar cerca de 200 euros. Terminei o livro de José Milhazes com admiração e apreço pelo seu árduo trabalho. 

         - Uma última referência aos longos momentos com o João depois da visita à exposição “Proibido por Inconveniente”. Abancámos para um chá no café dois passos abaixo e ali ficámos, em plena Avenida da Liberdade, a ver gente de todas as nacionalidades a subir e a descer a célebre artéria. Pouco se falou de política, muito dos nossos tempos de jornalistas, e, sobretudo, o banho de felicidade que nos cobriu e é inexplicável porque traduz o entendimento de duas pessoas que se estimam e sabem o valor que esses momentos carregam para o interior de cada um de nós. “Por mim ficava aqui o resto da tarde”, dizia o João grande apreciador de boa conversa, desfrutador de cada instante que paralisa num sopro a analogia que enriquece o convívio. Regressei a casa já tarde. Comboios atulhados. Serão de quase três horas a escutar as mentiras de Macron e Le Pen.    


quarta-feira, abril 20, 2022

Quarta, 20.

Mas os horrores da guerra chamam-nos à realidade para um mundo em decomposição. Nada nem ninguém demove Putin dos seus crimes, do seu frio e calculado rumo de sofrimento e sangue, indo de par, de resto, com os seus antepassados, quando o poder era mais forte que os laços familiares. Ele aposta tudo agora em Donbass que foi onde tudo começou, mas as tropas ucranianas não cedem e até reconquistaram Marinka na província.  

         - Cavaco Silva ainda inquieta os fracos políticos que nos governam. Num artigo (decerto corrigido portuguesmente pela mulher), repete que Portugal não descola da cauda da Europa. É um panegírico cheio de raiva e ódio, todo ele deitado sobre o único tema que sempre o absorveu – a economia. As  pessoas jamais o interessaram e como bom contabilista que nunca deixou de ser, esquece-se que quando foi primeiro-ministro garantira que ia descolar Portugal desse lugar – promessa não cumprida. Pelo contrário (se bem me lembro) até descemos para o penúltimo posto. No entanto, tanto ele como a mulher, são devotos da Senhora de Fátima e a distinta esposa até coleciona presépios! Mas para Cavaco Jesus veio ao mundo para redimir as contas bancárias dos seus amigos e vizinhos ricaços... e quanto a isso estamos conversados.  

         - Por falar em personagens singulares da nossa história recente. Vale e Azevedo é uma delas. É aquilo a que se chama um gatuno simpático, que nos leva com o seu sorriso civilizado e doce. Vive à grande em Londres, toda a gente conhece a sua morada, mas ninguém o consegue localizar para o trazer de retorno à prisão. Oh, oh, como é fascinante ser português... e ladrão! 

         - Uma das melhores coisas (entre tantas outras) de o PS ter a maioria é esta: oferecer de mão beijada os bons lugares na administração pública pagos à americana. Veja-se o caso de João Leão. O ex-ministro das Finanças, para além de ter negociado o cargo de vice-reitor do ISCTE quando ainda era ministro, levou para o ISCTE uma verba de 5,2 milhões de euros do Orçamento do Estado por ele produzido e assinado. Homessa! Então não é de direito! Invejosos, é o que vocês são! 

         - Fui à exposição na companhia do João Corregedor sobre o tema da Censura no tempo do Estado Novo patente no rés-do-chão do Diário de Notícias. A ela voltarei amanhã. 

         - Ontem e hoje estivemos sob forte vendaval. Noite e dia rangeram as árvores, as portas e janelas e o Black. Eram rajadas fortes que pareciam passar por aqui para deixar uma mensagem que ninguém conseguiu decifrar, e abalavam com a mesma intensidade abrindo alas a outro aluvião ruidoso que rodopiava e partia também. Todavia, nada ficou como antes, qualquer coisa de indecifrável alterou o ar, o ambiente, os seres vivos, os animais e toda a atmosfera campestre habitualmente cordata e doce, foi tocada pela violência do inoportuno visitante. As fúrias da Natureza são formas esotéricas de nos anunciar o futuro-presente.  


terça-feira, abril 19, 2022

Terça, 19.

Estes últimos dois dias em estado de graça. Tudo o que neles entrou veio abençoado e ficou a aspergir em bênçãos cada minuto preenchido da gratidão de estar vivo: trabalho no romance, descoberta de pessoas sensíveis, recomeço das actividades no corte da relva e erva daninha, tudo sob a capa da paz interior, afagada ao silêncio que aqui é a minha bela e transcendente companhia, e nem esta tarde em Lisboa alcancei colocar os pés nas ruas, porque todo o meu corpo, com os seus 62 quilos, ondulava, cortava o espaço deixando um rasto de luz que encandeava o caminho... Estava literalmente fechado dentro de mim. Como se não existisse para os outros e muito menos para mim. A unidade cara a São Paulo – corpo e alma – cumpriu-se em plenitude e não há palavras que possam segurar a arquitectura de um ser que se passou inteiro (no sentido metafísico) para um mundo sem traços de identidade.  


sábado, abril 16, 2022

Sábado, 16.

