Sexta, 19.
Ontem
fui ao dentista e antes passei na Brasileira para falar ao Virgílio e a tutti quanti. Na sala de espera, o
incontornável aparelho de televisão a entreter a dor e a demora. Que ridículo!
Que espectáculo dantesco! Que atentado à inteligência! Em redor dos
entertainers, um friso de mulheres exibindo a menopausa sorridente, batendo
palmas e abanando com a cabeça em concordância com o que via e ouvia. E o que
era? Uma palete de palavreado oco, misturado com piadas mais ou menos
perversas, de uma aridez confrangedora. Pior: os apresentadores tinham-se em
muito boa conta, gozando cada pensamento profundo, explicando e garantindo com
mediocridade total o pobre salário que auferem. As televisões descobriram a
pólvora na forma sagrada de a santa família. Eles fazem aquelas piruetas para a
família, é em família que estão, é pela família que se travestem, dão chorudos
prémios, chamam a nata dos artistas pimba, é pela família que escolheram a
vulgaridade, porque a família anda muito desnorteada e não está para ouvir
coisas puxadas à sustância. Tudo é construído pela raiz, cediço, razia de ideias, coisinhas banais que
distraem milhares das mentiras do falso progresso, do amor abençoado que une
parentes, filhos e pais, refazendo a divisa: Deus, Pátria, Família tão caro ao
fascismo.
- Agora que não tenho tantas
responsabilidades no campo, reencontrei-me com as manhãs sossegadas do sono.
Quando antes me levantava pelas seis, faço-o agora pelas oito. Hoje dormi de
uma assentada nove benditas horas. Envelheço regressando à minha juventude
bravia e intrépida.
- Ambiciono ler de fio a pavio Michel
de Montaigne. O ano passado adquiri em Paris os Essais. É um grosso volume com mil trezentas e cinquenta páginas da
edição da Gallimard que me vai simultaneamente fazer mergulhar em Séneca,
Cícero ou Sócrates – os meus mestres de
vida.
- Talvez em Paris os deuses me deem a
paz necessária a consumação de O Juiz
Apostolatos. Antecipo em felicidade as horas fechado no meu quarto azul,
tendo o parque de la Courneuve para estender os olhos cansados da folha do
computador e o espírito resoluto de criação galopante.
- Conceição mais bonita que nunca.
Encontrámo-nos para um chá no pequeno café do primeiro andar do Corte Inglês.
Durante duas horas pusemos a conversa em dia, tocando tantos temas que seria
impossível traçá-los nesta página. Justamente, a amizade faz-se de silêncios
cheios de palavras. Palavras habitadas da voz das recordações, dos silvos do
vento, das imagens que perduram. E também das reservas, do que se pressente, do
que se esconde e nos separa e acaba por unir – pontes sobre os espaços de
abismos, desfiladeiros ternos da nossa condição de humanos.
- Assim comigo. Há três anos que
ignoro os apelos do Príncipe depois da história da nossa ida – Conceição e
minha – a sua casa de campo, perto de Sintra. Todavia, quando a amiga comum me
comunicou o estado de saúde em que se encontra a mãe do Príncipe, logo lhe
mandei um sms confortando-o. Não guardo rancores a ninguém. A vida é tão curta
que melhor é aligeirar ódios e maledicências como nos ensina o Pai Nosso: “Perdoai as nossas ofensas
assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido...” Mateus é claro e os outros
Apóstolos não o desmentem.