Quinta, 30.
Pode-se dizer que a Ilíada assenta em três personagens: Aquiles, Pátroclo e Heitor para
além de uma turbamulta de deuses que chegam a guerrear-se entre si, muitas vezes
por motivos comezinhos como se fossem iguais aos mortais. Aquiles está afastado
do longo poema épico de 16 mil versos quase todo o tempo em que decorre a
guerra entre Aqueus e Troianos. O Canto I lança a batalha e simultaneamente o
fascinante poema homérico. Na sua origem estão duas mulheres: Criseida e
Briseida oferecidas a Agamémnon rei dos Aqueus e a Aquiles filho da deusa Tétis, como escravas ou concubinas. Por
via delas, os dois homens desentendem-se e o mal-entendido vai provocar um
conflito que envolve muitos povos, faz milhares de mortos e semeia ódios
violentos. Junto a Tróia, no fosso escavado para dificultar a entrada na cidade,
o rio que aí corre vai ficar muito tempo tingido do sangue dos mártires e dos
divinos comandantes. Do alto do Olimpo, Zeus Crónida assiste orientando as
operações segundo o jogo jogado dos mortais e dos imortais que junto dele vivem
e influem os heróis terrestres. Tididas e Atridas derramam o sangue dos jovens
guerreiros, no chão de batalha perecem os melhores efebos, numa luta que não
conhece tréguas, vigiada pelas divindades. Numa epopeia sem igual na literatura
mundial e particularmente europeia, Homero, qual deus de mil olhos, descreve
com magnificência o que acontece num campo e noutro. E fá-lo com maestria, comparando
a situação real, visível, vivida, pondo-a em paralelo com situações correntes
relacionadas com a vida animal, o movimento do vento, uma paisagem ao pôr do
sol, e nessa luta desnorteada os homens até chegam a combater contra os deuses
imortais como foi o caso dos Dânaos (Canto V, pág. 116). Um exemplo da
admirável capacidade visual e artística de Homero no Canto VIII, pág. 179,
ainda Pátroclo não fora morto às mãos de Heitor:
Mas
os Troianos com grandes pensamentos ficaram toda a noite
ao
longo dos diques da guerra e para eles ardiam muitos fogos.
Tal
como quando no céu os astros em torno da lua luminosa
aparecem
com nitidez, quando o ar não tem sopro de vento,
e
à vista surgem todos os cumes, os altos promontórios
e
as florestas; do céu se rasga o éter infinito, todos os astros
se
tornam visíveis e em seu coração se alegra o pastor -
assim
no meio das naus e das correntes do Xanto brilham
os
fogos que os Troianos fizeram arder diante de Ílion.
Mil
fogos ardiam na planície, e junto de cada um
se
sentavam cinquenta homens no clarão do fogo ardente.
E
seus cavalos mastigavam a branca cevada e a espelta
de
pé junto aos carros, aguardando a Aurora do belo trono.
No Canto IX rumina Aquiles: Só a mim tirou o prémio e ficou com a mulher
que me agradava. Refere-se a Agamémnon e murmura estas terríveis palavras: A morte chega a quem nada faz e a quem muito
alcança. (Pág. 189.) No Canto XI as coisas complicam-se, um cheiro
nauseabundo a morte percorre a frente de batalha e passa para as páginas que
vamos lendo sustendo a respiração. É então que recrudesce o ódio. Vindo das
montanhas do Ida, Íris de pés velozes como o vento, num fragor, incentiva
Heitor à refrega. Agamémnon rei dos Argivos anda por perto. Um homem destaca-se
para o combater, Ifidamante, filho de Antenor, um jovem criado na Trácia, que o
atinge sem o matar. Furibundo o Atrida tira-lhe a lança e deslassa-lhe os
membros junto ao pescoço, enviando-o para a casa de Hades. Abre caminho de
seguida através da turba ensandecida dos Aqueus de belas cnémides. Esbarra em Cóon,
irmão de Ifidamante que se quer vingar. Ele atira-se ao divino Agamémnon golpeando-o
no braço sob o cotovelo quase o matando. É então que surge Heitor do elmo faiscante
encorajando os Troianos, os Lícios e os Dárdanos ao combate. Os dados estão
lançados. A guerra está ao rubro quando no final do Canto XI Aquiles dos pés
velozes decide enviar Pátroclo dilecto de Zeus que encanta o seu coração, a