Ainda não dou por certo que tenha sido o exército ucraniano que abalroou o estandarte do orgulho russo – o Moskva. Os americanos já confirmaram, mas eu não gosto de confiar neles por inteiro – há sempre em mim alguma reserva. Assim como não acredito que a tripulação se tenha toda salvo. Não há nenhuma prova disso, e sabemos como Putin respeita a natureza humana e mente sem vergonha. O que se sabe, é que a ira do fascista engrossou e desde ontem que os bombardeamentos não param. De outro modo, aquela de Putin proibir a entrada no país de Boris Johnson, só pode ser anedota para nos alegrar de tanta tragédia. Que eu saiba o primeiro-ministro do Reino Unido nunca teve desejos de passar férias num pais de regime ditatorial, ele que honra tão bem a tradição inglesa do amor à liberdade e à democracia. Penso até que já nem os oligarcas multimilionários que viviam em Inglaterra à grande e à francesa e Boris expulsou, não querem mais voltar para o país governado por aquele que eles defendem e foram por ele defendidos. 

         - A propósito, não acredito que a Rússia possua exército para atacar a Finlândia e a Suécia se estas duas nações aderirem à NATO como parece ser seu desejo. Os russos, como se prova, não têm capacidade para sair com dignidade da Ucrânia quanto mais de aqueles dois países nórdicos. Quanto ao armamento nuclear que dizem ir instalar ao longo dos mil e tal quilómetros de fronteira, é blague. O antigo primeiro-ministro finlandês, Alexander Stubb, disse ao Financial Times: “Desejo recordar com gentileza, que não há nada de novo. As armas nucleares já lá estão. Vamos parar de espalhar a propaganda de Moscovo.” E acrescenta para que se faça história: “A nossa adesão à NATO foi decidida no dia 24 de Fevereiro, quando a Rússia e Putin atacaram a Ucrânia.”   

         - Faleceu Eunice Muñoz. Conheci-a pessoalmente no tempo do António Barahona. Era um prazer falar com ela: discreta, gentil, sóbria de atitude, um sorriso no rosto como mancha de sol a iluminar-lhe a expressão, silenciosa também, ouvindo com atenção o que se dizia à sua volta. E nesse tempo borbulhavam ideias de todo o lado. Fui algumas vezes vê-la ao teatro e fui como toda a gente atraído pela magia da actiz extraordinária, assim por aqueles silêncios que paralisavam a sala, pelo espectáculo dentro do espectáculo que ela era. Paz à sua alma. 

         - O sábado é como de costume muito alvoroçado: encher a máquina de roupa, pô-la depois a secar ao sol, apanhá-la e dobrá-la para que a Piedade se ocupe de passá-la a ferro, cozinhar dois pratos para arquivo, ir ao mercado dos pequenos agricultores do Pinhal Novo, leitura e escrita. Não páro quieto. Nem à pequena sesta de 10 minutos tenho direito. Assim prendado como sou, quem me levar leva um diamante bem lapidado, com bónus suplementar: o coxinho, coitadinho! 


sexta-feira, abril 15, 2022

Sexta, 15.

A Rússia, Putin e o seu exército, são redondos mentirosos e não se pode confiar minimamente neles. Ontem perderam a maior jóia da coroa do Exército Russo: o Moskva. O navio de guerra afundou-se no mar Negro quando (dizem os russos) era rebocado devido a incêndio a bordo. Antes, a Ucrânia, tinha reivindicado o lançamento de dois mísseis Neptuno sobre o brinquedo do tempo da URSS que, naturalmente, Moscovo nega. Era uma autêntica cidade flutuante com 186 metros, tripulação de 500 operacionais, e tinha toda a tecnologia que lhe permitia reduzir à distância cidades a escombros. Se se confirmar que a operação de destruição foi obra do exército ucraniano, esta proeza contribui não só para o orgulho nacional, como para atrasar os planos de Putin. A tripulação salvou-se e os generais contactaram, via rádio, os soldados estacionados na zona costeira para que se rendessem; resposta destes: “Ó navio de guerra russo, vai-te foder.” Belo. Belíssimo. 

         - A questão é esta: enquanto os soldados ucranianos lutam por causas: o seu território, a liberdade, o futuro; os soldados russos, a maioria jovens sem experiência militar, são carne para canhão. Daí a sua raiva, o seu ódio íntimo a Putin, que descarregam sobre as mulheres, as crianças, violando-as, matando-as, pilhando as casas, deixando-as em estado impróprio de seres humanos, à sua passagem. Ou eu me engano muito, ou a Rússia vai repetir ali o seu vasto passado de impreparação para a guerra e Putin vergonhosamente derrotado numa batalha que julgava ser a feijões. 

         - A ONU, custa-me dizer, tem sido inexistente num conflito desta natureza. António Guterres revelou-se um Secretário-Geral fraco, indeciso, sem acção nem força. Deixou-se arrastar nos interesses dos mais fortes e há muito que devia estar na dianteira, inclusive com presença em Kiev. Tem feito muito mais Boris Johnson, mesmo (fraco também, mas ainda assim) Macron. 

