quinta-feira, julho 30, 2015

Quinta, 30.
Pode-se dizer que a Ilíada assenta em três personagens: Aquiles, Pátroclo e Heitor para além de uma turbamulta de deuses que chegam a guerrear-se entre si, muitas vezes por motivos comezinhos como se fossem iguais aos mortais. Aquiles está afastado do longo poema épico de 16 mil versos quase todo o tempo em que decorre a guerra entre Aqueus e Troianos. O Canto I lança a batalha e simultaneamente o fascinante poema homérico. Na sua origem estão duas mulheres: Criseida e Briseida oferecidas a Agamémnon rei dos Aqueus e a Aquiles filho  da deusa Tétis, como escravas ou concubinas. Por via delas, os dois homens desentendem-se e o mal-entendido vai provocar um conflito que envolve muitos povos, faz milhares de mortos e semeia ódios violentos. Junto a Tróia, no fosso escavado para dificultar a entrada na cidade, o rio que aí corre vai ficar muito tempo tingido do sangue dos mártires e dos divinos comandantes. Do alto do Olimpo, Zeus Crónida assiste orientando as operações segundo o jogo jogado dos mortais e dos imortais que junto dele vivem e influem os heróis terrestres. Tididas e Atridas derramam o sangue dos jovens guerreiros, no chão de batalha perecem os melhores efebos, numa luta que não conhece tréguas, vigiada pelas divindades. Numa epopeia sem igual na literatura mundial e particularmente europeia, Homero, qual deus de mil olhos, descreve com magnificência o que acontece num campo e noutro. E fá-lo com maestria, comparando a situação real, visível, vivida, pondo-a em paralelo com situações correntes relacionadas com a vida animal, o movimento do vento, uma paisagem ao pôr do sol, e nessa luta desnorteada os homens até chegam a combater contra os deuses imortais como foi o caso dos Dânaos (Canto V, pág. 116). Um exemplo da admirável capacidade visual e artística de Homero no Canto VIII, pág. 179, ainda Pátroclo não fora morto às mãos de Heitor:  

Mas os Troianos com grandes pensamentos ficaram toda a noite   
ao longo dos diques da guerra e para eles ardiam muitos fogos.
Tal como quando no céu os astros em torno da lua luminosa
aparecem com nitidez, quando o ar não tem sopro de vento,
e à vista surgem todos os cumes, os altos promontórios
e as florestas; do céu se rasga o éter infinito, todos os astros
se tornam visíveis e em seu coração se alegra o pastor -
assim no meio das naus e das correntes do Xanto brilham
os fogos que os Troianos fizeram arder diante de Ílion.
Mil fogos ardiam na planície, e junto de cada um
se sentavam cinquenta homens no clarão do fogo ardente.
E seus cavalos mastigavam a branca cevada e a espelta
de pé junto aos carros, aguardando a Aurora do belo trono.

No Canto IX rumina Aquiles: Só a mim tirou o prémio e ficou com a mulher que me agradava. Refere-se a Agamémnon e murmura estas terríveis palavras: A morte chega a quem nada faz e a quem muito alcança. (Pág. 189.) No Canto XI as coisas complicam-se, um cheiro nauseabundo a morte percorre a frente de batalha e passa para as páginas que vamos lendo sustendo a respiração. É então que recrudesce o ódio. Vindo das montanhas do Ida, Íris de pés velozes como o vento, num fragor, incentiva Heitor à refrega. Agamémnon rei dos Argivos anda por perto. Um homem destaca-se para o combater, Ifidamante, filho de Antenor, um jovem criado na Trácia, que o atinge sem o matar. Furibundo o Atrida tira-lhe a lança e deslassa-lhe os membros junto ao pescoço, enviando-o para a casa de Hades. Abre caminho de seguida através da turba ensandecida dos Aqueus de belas cnémides. Esbarra em Cóon, irmão de Ifidamante que se quer vingar. Ele atira-se ao divino Agamémnon golpeando-o no braço sob o cotovelo quase o matando. É então que surge Heitor do elmo faiscante encorajando os Troianos, os Lícios e os Dárdanos ao combate. Os dados estão lançados. A guerra está ao rubro quando no final do Canto XI Aquiles dos pés velozes decide enviar Pátroclo dilecto de Zeus que encanta o seu coração, a saber quem é o homem que foi ferido na batalha. Aquiles pressente ter sido Macáon, filho de Asclépio. Pátroclo obedeceu a seu companheiro amado / e foi a correr ao longo das tendas e das naus dos Aqueus. Chegado junto Nestor de Gerénia, o emissário de Aquiles, confirma os pressentimentos do seu amado ao reconhecer Macáon, pastor do povo ensanguentado no chão. Reacende-se então ainda mais a luta. Heitor quer vingar-se e procura na desordem da morte matar Pátroclo. Estamos no Canto XVI, quando o inevitável acontece: Quando Heitor viu o magnânimo Pátroclo / a retroceder, golpeado pelo bronze afiado, atravessou / as falanges para se acercar dele e deu-lhe uma estocada / com a lança no baixo ventre; a lança trespassou-o por completo. (Pág. 343) A morte do amigo que Aquiles mais amava, vai desencadear a dor que os próprios cavalos de Aquiles, afastados do combate, estavam / a chorar desde o momento em que primeiro ouviram / que seu cocheiro tombara na poalha, chacinado por Heitor. Uma dor profunda, imensa, insuportável, sacode Aquiles que decide vingar a morte daquele que jaz junto das naus o morto que não foi chorado nem sepultado: Pátroclo. Dele me não esquecerei, enquanto eu permanecer / entre os vivos e meus joelhos mantiverem o vigor. / Se na mansão de Hades os homens esquecem seus mortos, / eu pelo contrário até lá me lembrarei do companheiro amado. Canto XXII, pág. 443. Segue-se uma semana de luto. Os deuses desunidos, torcem ora por um lado, ora por outro. Mas Heitor tem a sentença traçada: morrerá às mãos do divino Aquiles. Para tanto Tétis, a deusa mãe de Aquiles, tudo tem feito. Dê-mos a palavra a seu filho:

