terça-feira, outubro 30, 2018

Sexta, 26.
Cambrai. Manhã de trabalho no Cygne para onde arrastei os meus amigos. Neste refúgio original, de ano para ano, nada muda. Reconheço os donos da brasserie, os clientes, a decoração. Até o clima com o céu cendrado, as casas de tijolo, o ar de província trabalhadora, os homens vestidos de escuro, as mulheres mais gaiteiras exibindo grandes tatuagens nas pernas é imutável. Estou sentado no lugar onde costumo sentar-me sabendo de antemão que ele me esperava. Estava livre hoje como o ano passado esteve, enquanto em redor praticamente todas as mesas encimadas por etiquetas rigolôs ocupadas. Aperto mãos sapudas que me vêm cumprimentar como se eu fosse um deles; no balcão, Place de la bière, acumulam-se homens de todas as idades, a cerveja corre, o bom humor instala-se. Não tarda bate uma hora e Annie e Robert entrarão para o almoço que eu quero oferecer-lhes neste lugar original, frequentado visivelmente por gente de direita, mas nem por isso menos livre e simpático. 

         - Recebi os exames médicos anuais. A princípio pensei ter havido engano, mas quando me repetiram que eram mesmos meus, fiquei estupefacto. Eu e o meu médico. Aquilo é coisa de um rapaz de 20 anos bem comportado e prova que a minha forma de vida, a minha dietética, é eficaz. Continuo a não tomar nenhum medicamento, não me lembro de ter engolido uma simples aspirina. Tenho 167 de colesterol, peso 64kg, tensão entre 12-13 e 7,5-8, glicose 88 e passo. Apenas uma coisa tenho perdido: o cabelo. Se tivesse paciência, iria apanhá-lo pelos sítios por onde o deixei. Como não é possível, conforma-te. E diz todos os dias: os anos, a velhice que se aproxima a passos largos, é um estado maravilhoso a que todo o ser humano ambiciona chegar. Quanto ao mais, encara a morte como algo natural. Só falece quem um dia nasceu. A morte não é condição dos velhos, é destino de qualquer ser vivo.

         - Que bem estive ontem no café La Fontaine a ver a noite descer sobre o boulevard Saint Michel! Aquele bistro onde eu ia algumas vezes com o Eugénio nos dois anos em que ele apareceu por cá, a mochila plena de livros, sentado na primeira mesa junto à entrada, tendo à esquerda o balcão das apostas que os pobres desafiam não imaginando o que é ser rico e o vazio que uma tal condição transporta. Havia na atmosfera algo de provinciano, de risonho, de convívio simpático, como se o empregado que lhes regista o boletim, tivesse o condão de lhes oferecer a felicidade que todos julgam estar na volta de um dia de sorte. Quando por fim a noite se acomodou e as luzes se acenderam e os carros que não paravam de passar ligaram os faróis, a clientela escapuliu-se por entre os fios da pressa, metro abaixo, a rua serenou, enfim, como se fosse um qualquer lugar perdido numa cidade sem nome, ergui-me e desci às catacumbas do metropolitano de volta a casa. O frio começa a apertar.


         - Os franceses que não gostam nada da Polícia, chamam às lombas das estradas e parques de estacionamento: “gendarmes couchés”.