         - Fernando Medina que está anafado e por isso perdeu aquela cara de bebé Nestlé, anunciou que não aumenta os vencimentos da função pública para que não haja mais inflação – era ipsis verbis o que dizia nas “Conversas em Família” Marcelo Caetano. Lembro-me bem. 

         - Que prazer, que prazer rever o João Biancard! O meu amigo arquitecto que projectou esta casa. Estivemos a pôr a vida em dia uma data de tempo e sempre como nos alvores da nossa amizade sob o entusiasmo desconcertante que então existia entre nós. Fez duas operações nestes últimos tempos, mas o ânimo, a boa disposição, não esmorece pese embora os 81 anos. Diz ser-lhe indiferente a morte, continuando a viver como um monarca retirado no seu belo e imenso château. E sempre só! Perguntei-lhe como é chegar aos oitenta. “Olha, nem sei que dizer. De que não gosto é que me alterem as rotinas, chateia-me ir à Lisboa, não consigo estar de pé muito tempo, não tenho paciência para a maior parte das coisas que me absorveram a vida.” Voilà o que te espera, ó jeune homme. 

         - Dia de autêntico Verão. A máquina pegou, enfim, embora só permitindo duas passagens em torno da piscina, depois amochou. E ainda bem. Porque saí alagado e cansado, devido à canícula que aqui se instalou. 


quinta-feira, abril 14, 2022

Quinta, 14.

É minha convicção (desde a invasão da Ucrânia), que tarde ou cedo, mais cedo que tarde, entraremos na Terceira Guerra Mundial. Com o passar das semanas e a agudização do conflito, esta minha impressão cimentou-se e é para mim hoje um facto consumado.  

         - Eu não gosto de quase nada que venha de Bruxelas, mas Eugénio Lisboa que foi Conselheiro Cultural na nossa embaixada em Londres, e, nessa condição, conheceu o pior (e o melhor) da fauna que vegeta nesses meios, diz a dada altura (Julho de 1990) sem papas na língua: “Segundo o Ernesto (trata-se de Ernesto Guerra da Cal, filólogo e escritor) o Parlamento Europeu está a tornar-se parecido com as Nações Unidas: grandes salários, grandes negócios e grandes fodas. Tudo em grande.”   

         - Aproveitando o dia majestoso, com a ajuda da Piedade, tentei pôr pela primeira vez este ano o cortador de relva a funcionar. Recusou. Insisti indo puxar-lhe pelas goelas várias vezes de manhã e muitas esta tarde até há cinco minutos – em vão. Tudo parece estar nos conformes. Talvez seja a minha falta de força para puxar o cordão que o põe a saltar. Irei daqui a pouco falar com ele de mansinho, pode ser que assim nos entendamos.    

         - A pobre da Piedade está entrar de novo em depressão. Não se entende com a africana que o neto meteu lá em casa. Perguntei-lhe se ele tem feito alguma coisa para trazer o filho da primeira mulher para sua companhia. “Não – acrescentando: - Ela parece que só queria ter o filho, parece que gosta de mulheres.” Entupi. 


quarta-feira, abril 13, 2022

Quarta, 13.

Almocei ontem com o João na Confeitaria Nacional. Ali como por todo o lado os preços gramparam e a refeição custou-nos mais quatro euros, “800 escudos já vistes!”. Estivemos à conversa até às quatro da tarde, sem praticamente se falar de política, embora o meu amigo por duas vezes chamasse Putin à liça. De rompante para dizer que o ditador tem três cursos superiores e é homem muito inteligente. Talvez. Seja como for não acredito em nada que venha dali, mais a mais porque o que conheço da adolescência do Pinóquio, não aponta na formação universitária atribuída, antes pelo contrário. 

         - Quando se contam os mortos em tempo de guerra, é como contar feijões a granel – nada bate certo. Os que estão do lado da Rússia – como o João Corregedor – dizem que o seu número é ínfimo; os que se juntam à Ucrânia martirizada, tendem a acreditar na soma que esta fornece. Seja como for, dos ataques de anteontem e ontem a Mariupol, fala-se em para cima de 10 mil mortos. O apuramento, far-se-á um dia, sendo certo que uma guerra injusta e idiota, um só mártir vale por milhões.  

         - A velhice começa a rondar-me ao amanhecer. Um pouco antes de acordar completamente, atulha-se-me a mente de tenebrosos e sombrios episódios que me agitam o sono e me deixam prostrado de amargura. Um tumulto imenso de imagens, pensamentos, episódios, flutuações de sentimentos, pesadelos fazem-me dar voltas na cama, procurando reencontrar o resto do sono de que o corpo carece. Toda a minha vida dormi bem, adormecia cinco minutos depois de me deitar e só acordava sete, oito horas depois. Agora, volta que não volta, estou nisto. 

         - Hoje, segundo DGS, 60 mil novos casos de covid-19. 

         - Fui ao dentista ver o maxilar superior, aceitei com reservas e promessas dele melhorar a obra de arte. 


segunda-feira, abril 11, 2022

Segunda, 11.

