quarta-feira, outubro 31, 2018

Quarta, 31.

Manhã, só, em casa não querendo acompanhar os meus amigos a Cambrai. Silêncio quebrado pelo chilrear da passarada nas árvores. Longas horas de trabalho no romance. Final hesitante, terrível com a morte de Lúcia pelo marido. Salvá-la-ei eu? Há meses que penso que destino dar a esta mulher alucinada de sentimentos, livre de afectos, ambiciosa e sensual. Em certo sentido Rui mata-a para preservar Flávio. Razões complexas que radicam em problemas mal resolvidos na adolescência, empurram-no para aquele acto bárbaro.

terça-feira, outubro 30, 2018

Terça, 30.
A biblioteca pessoal de François Mitterrand está a ser vendida aux enchères. A decisão pertence ao seu filho Gilbert. Se registo este facto, é para, mais uma vez, me alertar a mim e a outros da minha geração, o desprezo que os livros têm nas gerações actuais e também a filosofia política dos ignorantes que nos governam. Pois o que seria natural - sobretudo tendo em vista quanto Mitterrand fez pela cultura, o facto de ter sido Presidente da República, inclusive ter construído uma grande biblioteca púbica com o seu nome -, era o Estado se chegar para salvar o seu precioso património. Este está a ser dispersado sem redenção possível. Um vazio imenso e incalculável em termos futuros, ameaça a história humana, social e política que fica deste modo órfã do seu passado.


         - Robert é um puro ornitólogo. Há instantes fomos dar um passeio pelo Parque da Courneuve. Apesar da chuva que caía em vez da neve esperada, ele parava a cada instante para admirar os pássaros e toda a sorte de aves. Os seus olhos brilhavam de prazer, de ternura por estes seres de uma beleza diáfana. Ele conhece os nomes da maior  parte e é capaz de ficar horas a estudar-lhes os voos e os mínimos movimentos. No centro da França, fortes nevões paralisaram a circulação deixando centenas de camiões e automóveis à mercê da intempérie. Felizmente, nós vamos quinta-feira para Quiberon onde espero não encontrar tanto problema.  
Segunda, 29.
Sob um frio arrasador, na companhia de Robert e Francis que apareceu de improviso para me ver, fui ao centro da cidade opinar da escolha de um aparelho de cozinha para o nosso amigo. Depois vagueei pela Place Clichy e desci a S. Michel para almoçar e procurar as Memórias de Simone de Beauvoir para oferecer a Annie. Aos livros dediquei uma parte substancial da tarde, antes de me sentar num bistro diante de um chocolat chaud a ver a vida terminar gélida debaixo dos meus olhos iluminados pelo prazer do movimento das ruas, das pessoas, das luzes, da noite descendo sobre o Sena.

         - Se os meus sentidos flutuam felizes nos dias ternos que me cabem, o mundo resvala cada vez mais para o suicídio colectivo. Só este fim-de-semana morreram 11 pessoas no atentado à sinagoga de Pittsburgh, nos Estados Unidos. Um louco anti-semita, munido do arsenal necessário, gritando “todos os judeus têm de morrer”, disparou em todas as direcções. Foi ferido e capturado. O que se segue vai de par com o seu gesto. Mas também um avião da Indonésia caiu com 189 pessoas a bordo. Pensa-se que não há sobreviventes.


         - Como se previa, graças às loucuras da esquerda brasileira, Bolsonaro ganhou confortável com 55 por cento dos votos. Do que leio na imprensa portuguesa, os velhos do Restelo, crispam-se com a vitória e disparam bombas nucleares sobre o mandato do vencedor. Nenhum faz meia-culpa pelos erros praticados, os roubos e os abusos do poder da esquerda que sustentou Lula da Silva. São fortes na propaganda, fracos no reconhecimento da vontade do povo em eleições livres.
Domingo, 28.
De abalada ao 15 bairro, o sítio de eleição de Georges Brassens, onde ele viveu e conheceu os primeiros amores, no extremo da cidade, com o intuito de conhecer a feira semanal de livros velhos e novos. Trata-se de um espaço oposto à Porte de Versailles, levantado ao fundo do jardim com o seu nome, onde para lá chegar temos de caminhar uma boa meia hora. O jardim não oferece nada de especial à parte o perfume de uma Paris operária, pobre e constituída para dar o mínimo conforto aos seus habitantes. A parte reservada aos livros, estende-se por uma língua de terreno, protegida por coberturas de folha de ferro, aberta, alçada por escadas e com vista para uma parte ajardinada. Os boquinistas, a maioria de idade avançada, oferece uma vasta variedade de temas imperando os livros de arte a preços proibitivos. Eu percorri uma a uma as mesas cheias de in-fólios e saí sem adquirir um só. O que me interessava começa em 30 euros, depressa me apercebi que é nas livrarias de Quartier Latin que encontro a preços cordatos o que procuro. Mas valeu a visita à zona que conserva o cheiro do passado, quando o artista por lá joeirava, de cachimbo na boca e aquele ar ausente e suave que todos conhecemos, levantando do chão de trabalho os belos poemas que imortalizou em canções.

