terça-feira, outubro 30, 2018

Quarta, 1 de Agosto.
Do nunca visto. Duas moções de censura na mesma sessão do Parlamento Francês. Cairá o rei? Claro que não. Pelo menos por enquanto. 

         - Ameaçam-nos com temperaturas a partir de hoje e até domingo a chegar aos 40 graus centígrados!

         - A Dona Catarina do BE, veio penitenciar-se ao modo do MRPP de Arnaldo de Matos, o grande educador da classe operária. Disse a crescida senhora que fez “um erro de análise” ao afirmar que Ricardo Robles tinha condições para se manter como vereador na Câmara de Lisboa, concluindo que “a contradição era muito grande” entre o negócio e a doutrina defendida pelo partido. Ó tempo volta para trás ! A vida política portuguesa é tão ridícula !
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Quinta, 2.
Como estamos em férias, ocupemo-nos de coisas ligeiras. O banqueiro diz que não precisa do Sporting, que o move a grandeza e honra do clube. Com estas divinas e sinceras intenções, engrossou a equipa de suplentes ao cargo de Presidente. Imagino que dispense como Trump o ordenado de dez mil mais o resto que parece ser a esmola que o clube paga ao seu dirigente máximo. Dos que eu palpitei candidatar-se ao pódio, já só falta o senhor dez por cento, perdão, o bombeiro.

         - O senhor Robles, quanto mais não fosse para calar a matéria inorgânica do CDS, interessada na especulação imobiliária, com lei a condizer, devia, se me permite caro vereador, a parte que lhe cabe no negócio chorudo do prédio, revertê-la para os pobres da capital. Fazia a diferença relativamente à canarinha da direita oportunista.

         - Marcelo que se apressou a receber e condecorar o grupo de jovens “promissores” que ganharam um qualquer campeonato que eu não percebi bem qual era, diz que o futuro de Portugal está ali, naquele friso de rapazes a correr atrás de uma bola. A Ciência e a Cultura, que arrastem os pés a mendigar os tostões. Primeiro o futebol, depois tudo o resto. Se isto não é demagogia, o que é?
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Sexta, 3.
Férias é um tempo para esquecer tristezas e saborear asneiras. A propósito do clima e da alegria das televisões em terem, enfim, tema para entreter as multidões fechadas em casa ao comedouro dos ecrãs, e ainda para animar as hostes de “jornalistas” e “especialistas”, estes com o seu minuto de glória. Uma dama engalanada, veio-nos prevenir que as poeiras vindas de África são extremamente prejudiciais à saúde, sobretudo, para os que sofrem das vias respiratórias; outra, mais concentrada, disse que as poeiras não atingiriam os seres humanos por se manterem muito altas e assim  não prejudicam as pessoas. Só não vieram os imprescindíveis psicólogos que tanto sabem de tudo.

         - No afã de incitar Marcelo Rebelo de Sousa a recandidatar-se, o Governo do Mágico, com o seu inefável Ministro do Interior à cabeça, desdobra-se em tratados de prevenção contra fogos. A coisa é tal, que a Protecção Civil mandou 1.359 milhões alertas (Público de hoje) de incêndio por SMS à população de Faro e Beja. Com um pormenor que define a natureza habitual do funcionalismo no nosso pobre país, o número incorrecto. Ou antes era o número de telefone de uma empresa de reparação de vidros para automóveis. Conclusão: os empregados da Glassdrive gastaram o seu caro tempo a atender os aflitos... dos incêndios.

         - Continuemos de férias. O Governo do Mágico com o Ministro do Interior na dianteira, juraram durante os dramáticos fogos do ano passado e quando toda a gente atribuía  grande parte da desgraça às comunicações, que o controlo do SIRESP, devia passar em pleno para o Estado. Conhecemos agora a sequência: a Altice (entenda-se a PT) e os outros sócios adquiriram a totalidade do sistema na batalha que o Estado queria e devia ganhar. Aqui também há um detalhe (os detalhes são sempre algo que os Governos guardam para si como troféus de imagem) o Estado que havia consagrado no melhoramento das redes um total de 8,2 milhões de euros até 2021, saiu “vitorioso” por ter conseguido dois membros na comissão executiva da SIRESP. O secretário de Estado, falando às televisões para que o povo o escutasse, destacou as “redundâncias” para dar fiabilidade à rede. O povo sorriu de contentamento e entendimento. 