Confirmaram-se as previsões: Macron e Le Pen vão à sua segunda volta com uma diferença de quatro pontos. Borda fora o senhor Éric Zemmour com apenas 7% dos votos e a grande novidade foi a ressurreição do PCF com 4% de crentes, mais ou menos a mesma percentagem dos comunistas portugueses. Aqueles, contudo, podem estar satisfeitos atendendo ao facto de há muitos anos não se candidatarem e, também, terem ficado à frente do PS de Anne Hidalgo presidente da Câmara de Paris. 

         - Obstina-se a comunidade internacional em provar e levar a tribunal Putin e seus sanguinários por crimes contra a humanidade. O problema é que o criminoso ditador, não reconhece o Tribunal de Haia e está-se marimbando para as acusações que lhe fazem, sendo senhor absoluto dos povos russos e ucranianos. E apanhá-lo? Os cúmplices pode ser que se consiga, mas o principal responsável, não. Ainda que haja sempre a captação de Radovan Karadzic condenado a 40 anos de prisão, em 2016. Tenhamos, pois, esperança de assistirmos à prisão do fascista acusado de genocídio.  

         - A TAP fechou 2021 com um prejuízo de 1599, um milhões de euros. Outro elefante branco que vamos ter de pagar com língua de fora. Façamo-lo, no entanto, por nacionalismo e amor a Portugal. Que seria de nós sem aquela bandeira a flutuar nos céus imensos do mundo. Pouco importa que em terra haja fome, doenças, salários baixos e reformas de miséria, posto que a TAP, enquanto símbolo socialista do nosso país, cruze as rotas internacionais levando o nome abençoado de um país próspero e feliz. 

         - Terminei a leitura do livro de Eugénio Lisboa, Aperto Libro. Esta curiosa personagem do nosso meio intelectual hoje com 91 anos, é cativante porque se contradiz e contradiz-se pelas mesmas razões e princípios que contesta aos outros. Espírito irrequieto, poço de paradoxos, fechado o livro esgota-se o diarista. Ao longo das 280 páginas, assistimos ao desespero do autor em ser reconhecido, em se agigantar ao nível dos demais, quase todos reduzidos à mediocridade. Grosso modo, concordo com ele e sou de opinião que só não erra quem não é livre, quem se esconde atrás dos cortinados do politicamente correcto, quem não ousa investir sobre a plêiade intelectualoide que faz carreira nas televisões e jornais. Vejamos alguma pimenta que alastra ao longo do livro. A propósito de Vergílio Ferreira: “O meu texto sobre a Conta-Corrente, saído na Colóquio, está a ter repercussão. E, a avaliar por esta, vejo quão pouco amado é V.F. Nem é para admirar: trata-se de um homem tão despido de bom humor, tão centrado em si mesmo, tão pouco caloroso, tão invejoso (digamos tudo), tão pouco feito para ser amado... A propósito, terá ele alguma vez amado alguém, o que se chama amar? Terá amado alguém para além de si próprio? Conhecer-se-á alguma verdadeira paixão?” E esta sobre Vasco Pulido Valente: “Dizem-me (presumo que é verdade) que o Vasco Pulido Valente vai trabalhar para o Público, à razão de cem contos por crónica. As putas estão a ficar caras. Cem contos por um estilo escorreito e por um conteúdo errático: ultrajar, afrontar, carregar no traço, for the sake of it. Dizer não imposta o quê (ai este português afrancesado, bom Eugénio!) desde que seja excessivo e brutal. Desde que desarrume e enxovalhe, mesmo não tendo razão: o Cavaco é uma besta, do Eça salvam-se dois parágrafos, o Camões era um zarolho italianizado, o Pessoa rimava mal e pensava pior: coisas neste gosto. (...) “Os patrões pagam e sorriem, beatos: tenho a minha puta no meu pay-roll. As outras putas mais antigas dizem: “Esta nossa puta mais recente tem mau feitio mas tem talento.” Quanto a mim, que conheci pessoalmente Vergílio Ferreira  e, inclusivamente, ele cita-me no seu Diário (para além de me escrever), não tenho razões de queixa; e quanto ao V.P.V. achava-lhe piada e concordava muitas vezes com ele. Talvez porque eu, modesto, não me reputo ao mesmo nível dos visados...  Quando afirmo que o escritor e ensaísta se esgota, quero dizer que nas páginas do seu livro passa muito pouco do autor, transformando o “diário” num bloco de notas e, por conseguinte, num registo a prazo. Muito diferente dos diários de Julien Green, Gide, Torga, Woolf, Junger ou mesmo Mansfield e Matzneff. Mas é de ler o intrépido autor que imagino à son âge ainda activo e apaixonante. (Green com 98 anos ainda escrevia romances e Ernst Junger aos 101 estava activo. Outra gente.) 

