Terça, 21.
Ontem, durante a cerimónia de atribuição
do prémio Gulbenkian ao Dr. Denis Mukwege pelo trabalho meritório a favor das
mulheres violadas sexualmente no Congo e em outras partes de África onde impera
a guerra e crenças que urge erradicar, o ilustre médico e dirigente do hospital
de Panzi fez um discurso extremamente importante, todo em francês, talvez
demasiado longo para aquela circunstância, que a grande maioria do auditório
não compreendeu. E foi pena, muita pena. Porque ele disse coisas de abalar
qualquer coração mesmo o mais endurecido e deixou expostas as feridas e os
abusos por que passa a mulher africana. O mundo dito civilizado parece
indiferente ao destino de um povo dos mais nobres. Que Portugal o reconheça é
factor que engrandece não só Calouste Gulbenkian, como cada um de nós. Gostaria
que a Fundação o traduzisse e o publicasse pela enorme importância das suas
palavras e pelo testemunho de alguém que desde ameaças de morte a problemas de
toda a ordem tem enfrentado. Para o apresentar, Jorge Sampaio, enquanto membro
do júri. Fez também um discurso muito bem pensado e escrito. Foi um prazer
vê-lo e ouvi-lo. Pareceu-me mais remoçado desde a ultima vez que o vi.
- O Dia Calouste Gulbenkian, fechou com a orquestra da Fundação,
dirigida pelo jovem maestro Jan Wierzba, que no palco distribuiu alegria e
talento. El amor brujo teve quanto a
mim momentos bons e outros menos bons. Em compensação o excerto da Cavalleria Rusticana de Pietro Mascagni
– o Intermezzo – deixou-me suspenso no limiar da convulsão. Tratando-se de um
programa ligeiro, pensado para um público que habitualmente não frequenta as
salas de concerto da Gulbenkian, as áreas cantadas pelo tenor Carlos Cardoso,
groso modo, não me convenceram. Pareceu-me que o espectáculo ou até um certo
virtuosismo chegado ao popular, é inimigo da consistência dramática e da
modulação que transporta a emoção. Nem uma nem outra chegou até mim.
- Jantei no Corte Inglês onde de resto havia almoçado com uma amiga.
Depois fui a pé até ao Campo Pequeno onde tinha deixado o carro. Corria uma
aragem tépida, as esplanadas ao longo das chamadas avenidas novas não estando
cheias tinham, todavia, clientela bastante para dar à noite um perfume de
antanho. Caminhava no meu caminhar tranquelabancas feliz ao longo das ruas como
se estivesse detentor do sentimento estranho de nunca ali ter estado e tudo
aquilo – o ar que respirava, o perfume das árvores, o céu estrelado, o falar
das pessoas, a arquitectura, o traçado das praças e avenidas, a brisa que
redemoinhava no pavilhão auricular, o tapete do chão – fosse uma invenção, uma
estação qualquer num qualquer país longínquo que obra sobrenatural me dava a
conhecer. Dentro do carro, sobre a ponte onde se reflectia a cidade que não
dorme, e faltavam aquelas luzinhas azuis do início, seguia envolto num manto
diáfano, espécie de sobrepeliz que celebra a magia do momento que as palavras
por muito fortes que sejam não traduzem. Do horizonte estrelado, estatelando-se
nas vilas e cidades, vinha um silêncio imaculado, uma luz cintilante, pura, que
abraçava a terra. Já perto de casa, depois de me ter desembaraçado do tumulto
respirei outra noite, outro céu, outro silêncio e o mundo com seus
desassossegos e guerras, sangue e lágrimas, quedou-se por instantes abençoado
pela magia que a noite difundia abençoando árvores, terra e homens.
- Na
Grécia entraram em vigor as normas garrotais. O iva passou para 23 por cento
como aqui. Lá, contudo, este aumento vai tornar os gregos ainda mais inimigos
de pagar impostos. Um país que de cima abaixo sempre fugiu deles, com estas
medidas o Estado que não possui meios de controlar os infratores, vai ter menos
dinheiro.