domingo, abril 03, 2022

Domingo, 3. 

Finjamos que a vida continua como sempre sucedeu. “O diário e a confissão são frequentemente a arte de faire semblant. Conta-se muita coisa, mas não se conta tudo.” Diz Eugénio Lisboa in Aperto Libro. Por isso, voltar aqui é para me esconder de mim, expondo o que escapa ao que intimamente oculto. Tudo o resto fica na sombra, e constitui o húmus que não ouso dar a conhecer: uma espécie de tempo longo, habitado de sentimentos que murmuram e são a essência da verdadeira e profunda existência. 

         - Nunca como nestes tempos difíceis, a vida que julgamos egoisticamente nossa, existe e enquadra-se num aluvião de vidas que comungam entre si, numa Terra onde os nacionalismos nunca deviam ter medrado. Daí que não possa cruzar os dias indiferente ao que se passa no Oeste da Europa onde Odessa, a sagrada Odessa, acaba de ser reduzida quase totalmente a um montão de cinzas e escombros. Contudo, para mim, se a ideia deste estrondoso desastre bélico reside nos limites que Putin considera imprescindíveis à sua segurança, conquistada a Ucrânia e alargada assim a Rússia, ela vai ficar moto continuo, encostada ao país ou países que fazem fronteira com a Ucrânia e pertencem já à NATO. É por isso que eu chamo a esta guerra uma guerra idiota, levada a cabo por um homem louco, de horizontes estreitos, que exibe o poder que não lhe pertence, porque é senhor absoluto de um povo subjugado, pobre e analfabeto por imposição ou seja escravo. 

         - Se me ausentei destas páginas, não desapareci da vida quotidiana. Daí ter alinhado os dias em pequenos recortes que agora dou a ler aos meus estimados (obrigado pelos e-mails e palavras de conforto) leitores. Houve até dois dias que entrei no romance (louvado seja Deus), timidamente, pedindo licença ao cérebro e ao desânimo porque tudo à minha volta tendia ao desespero e com ele não há arte que se instale. 

*

Quarta, 30.

Tudo o que me era querido fora-me erradicado do coração com violência e estupefacção.

Sexta, 1 de Abril.  

Deixei de ter prazer em aqui vir derramar desgraças e sentimentos. Parece que tudo à minha volta se desmorona e o mundo inteiro é lugar de sofrimento, guerra, palavreado hipócrita e coliseu de políticos frustrados maquilhados de palhaços. 

         - Penso nos senhores doutores, nos historiadores, nos formados em Ciência Política e sobretudo nos advogados que ironizam quando falam do Presidente da Ucrânia que tendo sido actor cómico, governa não só uma grande nação como é o seu Presidente. “Como é possível!” exclamam os pomposos de canudos tirados à pressa, para quem o mundo é gerido com blá blá unissonante como diz a menina Greta Thunberg. 

         - Putin não desarma e utiliza a mentira para arrasar completamente a Ucrânia. Os políticos inteligentes e sabichões que não são humoristas (julgam eles), acreditam na sua palavra e lá no íntimo até o admiram e temem. O ditador, por seu lado, só é respeitado com as costas quentes de uns quantos generais e a arma que Truman, em 1949 (julgo), deu a conhecer ao mundo a Rússia acabara de fabricar: a bomba atómica. Com escudos destes e políticos medíocres e cobardes, a palavra perdeu completamente valor, força e sentido. 

         - Por falar em cómicos. Um deles, actor imprescindível e admirado por toda a esquerda, a propósito da cena canalha ocorrida na entrega dos Óscares da Academia de Hollywood, durante a qual o apresentador, referindo-se à mulher do colega de cor e profissão, sentado na plateia com a sua cara metade, despachou uma piada grosseira a propósito da alopecia de que a senhora padece. O marido, sem mais aquela, levanta-se, dirige-se ao palco e despacha um murro inteiro na cara do engraçadinho, acrescentando: “Mantém o nome da minha mulher fora da puta da tua boca.” Vai daí, o nosso português que faz verter lágrimas (dizem que eu nunca vi um simples sketch) com as suas graçolas, indignou-se: “Uma sociedade decente não reage a uma piada com uma agressão.” Apetece responder-lhe: numa sociedade decente não existem humoristas que gozem com a infelicidade das pessoas. Porque, entre nós, com humor o humorista encobre muita coisa e defende-se de outra tanta: incultura, falta de criatividade, convencimento, frustração, impunidade. O pai deles todos, refugia-se no sexo. Tirem-lhe o dito cujo (salvo seja), aquilo derrete em três tempos e fica oco. Podia-se aconselhá-lo a praticar para nos poupar a overdoses de caris sexual, mas a idade já não permite tanta aventura, por isso agora só lá vai com a língua, perdão, a fala. 