Visto que agora, ó Pátroclo, irei depois de ti para debaixo da terra,
não te sepultarei, antes que para aqui eu tenha trazido
as armas e a cabeça de Heitor, assassino de ti, magnânimo.
E na tua pia funerária cortarei as gargantas a doze
gloriosos filhos dos troianos, irado porque foste chacinado.
Até lá jazerás assim como estás junto das naus recurvas;
e à tua volta Troianas e Dardânias de fundas cinturas
chorarão de dia e de noite, vertendo lágrimas,
elas que nós próprios obtivemos pela força e pela lança comprida,
quando saqueámos as ricas cidades de homens mortais. 

Resta o Canto XXIV, o último, que narra a morte do heróico filho de Príamo domador de cavalos à qual acorreram os outros filhos dos Aqueus, que contemplaram a estatura de corpo e a beleza arrebatadora de Heitor. O cadáver é reivindicado pelos troianos na figura do magnificente ancião Príamo ajudado pelos deuses que o convencem a ir reclamá-lo a Aquiles. No fim da refrega, as hostes anseiam pelo descanso. Na sua tenda, Aquiles é o único que não prega olho.

Dispersou-se o certame e para as naus velozes se dirigiram
cada uma das hostes; pensaram então em deleitar-se
com o jantar e com o sono suave. Porém Aquiles
chorava, lembrado do companheiro amado; e não o tomou
o sono que tudo domina, mas voltava-se de um lado para o outro,
saudoso da virilidade e da força potente de Pátroclo,
rememorando tudo o que com ele fizera e sofrera
ao atravessarem as guerras dos homens e as ondas dolorosas.

Quando chega perto de Aquiles, conta-nos Homero (pág. 493):

Mas quando afastaram o desejo de comida e bebida,
foi então que Príamo Dardânia olhou maravilhado para Aquiles,
como era alto e belo. Pois na verdade olhá-lo era ver um deus.
E Aquiles olhou maravilhado para Príamo Dardânia:
fitou o nobre aspecto e escutou as suas palavras.

Aquiles com grande nobreza de carácter, pergunta ao senhor de Ílion:

Mas diz-me agora tu com verdade e sem rodeios:
durante quantos dias farás o funeral do divino Heitor,
para que eu próprio aqui permaneça e retenha o exército.

Resposta:

Durante nove dias choraremos no palácio;
ao décimo dia faremos o funeral e a refeição do povo;
ao décimo primeiro dia far-lhe-emos a sepultura;

e ao décimo segundo dia combateremos, se for preciso.

segunda-feira, julho 27, 2015

Segunda, 27.
O barulho que corre sobre o número de polícias que o juiz Carlos Alexandre entendeu colocar no controlo do “dono disto tudo”, é apanágio do mundo subterrâneo que utiliza os políticos de todos os quadrantes para iludir os cidadãos. Anda a polícia muito indignada porque os quatro agentes fazem falta noutros sítios, como se ela se preocupasse com a segurança do povo e estivesse sempre nos lugares certos como lhe compete.

         - O polvo estende-se tentacularmente por todo o lado. O que se passa entre a Turquia e a Síria dos barbudos da Daesh, é muito perigoso e antevejo uma enorme catástrofe. Os europeus da senhora Merkel, andam distraídos a olhar para o seu próprio umbigo. Quando levantarem os olhos, têm a guerra à sua porta.

         - O amável leitor voltou a escrever-me agradecendo as informações que lhe forneci acerca do cineasta Bruno do Canto e o entusiasmo que lhe inspirei. Diz-me ele que é um escultor autoditacta. Como afinal somos todos nós artistas, caro senhor. Pela parte que me toca, Deus me livre dos professores universitários, dos sabichões disto e daquilo como sua reverência o arcebispo Marcelo. Os únicos que não são autodidactas, são os políticos – e por isso o mundo está como está.

