quinta-feira, abril 28, 2022

Quinta, 28.

Como era de esperar, António Guterres foi enxovalhado pelo ditador que o recebeu no seu bunker e desconversou com ele a seis metros de distância, numa mesa gélida, oval, sob a sua majestosa figura de czar nouvelle vague. Ali só poderá ser assassinado por um daqueles dois generais que estavam próximos dele outro dia (que honra!) e a quem ele deu ordem para prepararem a artilharia nuclear. Nunca mais esqueci o olhar do bolachudo que ombreava com o imperador: terrível, encerrando tudo e o mais que cada um de nós possa pensar, frio como aço, malévolo, e ao mesmo tempo distante, flutuante, como se confirmasse sem, contudo, o fazer... Que seita! 

         - Ontem era suposto ter sido a derradeira sessão no dentista., a que me devolveria o sorriso aberto no meu rosto que toda a gente me assegura não ter mudado (como se eu não tivesse olhos na cara). De facto, a fieira de dentes com os pequenos defeitos dos naturais, sem os pôr, vi no espelho da memória a obra de arte que o mecânico .produziu. O pior foi o que veio a seguir. Para os colocar, tive de passar por um processo que durou hora e meia e me causou grande sofrimento. A dada altura, depois de diversos ensaios, a prótese conheceu o destinatário e o espelho veio ao me encontro e eu confirmei estavam parecidos com os que pedi para me extrair. Seguiu-se uma série de gestos para que os implantes recebessem umas esponjas mínimas com quatro cores, começando pela cor preta que eu deveria usar por duas semanas. Para que a coisa se fixasse, o técnico utilizou uma espécie de líquido abrasivo que servia para queimar o que fora introduzido no topo e fixaria a ligação à prótese. O problema, foi retirar a fileira dos lindos dentes: dois médicos, duas assistentes, o técnico, quase montaram sobre mim na tentativa de obter o que não queria sair. Todo este ,desassossego e momentos de pavor por parte da equipa, comigo a gemer e a dizer que deixassem ficar para sempre a prótese. Até que é chamada uma menina por sinal muito gira e sensível. Assim que ela pôs as mãos na minha delicada boca, senti que estava diante de alguém profissional, que sabia do ofício: não me fez doer, pegou na prótese de uma maneira diferente, muito preocupada comigo, e, de súbito, eu senti o lado esquerdo do aparelho mexer. Mais um espaço para eu descansar e a seguir a duas ou três tentativas, a beleza saiu. Alívio de toda a equipa, da minha parte nem dá para falar. São substituídas as borrachas negras por rosas (as escuras foram, entretanto, deterioradas). Voltou tudo ao princípio, mas desta vez a prótese entrou e saiu bem. A bela moça nem médica era. Aconselhei-a a tirar o curso, respondeu-me: “eu só gosto de ajudar”. 

Saí com outro sorriso, sem dores, disposto a abraçar a tarde que estava fúlgida. Fui, imprevistamente, invadido por uma felicidade crua, que me levava a cantar, a sorrir a quem se cruzava comigo, e quando me sentei perto das três para experimentar os novos dentes, estava esfuziante. Restava a apreensão de os escovar depois do jantar, mas tudo correu bem. Ufa! 

         - Comecei a limpar a erva em frente a casa. Calor. Prazer. Sentimento de paz, serenidade, murmúrios interiores vindos do horizonte vasto.