saber quem é o homem que foi ferido na batalha. Aquiles pressente ter sido
Macáon, filho de Asclépio. Pátroclo
obedeceu a seu companheiro amado / e foi a correr ao longo das tendas e das
naus dos Aqueus. Chegado junto Nestor de Gerénia, o emissário de Aquiles,
confirma os pressentimentos do seu amado ao reconhecer Macáon, pastor do povo
ensanguentado no chão. Reacende-se então ainda mais a luta. Heitor quer
vingar-se e procura na desordem da morte matar Pátroclo. Estamos no Canto XVI,
quando o inevitável acontece: Quando
Heitor viu o magnânimo Pátroclo / a retroceder, golpeado pelo bronze afiado,
atravessou / as falanges para se acercar dele e deu-lhe uma estocada / com a
lança no baixo ventre; a lança trespassou-o por completo. (Pág. 343) A
morte do amigo que Aquiles mais amava, vai desencadear a dor que os próprios cavalos de Aquiles, afastados do combate,
estavam / a chorar desde o momento em que primeiro ouviram / que seu cocheiro
tombara na poalha, chacinado por Heitor. Uma dor profunda, imensa,
insuportável, sacode Aquiles que decide vingar a morte daquele que jaz junto das naus o morto que não foi
chorado nem sepultado: Pátroclo. Dele me não esquecerei, enquanto eu permanecer
/ entre os vivos e meus joelhos mantiverem o vigor. / Se na mansão de Hades os
homens esquecem seus mortos, / eu pelo contrário até lá me lembrarei do
companheiro amado. Canto XXII, pág. 443. Segue-se uma semana de luto. Os
deuses desunidos, torcem ora por um lado, ora por outro. Mas Heitor tem a
sentença traçada: morrerá às mãos do divino Aquiles. Para tanto Tétis, a deusa mãe
de Aquiles, tudo tem feito. Dê-mos a palavra a seu filho:
Visto
que agora, ó Pátroclo, irei depois de ti para debaixo da terra,
não
te sepultarei, antes que para aqui eu tenha trazido
as
armas e a cabeça de Heitor, assassino de ti, magnânimo.
E
na tua pia funerária cortarei as gargantas a doze
gloriosos
filhos dos troianos, irado porque foste chacinado.
Até
lá jazerás assim como estás junto das naus recurvas;
e
à tua volta Troianas e Dardânias de fundas cinturas
chorarão
de dia e de noite, vertendo lágrimas,
elas
que nós próprios obtivemos pela força e pela lança comprida,
quando
saqueámos as ricas cidades de homens mortais.
Resta o Canto XXIV, o último, que narra a
morte do heróico filho de Príamo domador de cavalos à qual acorreram os outros filhos dos Aqueus, que contemplaram a estatura de
corpo e a beleza arrebatadora de Heitor. O cadáver é reivindicado pelos troianos
na figura do magnificente ancião Príamo ajudado pelos deuses que o convencem a
ir reclamá-lo a Aquiles. No fim da refrega, as hostes anseiam pelo descanso. Na
sua tenda, Aquiles é o único que não prega olho.
Dispersou-se
o certame e para as naus velozes se dirigiram
cada
uma das hostes; pensaram então em deleitar-se
com
o jantar e com o sono suave. Porém Aquiles
chorava,
lembrado do companheiro amado; e não o tomou
o
sono que tudo domina, mas voltava-se de um lado para o outro,
saudoso
da virilidade e da força potente de Pátroclo,
rememorando
tudo o que com ele fizera e sofrera
ao
atravessarem as guerras dos homens e as ondas dolorosas.
Quando chega perto de Aquiles, conta-nos
Homero (pág. 493):
Mas
quando afastaram o desejo de comida e bebida,
foi
então que Príamo Dardânia olhou maravilhado para Aquiles,
como
era alto e belo. Pois na verdade olhá-lo era ver um deus.
E
Aquiles olhou maravilhado para Príamo Dardânia:
fitou
o nobre aspecto e escutou as suas palavras.
Aquiles com grande nobreza de carácter,
pergunta ao senhor de Ílion:
Mas
diz-me agora tu com verdade e sem rodeios:
durante
quantos dias farás o funeral do divino Heitor,
para
que eu próprio aqui permaneça e retenha o exército.
Resposta:
Durante
nove dias choraremos no palácio;
ao
décimo dia faremos o funeral e a refeição do povo;
ao
décimo primeiro dia far-lhe-emos a sepultura;
e
ao décimo segundo dia combateremos, se for preciso.