Sábado, 2. 

Como é frequente, outro dia, um polícia foi morto a pontapé à porta de uma discoteca na zona de Cais do Sodré quando defendia um cliente de agressões. Na cena estiveram envolvidos dois fuzileiros prontamente detidos. Assim que deram entrada no quartel, o novo comandante Galvão e Melo, chefe da Armada, deu-lhes ordem de prisão por entender (e bem) que nada justifica a selvajaria que levou à morte o jovem da PSP de 26 anos. Repudiou o acto com estas palavras: “mancharam a farda”, “são selvagens e cobardes”. 

Porém, logo de seguida, o capelão da Marinha, surgiu a defender os dois moçoilos. Pergunta Licínio Luís: “O senhor almirante nunca foi para a noite (reparem no português)? Nunca bebeu uns copos? Juízo com os nossos julgamentos. Aguardemos pelas investigações. Os jovens têm direito a serem respeitados. Os jovens da PSP estavam no mesmo âmbito e alcoolicamente tão bem-dispostos como os nossos. Juízo com os nossos julgamentos.” Num tempo onde tudo se inverte, até um sacerdote consente a morte de um ser humano a pontapé. Suponho que o almirante o despediu... de padre. E fez muito bem. (Sei, hoje, dia 3, que voltou a admiti-lo. Fez mal.) 

         - Li esta semana o livro de Natalia Ginzburg As Pequenas Virtudes. Escrita curiosa, argumentação contra a maré, desprendido de intelectualidades baratas, rigoroso e limpo, tradução como sempre belíssima de Miguel Serras Pereira. Estas frases que retive: “Somos adultos porque temos atrás de nós a presença muda das pessoas mortas”, “somos adultos por todas as respostas mudas, por todo o mudo perdão dos mortos que trazemos dentro de nós” (p. 125, Ed. Relógio d´Água). Oh, Natalia, como vos compreendo!  

         - Foi por fim aberta a Assembleia da República, sob a batuta do nosso intelectual emprestado, Augusto Santos Silva. Marcelo fez um excelente discurso de abertura, condenando António Costa ao sacrifício de governar Portugal até ao fim da legislatura, contrariamente ao seu desejo de cargo alto e principescamente pago na União Europeia. Enquanto toda esta pompa e circunstância agitava e orgulhava os senhores deputados (novos e antigos), os dois milhões e meio de pobres empobreciam um pouco mais, os centros de saúde atulhavam de pacientes em espera de consulta e o pessoal médico sem luvas, material mínimo para a função, instalações degradadas, falta disto e daquilo, gritavam ai Jesus; e os ordenados, as reformas, a vida tout court estendia o seu lamento gemebundo de anos e anos de amargura nacional. Estamos tão pobres como no tempo de Salazar. (Cala-te, de contrário prendem-te.) 

         - Tempo de uma infinita tristeza. As memórias remontam em cachoeira das águas cristalinas do passado. 

         - Ontem almocei com a Carmo e o João na Confeitaria Nacional. Arrastado pelo João para “um almoço calmo” forma de dizer amigável, que te fará bem. E foi. E fez-me bem. Ficámos numa mesa com vista para a Praça da Figueira, naquele ambiente simpático e acolhedor, e demorámo-nos em conversa vagabunda até tarde. O dia esteve soberbo, o sol espojava-se alegre e brilhante pelas ruas, a esplanada da Brasileira a abarrotar de clientes, nacionais e estrangeiros, enquanto do outro lado da Europa um povo sufoca e morre debaixo dos escombros de cidades inteiras dizimadas a mando de Putin, numa guerra idiota que a ninguém convence. Quem, com que dinheiro, irá o país erguer-se dos escombros criminosos perpetrados por um só homem?