         - Não deixei este convento, preenchendo o tempo com leituras, avanço no romance, cozinha, conversas ao telefone sob chuva por vezes forte e intermitente. É impressionante o que aconteceu aqui com as primeiras chuvas. Houve como que uma ressuscitação da natureza, as árvores rebentaram de folhas e flores, todo o espaço até aqui sonâmbulo, ergue-se esplendoroso e revitalizado, cheio de vida e anos a provir. A sua energia passa para nós em harmonia, sagesse e comunhão. 


domingo, abril 10, 2022

Domingo, 10. 

“Sem solidão ninguém vive, mas há muitas pessoas que simplesmente não têm acesso à solidão: não têm espaço, não têm tempo, não têm transporte. Pior do que tudo é quando nem sequer têm consciência da necessidade da solidão.” Estas curiosas palavras são do Meiquinho no Público de hoje. Ele fala, talvez, da solidão esporádica, da que baralha a consciência prometendo fortalecê-la quando, na verdade, a solidão profunda, arejada, contribuiu muitíssimo mais para a dimensão abrangente da existência.  

         - A França vota neste momento para as presidenciais. Segundo as sondagens, à parte a abstenção que deve ser elevada, estão para ir à segunda volta Le Pen e Macron. Todos os outros estão equidistantes e não merecem uma palavra; mais a mais, quando Éric Zémmour e Mélenchon emitiram referências elogiosas a Putin como também a senhora Le Pen o fez. A direita e a esquerda entendem-se bem com os autocratas. Ora, acontece, que os franceses nunca gostaram de Macron (eu estou com eles, o rei nunca me enganou) e nestas eleições como nas anteriores que levaram Chou Chou ao Eliseu, o povo votou por ele sem convicção nem vontade. Marine Le Pen deu a volta às questões ideológicas e tenta agora a chance enganando os eleitores. Dizem as sondagens que a segunda volta está fifty-fifty. Seja como for, entre uma e outro o diabo que escolha. 

         - Porque, a partir da invasão da Ucrânia, o nosso olhar europeu mudou. É preciso que a Rússia fique isolada, que a Europa desenvolva outros horizontes que passem pela auto-suficiência de diversas matérias, que não entre de novo na loucura de dar prioridade à economia e os restos aos cidadãos, que a riqueza seja equitativamente distribuída, a defesa reforçada, o combate aos extremos acérrimo, a vigilância das suas fronteiras constante, o combate aos corruptos, ao terrorismo, à pobreza e à iliteracia, a todos os países e regimes ditatoriais que cercam o nosso modelo de vida onde a liberdade é a sacrossanta bandeira comum. 

         - Para o início da semana esperam-se odiosos combates na Ucrânia. Quando vejo as imagens que nos chegam, a quantidade de sofrimento que somos obrigados a ver como se de uma dor nossa se tratasse e trata com efeito, um pensamento nos acode: quantas mortes e destruição, êxodo de milhões de seres humanos, ter-se-iam evitado se a União Europeia tivesse agido de imediato e não tivesse perdido tempo a confiar num homem que despreza o ser humano, um ditador que encarcera quem ousa opor-se-lhe! 

         - A cisão está consumada. As Igrejas Ortodoxas de Moscovo e Kiev cortaram relações. O patriarca Kirill, chefe da Igreja russa, defensor da ofensiva militar na Ucrânia ordenada por Putin, com dimensão “metafísica” como ele diz, contra “as forças do mal”, que se opõem à unidade do povo e da Igreja russa. Que malabarismo, santo Deus! Dito de outro modo, o patriarca Kirill da Igreja mais importante da Rússia a proclamar a violência e a destruição, morte e sofrimento do povo de Deus! 


Uma rua de Marioupol onde a morte vagueia e fugir-lhe é agarrá-la mais além nos escombros do ódio. (foto Le Monde)



sexta-feira, abril 08, 2022

Sexta, 8.

Fez-se história. A Rússia foi corrida do Conselho dos Direitos Humanos da ONU onde nunca devia ter estado atendendo ao regime que pratica e leva o povo à escravatura moral, humana e social. 93 países votaram a favor, 24 contra (entre os quais a China e outros mais que vivem encostados a Putin e com regimes totalitários à moda do ditador) e 58 abstiveram-se. O documento foi assim aprovado por 79% dos Estados-membros que fizeram parte da votação. 

         - Devorei o primeiro capítulo do livro de Milhazes com enorme interesse e curiosidade. Não o sabia tão eloquente, limpo de escrita e pensamento, alinhando a História com a sua experiência vivencial. Parece uma pincelada sobre os períodos que vão da Rus ao presente, mas abrange o essencial do percurso da formação do imenso país (quase sempre governado por loucos varridos), com 17 milhões de km2 e fronteira com 16 outros países. 

         - Sensação horrível de que me falta tudo. Ando enervado, agitado interiormente, desmotivado e parado num lugar ermo de onde avisto a tristeza infinda que varre o horizonte. Até as pequenas coisas e instantes que dantes constituíam a minha felicidade, parecem ter perdido o sortilégio. Exemplo: esta manhã no supermercado ante a máquina de pagamento lenta a fazer a operação, larguei a barafustar com a empregada da caixa como se ela fosse a patroa daquele império.  

