Sexta,
26.
Cambrai.
Manhã de trabalho no Cygne para onde arrastei os meus amigos. Neste refúgio
original, de ano para ano, nada muda. Reconheço os donos da brasserie, os clientes, a decoração. Até
o clima com o céu cendrado, as casas de tijolo, o ar de província trabalhadora,
os homens vestidos de escuro, as mulheres mais gaiteiras exibindo grandes
tatuagens nas pernas é imutável. Estou sentado no lugar onde costumo sentar-me
sabendo de antemão que ele me esperava. Estava livre hoje como o ano passado
esteve, enquanto em redor praticamente todas as mesas encimadas por etiquetas
rigolôs ocupadas. Aperto mãos sapudas que me vêm cumprimentar como se eu fosse
um deles; no balcão, Place de la bière,
acumulam-se homens de todas as idades, a cerveja corre, o bom humor instala-se.
Não tarda bate uma hora e Annie e Robert entrarão para o almoço que eu quero
oferecer-lhes neste lugar original, frequentado visivelmente por gente de
direita, mas nem por isso menos livre e simpático.
- Recebi os exames médicos anuais. A
princípio pensei ter havido engano, mas quando me repetiram que eram mesmos
meus, fiquei estupefacto. Eu e o meu médico. Aquilo é coisa de um rapaz de 20
anos bem comportado e prova que a minha forma de vida, a minha dietética, é
eficaz. Continuo a não tomar nenhum medicamento, não me lembro de ter engolido
uma simples aspirina. Tenho 167 de colesterol, peso 64kg, tensão entre 12-13 e
7,5-8, glicose 88 e passo. Apenas uma coisa tenho perdido: o cabelo. Se tivesse
paciência, iria apanhá-lo pelos sítios por onde o deixei. Como não é possível,
conforma-te. E diz todos os dias: os anos, a velhice que se aproxima a passos
largos, é um estado maravilhoso a que todo o ser humano ambiciona chegar.
Quanto ao mais, encara a morte como algo natural. Só falece quem um dia nasceu.
A morte não é condição dos velhos, é destino de qualquer ser vivo.
- Que bem estive ontem no café La
Fontaine a ver a noite descer sobre o boulevard Saint Michel! Aquele bistro
onde eu ia algumas vezes com o Eugénio nos dois anos em que ele apareceu por
cá, a mochila plena de livros, sentado na primeira mesa junto à entrada, tendo
à esquerda o balcão das apostas que os pobres desafiam não imaginando o que é
ser rico e o vazio que uma tal condição transporta. Havia na atmosfera algo de
provinciano, de risonho, de convívio simpático, como se o empregado que lhes regista
o boletim, tivesse o condão de lhes oferecer a felicidade que todos julgam
estar na volta de um dia de sorte. Quando por fim a noite se acomodou e as
luzes se acenderam e os carros que não paravam de passar ligaram os faróis, a
clientela escapuliu-se por entre os fios da pressa, metro abaixo, a rua serenou,
enfim, como se fosse um qualquer lugar perdido numa cidade sem nome, ergui-me e
desci às catacumbas do metropolitano de volta a casa. O frio começa a apertar.
- Os franceses que não gostam nada da
Polícia, chamam às lombas das estradas e parques de estacionamento: “gendarmes couchés”.