         - A Annie perguntou-me se tinha notícias do meu país. Respondi que não, acrescentando que sei de antemão o que por lá se passa. Ela quis saber mais e eu disse: os tribunais devem ter condenado mais um político ou gestor público por roubar uns milhões; as pessoas devem ter denunciado mais uma mentira dos governantes, Marcelo deve ter distribuído afectos aos rodos, os noticiários das estações de televisão devem ter dado o espectáculo de famílias desavindas, o Benfica deve ter ganhado ao Galinheiros, as aventuras sexuais de Ronaldo devem estar ao rubro e assim.

         - O frio apertou, as temperaturas desceram a pique. É provável que neva durante a noite. Madame Castelain veio almoçar cá a casa.


         - “La volonté de Dieu n´est pas une créature, mais elle est avant toutes les créatures, puisque rien ne serait créé la volonté du Créateur ne précédait cette création.” Santo Agostinho, A Criação do Mundo e do Tempo.
Sábado, 27.
Numa tarde sem sol, depois de sairmos da exposição Paula Rego no Museu de  L´Orangerie (já lá vamos), Robert e eu, descemos das Tuileries à Place de la Concorde  e depois aos Champs-Élysées. Longo passeio debaixo de um vento vivificante, que nos transportou pela famosa avenida, do Obelisco de Luxor que os egípcios ofereceram a Napoleão Bonaparte, à Place Clemenceau. O meu amigo, a dada altura, estendeu-se ao comprido; eu com outros passantes ajudámo-lo a levantar-se. Sob riso louco, eu ia provocando-o: “Tu que tens 45 de pé, dois metros de altura, cais e és ajudado por um coxinho, coitadinho! Essa agora não lembra ao diabo!” À chegada a casa, começou a tombar uma chuva miudinha.

         - As sessenta telas da nossa artista, ocupam várias salas do museu. Algumas já conhecia, a maior parte não. Muitas são antigas, outras datam de 2011. Todas, que me perdoem os entendidos, são retratos vivos da vida tal qual a viveu ou viu viver Paula Rego. São tratados humanos, tirados muitas vezes das suas leituras, mas também da sua infância, das suas loucuras, do seu desprezo pelos imbecis, os tiranos, os medíocres. Um cosmos de horror, de humor, de ternura despega-se dos quadros, não nos deixando indiferentes, arrastando-nos para um mundo onde Portugal consubstanciado nas relações familiares e políticas da pintora revive. O Portugal de Salazar, satirizado por figuras grotescas, o familiar tecido sombrio de El Greco, personagens impressionantes vestidas de cores alegres e tecidos de cetim aveludado contrastam com o ambiente umbroso e surrealista. Pena que as legendas não estivessem também em português, juntando as suas origens ao internacionalismo de que a artista beneficia. A crítica daqui diz que “son oeuvre se situe à la jonction improbable entre le baroque, catholique, sensuel, hispanique et le vérisme dur et austère de l´École de Londres”. Será? Esta série de telas centrada na família, ilustra bem o que acabei de escrever.   






         - Na véspera de sair, estando carregado, fui procurar um táxi à praça do Pinhal Novo. Na fila a aguardar passageiros, estavam cinco carros. Perguntei a uns e a outros quanto me levavam para me deixar no aeroporto. Os preços iam de 45 e 55 euros, praticamente o preço do avião Lisboa/Paris. “O senhor não é obrigado a ir de carro de praça”, disse um gorducho falando alarvemente. E continuou: “Vocês agora habituaram-se ao táxi.” Impus-me e ele: “Pois fique sabendo se algum dia me vier pedir para o levar a qualquer lado, eu não o levo.” Resposta dos obtusos da cauda: “Assim é que é falar.” Cheguei a casa, pesquisei na Net e optei pela Gettransfer e de pronto veio um carro à minha porta por... 27 euros! Passei a ser cliente.