         - Para espairecer fui a Lisboa de tarde. Mal entrei no comboio e me sentei reparei que a carruagem ia cheia de passageiros a marrar nos telemóveis. Depois do futebol esta é a segunda alienação preferida dos portugueses. Pobres criaturas! Depois admiram-se de serem pobres, atrasados, espezinhados e infelizes. 


quinta-feira, abril 07, 2022

Quinta, 7.

O PCP votou contra a palestra de Volodomir Zelensky (à distância) na Assembleia da República. Por proposta do PAN, coitado, que se quis agigantar sendo pequerrucho. E também do país que pretende fazer como os demais parlamentos sendo, naturalmente, minúsculo. É esta a política dos nossos dias - uma banalidade de Maria faz como as outras. Tudo o que cheire a exibicionismo, a importância serôdia, a cagança, ei-lo Portugal no seu melhor. Entretanto, do que o Governo, as autarquias, os políticos em geral se deviam ocupar e batalhar, era pelos infelizes que nos bateram à porta e são aos milhares e muitos deles começam a ficar abandonados à sua sorte porque não temos capacidade nem inteligência para os proteger. A razão do PCP para votar contra a iniciativa, está em linha com as suas escolhas e o princípio que tem de se escolher um dos lados: americano ou russo. Eles estão continuamente do lado da Rússia, pratique ela os crimes que praticar. Quanto a mim escolho estar do lado da democracia e da liberdade, pelo simples facto que a posso vilipendiar se me sentir ferido, enquanto do lado de Putin sou assassinado, vivo na opressão e na miséria. Ou seja humilho-me para que ele glorie.

         - Ontem fui ao dentista experimentar a prótese definitiva – recusei-a. Tendo fornecido ao técnico uma foto onde sorrio com todos os dentes, era de esperar que o seu talento chegasse para a reproduzir – não chegou. Depois fui ao Corte Inglês levantar o livro de José Milhazes sobre a Rússia onde ele viveu uma parte substancial da sua vida. É uma personagem fora do baralho que aprecio. O João não gosta dele, e esse facto é para mim factor de credibilidade. De lá trouxe o jantar e vim no comboio (pró tarde) apinhado de mulheres e homens dos serviços e similares. 

         - Eu admiro e louvo Boris Johnson. É sempre o primeiro na revolta e indignação que lhe causa os horrores na Ucrânia. Afastado da UE, comunga de tudo o que ela faz não deixando de actuar oportuna e arrojadamente, só. O Reino Unido com ele à frente é o farol que conduzirá a Ucrânia à vitória sobre a Rússia. Ainda porque admiro a personalidade, aquele seu jeito um pouco clown que não se envaidece, antes se apresenta na sua forma humana de ser, com suas fragilidades políticas e pessoais.    

         - Regressar ao romance agora que as aflições tendem a esmorecer impulsionadas pela vida que lhes leva a palma. Ontem e hoje trabalhei serenamente, sob o fundo dos tachos e panelas driblados pela Piedade na cozinha. Estar só e sentir alguém por perto é para mim o centro da quietude e, portanto, da felicidade. Oh, querido silêncio, como somos fraternos e, simultaneamente, presentes onde o alarido do sofrimento nos convoque. Faz hoje um mês que a Maria Luiza nos deixou.

         - Chegou aí pela primeira vez este ano o cuco. Levou a tarde a cantarolar no seu modo a um tempo monótono e festivo. É uma companhia que me agrada ter. 


terça-feira, abril 05, 2022

Terça, 5.

A Rússia actual está na ordem do dia pelas piores razões. Não se pense, porém, que a chamada União Soviética de então era melhor. Vou dar a palavra ao escritor Eugénio Lisboa, que em 1986 fez uma visita a Moscovo e Leninegrado: “Bichas, falta de tudo, mesmo do mais elementar, evidente opressão. Um povo governado por brutos e querem continuar a ser brutos. Suponho que o poder de sedução deles é igual a zero. Como pode aquilo, alguma vez, seduzir alguém? Só um sádico pode querer aquilo.” Mais adiante, p. 92: “Nos hotéis majestosos, a comida era simplesmente detestável: salvava-se a sopa e o resto era para ignorar. Solução era comer dois ou três pratos de sopa... Uma nota redentora: o apetite de leitura daquela gente. Infelizmente, poucas coisas redentoras posso aqui anotar.” Era a Rússia que Gorbatchov, um ano antes, começou a regenerar. 

         - Há um autêntico escândalo que diz bem dos tempos que vivemos: o assédio moral e sexual praticado há longos anos na Faculdade de Direito e agora denunciado. Não bastava os juízes que ditaram sentenças tendo por baixo da mesa somas chorudas; vêm agora alunas e alunos queixar-se de professores que utilizaram a nota de curso a troco de favores íntimos e nojos rácicos. Esta miséria de sociedade, de que professores e juízes são os pilares, remete para a desconfiança nos valores que hodiernamente imperam e são o reflexo de uma democracia podre em que não se pode confiar.  