         - Eu vou fazendo experiências: umas com êxito, outras nem por isso. No caso das curgetes como a foto mostra, não podia ter sido melhor atendendo à primeira vez em que me meto em trabalhos do género. O artigo do médico Manuel Pinto Coelho no Público de ontem entusiasmou-me a prosseguir. Ele é cá dos meus. Eu há muitos anos que sigo e penso do mesmo modo. Fiz, inclusive, experiências comigo mesmo e posso testemunhar que resultaram. Nomeadamente no que diz respeito ao colesterol e à diabetes. Já aqui contei que um ano abusei da saborosa e boa cozinha francesa e quando voltei estava com 230 de colesterol. Tó e o meu médico de família prognosticaram-me Sinvastatina “até ao fim da vida”. Recusei, barafustei, negociei e ganhei, ciente que somos o que comemos. Daí a três meses, estava com 190... até hoje. Quanto à diabetes não tenho e espero não vir a ter. Combato-a com profilaxia: natação e cuidado com o que engulo. Tenho um pavor de medicamentos. Até à data não tomo nada e vou recortar e guardar religiosamente o artigo do ilustre clínico. A única coisa que ainda não consegui controlar é a cabeça. Trabalho em excesso e sempre sentado num vulcão de nervos. Tenho dias que o pensamento corre mais veloz que os dedos sobre o cursor do computador. Esta manhã, por exemplo, no Alegro devo ter dado a imagem de tolinho coitadinho. Desatei a rir a bandeiras despregadas porque a Juju diz coisas inconcebíveis e eu estava com ela longe dali. A dada altura tinha toda a gente a olhar para mim. Levantei-me envergonhado e saí. Os clientes devem ter dito: “Lá vai o doidinho das manhãs. Que Deus nos proteja!” – e tinham razão.

domingo, julho 26, 2015

Domingo, 26.
Tenho tendência a deitar-me para o lado onde sopra o vento. O vento nesta altura corre espontâneo para o fim do romance que me absorve todas as minhas faculdades e todos os minutos. Queria tanto debruçar-me sobre Homero e aquele clima de aventuras que enfuna as quinhentas páginas traduzidas por Frederico Lourenço. Gostava dizer dos motivos que levaram o mirmidão Aquiles a vingar a morte de Pátroclo. Mas falta-me tempo, ando com o cérebro arrasado, vivo entre sombras e reflexos de luz sem encontrar o equilíbrio onde umas e outros me possam proteger. Entrei, entretanto, no O Sofista de Platão. O longo estudo que ao autor consagra o meu estimado José Trindade Santos é denso, complexo, obrigando-me a ler lentamente, a tomar notas, a sublinhar. Um verdadeiro trabalho! Apeei-me, contudo, das páginas do filósofo grego, para desobstruir a minha caixa de correio electrónico respondendo por uma hora ao Robert, ao Guilherme Parente, ao Schneider, ao Banco, a um leitor que está a organizar um acontecimento sobre o cineasta Jorge Bruno do Canto e me pediu uma palavra.   


         - Sexta-feira dei um salto à CGD para uma reunião e de caminho visitei os meus artistas na Brasileira. Lá os encontrei a todos, submersos num mundo que não toca já (e ainda bem) este onde vegeta a maior parte dos portugueses. Entre nós, naquele happy end de todas as manhãs, é o desassossego que a liberdade toma quando nada a impede ombreie com a felicidade. Todos os disparates são permitidos, todas as censuras derramadas, todo o palavreado indecoroso despejado sobre os tampos de mármore habituados a reconhecer as vozes como as iras que as acompanham daqueles que depois de mais de um século fazem do café o cenáculo de preciosa e saudosa memória da má-língua. Começamos bêbados logo às primeiras horas do dia sem termos tocado numa gota de álcool. Dali foram eles  almoçar ao Polícia para aonde me queriam arrastar e eu ia de vontade, se não se desse o caso de ter combinado almoçar com a Inês na velha Trindade mais acima. A restolhada de saltimbancos que inunda o Chiado é a outra vida que se estende monótona, the same, por toda a Europa melancolizada do euro.

quinta-feira, julho 23, 2015

Quinta, 23.
Cavaco Silva parece que anda por aí a ameaçar que não dará posse a um governo minoritário saído das eleições, quero dizer, da vontade popular. Acha-se sua excelência-presidente-doutor-professor-economista tutor da democracia, ele que durante toda a sua carreira política tanto contribuiu para a desqualificar.   

         - A Piedade mal entrou despejou as pequenas-grandes misérias que por aqui acontecem e eu não conheço porque não me dou com quase ninguém. Todavia, tudo o que ouvi levou-me a murmurar interiormente: “Ainda bem que nunca acreditei em casamentos, em filhos, em família. Deixa-te estar como estás, igual a ti próprio, com a divina solidão por conduta e a liberdade por objectivo primeiro de vida.”


         - Terminei a Ilíada de Homero.