         - O frio regressou em força. Dia chuvoso e escuro. Saí de casa para ir ao banco travar uma tentativa de roubo cibernético. Voltei logo para ficar à lareira onde o fogo crepitou desde de manhã. Preenchi e enviei o IRS. 


segunda-feira, abril 04, 2022

Segunda, 4. 

Sim, pode-se falar de genocídio na Ucrânia. Não só pelo que aconteceu em Bucha, mas pelo que vem acontecendo por onde as tropas russas passam. Putin não liga aos direitos que a própria guerra deve cumprir. Para ele o ser humano não conta para coisa nenhuma e os corpos abandonados, enterrados às centenas à pressa, amarrados denunciando violência antes de serem abatidos, todo aquele cenário horrendo que as televisões nos mostram e são hoje a guerra moderna contada a par e passo, é um redondo crime, uma aterradora manifestação de crueldade. Aliás, do que os soldados russos são capazes,  já nós sabíamos quando lemos o que aconteceu quando e exército de Estaline chegou a Berlim, em 1945: centenas de mulheres foram violadas e maltratadas. Não falo do povo russo, indigno-me em primeiro contra o ditador Putin e depois o seu circulo militar e de oligarcas; os soldados são uns pobres jovens imberbes que revoltados e no stresse das batalhas, são capazes de tudo. 

         - Ontem telefonaram os Legros. Disseram-me há três dias que têm a lareira acesa 24 sobre 24 horas. A neve que caiu em toda a França, atingiu para cima de um metro em várias zonas. Este desarranjo climático, com outra dimensão, também nos atinge. Esta manhã passei-a em Setúbal a comprar o que necessitava. Atestei o depósito do carro: antes 30 euros chegavam; agora foram 70 euros. Fazia frio, faz frio e daqui a nada vou também eu deitar achas na lareira. 


domingo, abril 03, 2022

Domingo, 3. 

Finjamos que a vida continua como sempre sucedeu. “O diário e a confissão são frequentemente a arte de faire semblant. Conta-se muita coisa, mas não se conta tudo.” Diz Eugénio Lisboa in Aperto Libro. Por isso, voltar aqui é para me esconder de mim, expondo o que escapa ao que intimamente oculto. Tudo o resto fica na sombra, e constitui o húmus que não ouso dar a conhecer: uma espécie de tempo longo, habitado de sentimentos que murmuram e são a essência da verdadeira e profunda existência. 

         - Nunca como nestes tempos difíceis, a vida que julgamos egoisticamente nossa, existe e enquadra-se num aluvião de vidas que comungam entre si, numa Terra onde os nacionalismos nunca deviam ter medrado. Daí que não possa cruzar os dias indiferente ao que se passa no Oeste da Europa onde Odessa, a sagrada Odessa, acaba de ser reduzida quase totalmente a um montão de cinzas e escombros. Contudo, para mim, se a ideia deste estrondoso desastre bélico reside nos limites que Putin considera imprescindíveis à sua segurança, conquistada a Ucrânia e alargada assim a Rússia, ela vai ficar moto continuo, encostada ao país ou países que fazem fronteira com a Ucrânia e pertencem já à NATO. É por isso que eu chamo a esta guerra uma guerra idiota, levada a cabo por um homem louco, de horizontes estreitos, que exibe o poder que não lhe pertence, porque é senhor absoluto de um povo subjugado, pobre e analfabeto por imposição ou seja escravo. 

         - Se me ausentei destas páginas, não desapareci da vida quotidiana. Daí ter alinhado os dias em pequenos recortes que agora dou a ler aos meus estimados (obrigado pelos e-mails e palavras de conforto) leitores. Houve até dois dias que entrei no romance (louvado seja Deus), timidamente, pedindo licença ao cérebro e ao desânimo porque tudo à minha volta tendia ao desespero e com ele não há arte que se instale. 

*

Quarta, 30.

Tudo o que me era querido fora-me erradicado do coração com violência e estupefacção.

Sexta, 1 de Abril.  

Deixei de ter prazer em aqui vir derramar desgraças e sentimentos. Parece que tudo à minha volta se desmorona e o mundo inteiro é lugar de sofrimento, guerra, palavreado hipócrita e coliseu de políticos frustrados maquilhados de palhaços. 

         - Penso nos senhores doutores, nos historiadores, nos formados em Ciência Política e sobretudo nos advogados que ironizam quando falam do Presidente da Ucrânia que tendo sido actor cómico, governa não só uma grande nação como é o seu Presidente. “Como é possível!” exclamam os pomposos de canudos tirados à pressa, para quem o mundo é gerido com blá blá unissonante como diz a menina Greta Thunberg. 

         - Putin não desarma e utiliza a mentira para arrasar completamente a Ucrânia. Os políticos inteligentes e sabichões que não são humoristas (julgam eles), acreditam na sua palavra e lá no íntimo até o admiram e temem. O ditador, por seu lado, só é respeitado com as costas quentes de uns quantos generais e a arma que Truman, em 1949 (julgo), deu a conhecer ao mundo a Rússia acabara de fabricar: a bomba atómica. Com escudos destes e políticos medíocres e cobardes, a palavra perdeu completamente valor, força e sentido. 

         - Por falar em cómicos. Um deles, actor imprescindível e admirado por toda a esquerda, a propósito da cena canalha ocorrida na entrega dos Óscares da Academia de Hollywood, durante a qual o apresentador, referindo-se à mulher do colega de cor e profissão, sentado na plateia com a sua cara metade, despachou uma piada grosseira a propósito da alopecia de que a senhora padece. O marido, sem mais aquela, levanta-se, dirige-se ao palco e despacha um murro inteiro na cara do engraçadinho, acrescentando: “Mantém o nome da minha mulher fora da puta da tua boca.” Vai daí, o nosso português que faz verter lágrimas (dizem que eu nunca vi um simples sketch) com as suas graçolas, indignou-se: “Uma sociedade decente não reage a uma piada com uma agressão.” Apetece responder-lhe: numa sociedade decente não existem humoristas que gozem com a infelicidade das pessoas. Porque, entre nós, com humor o humorista encobre muita coisa e defende-se de outra tanta: incultura, falta de criatividade, convencimento, frustração, impunidade. O pai deles todos, refugia-se no sexo. Tirem-lhe o dito cujo (salvo seja), aquilo derrete em três tempos e fica oco. Podia-se aconselhá-lo a praticar para nos poupar a overdoses de caris sexual, mas a idade já não permite tanta aventura, por isso agora só lá vai com a língua, perdão, a fala. 

Sábado, 2. 

Como é frequente, outro dia, um polícia foi morto a pontapé à porta de uma discoteca na zona de Cais do Sodré quando defendia um cliente de agressões. Na cena estiveram envolvidos dois fuzileiros prontamente detidos. Assim que deram entrada no quartel, o novo comandante Galvão e Melo, chefe da Armada, deu-lhes ordem de prisão por entender (e bem) que nada justifica a selvajaria que levou à morte o jovem da PSP de 26 anos. Repudiou o acto com estas palavras: “mancharam a farda”, “são selvagens e cobardes”. 

Porém, logo de seguida, o capelão da Marinha, surgiu a defender os dois moçoilos. Pergunta Licínio Luís: “O senhor almirante nunca foi para a noite (reparem no português)? Nunca bebeu uns copos? Juízo com os nossos julgamentos. Aguardemos pelas investigações. Os jovens têm direito a serem respeitados. Os jovens da PSP estavam no mesmo âmbito e alcoolicamente tão bem-dispostos como os nossos. Juízo com os nossos julgamentos.” Num tempo onde tudo se inverte, até um sacerdote consente a morte de um ser humano a pontapé. Suponho que o almirante o despediu... de padre. E fez muito bem. (Sei, hoje, dia 3, que voltou a admiti-lo. Fez mal.) 

         - Li esta semana o livro de Natalia Ginzburg As Pequenas Virtudes. Escrita curiosa, argumentação contra a maré, desprendido de intelectualidades baratas, rigoroso e limpo, tradução como sempre belíssima de Miguel Serras Pereira. Estas frases que retive: “Somos adultos porque temos atrás de nós a presença muda das pessoas mortas”, “somos adultos por todas as respostas mudas, por todo o mudo perdão dos mortos que trazemos dentro de nós” (p. 125, Ed. Relógio d´Água). Oh, Natalia, como vos compreendo!  

         - Foi por fim aberta a Assembleia da República, sob a batuta do nosso intelectual emprestado, Augusto Santos Silva. Marcelo fez um excelente discurso de abertura, condenando António Costa ao sacrifício de governar Portugal até ao fim da legislatura, contrariamente ao seu desejo de cargo alto e principescamente pago na União Europeia. Enquanto toda esta pompa e circunstância agitava e orgulhava os senhores deputados (novos e antigos), os dois milhões e meio de pobres empobreciam um pouco mais, os centros de saúde atulhavam de pacientes em espera de consulta e o pessoal médico sem luvas, material mínimo para a função, instalações degradadas, falta disto e daquilo, gritavam ai Jesus; e os ordenados, as reformas, a vida tout court estendia o seu lamento gemebundo de anos e anos de amargura nacional. Estamos tão pobres como no tempo de Salazar. (Cala-te, de contrário prendem-te.) 

         - Tempo de uma infinita tristeza. As memórias remontam em cachoeira das águas cristalinas do passado. 

         - Ontem almocei com a Carmo e o João na Confeitaria Nacional. Arrastado pelo João para “um almoço calmo” forma de dizer amigável, que te fará bem. E foi. E fez-me bem. Ficámos numa mesa com vista para a Praça da Figueira, naquele ambiente simpático e acolhedor, e demorámo-nos em conversa vagabunda até tarde. O dia esteve soberbo, o sol espojava-se alegre e brilhante pelas ruas, a esplanada da Brasileira a abarrotar de clientes, nacionais e estrangeiros, enquanto do outro lado da Europa um povo sufoca e morre debaixo dos escombros de cidades inteiras dizimadas a mando de Putin, numa guerra idiota que a ninguém convence. Quem, com que dinheiro, irá o país erguer-se dos escombros criminosos perpetrados por um só homem?