         - O Papa Francisco destaca-se pela sapiência em sentido contrário ao estabelecido canónico, anunciou que a pena de morte é inadmissível em qualquer situação. Tal como Jesus, também Francisco põe a vida humana acima de qualquer percalço existencial, mesmo quando alguém comete um crime grave. É o ponto final sobre o assunto. Neste aspecto, a Igreja nunca havia sido tão clara como agora com o presente Papa.

         - Por aqui, os termómetros atingiram os 46 graus.
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Sábado, 4.
A cruel Volta a Portugal em Bicicleta é um crime, um assassinato por um tempo de fogo e canícula pura. O desporto sob as ordens ditatoriais das empresas e produtos.

         - Um grande fogo eclodiu na Serra de Monchique, anteontem. 700 bombeiros, talvez justificando a sua existência, combatem o incêndio. O Presidente está de férias no lugar dos crimes do ano passado, mas nenhum dos políticos por ele incentivados a seguir-lhe os passos apareceu até hoje. Que ideia aquela! Então não é no Algarve que durante quinze dias se destilam invejas e ódios, senhor Presidente!

         - Apesar do calor insuportável, tenho conseguido dormir sete horas seguidas embora... nu sobre a cama.
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Domingo, 5.
Devido aos 48 graus celsius, a vida alterou-se. A água que sai da torneira, parece ter passado pelo esquentador de tão quente, o ar paralisa-nos, o Black que costuma adorar o sol, resguarda-se debaixo do aparelho de climatização que tenho na cozinha, as abelhas deixaram o exterior e optaram pelo interior do salão às centenas, as plantas regadas abundantemente de manhã, envelhecem à tarde, as hortências morreram, os limões caiem juncando o chão, as maçãs idem, não corre uma brisa por poética que seja, só deito o nariz de fora depois das seis da tarde, em casa estou submerso nas sombras. Como alimentação legumes: endívias, alface, tomate, pepino, beterraba... fruta: uvas, maçãs, amoras, melão, cerejas, nozes... O nec plus ultra deste tempo? Desforrar-me a dormir.

         - Todavia, penso que a noite passada foi a mais quente. Quando subi para descansar depois de ter visto na 2 uma excelente mise en scene da obra de Bizet, Carmen, de Kasper Holten, com um arrojo de cenários e interpretações fabulosas com um senão para o interprete na personagem de Dom José, o termómetro do quarto registava 27 graus. Adormeci logo. Acordei pelas cinco a transpirar, liguei a ventoinha e abri a janela. Mergulhei no sono, mas na forma de uma noite mal dormida.

         - Como eu aqui previ, a Coreia do Norte não suspendeu o seu programa nuclear. E fez bem. Dir-me-ão King Jong-un é um louco e tudo pode acontecer. Replico: e Trump? Além que o norte-coreano tem tanta razão para manter os mísseis como os Estados Unidos ou outro qualquer país. Como eu costumo dizer, não há armas nucleares benignas e outras mortíferas.
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Segunda, 6.
No fim, o que os técnicos da Protecção Civil queriam dizer a Marcelo que se ofereceu para visitar a zona, era isto: “Não venha para cá importunar quem trabalha no terreno com os seus afectos.” Eles vão no quarto dia e quatro noites de luta contra o incêndio na Serra do Monchique. Dir-se-ia que com a sua presença o Presidente da República evita que alguém propague fogos... Ele está onde nenhum político quer estar de férias – naquele horror calcinado que deve dar dor de coração olhar. De facto, não há memória de uma quentura assim. Pela primeira vez, a noite passada não suportei os 27 graus que tinha no quarto. A dada altura abrir a janela, mas nem assim consegui retomar o sono. Às seis da manhã levantei-me, tomei o pequeno-almoço e fui regar. Antes, porém, abri portadas, janelas e portas. Devem ser ao todo 16 em cima, 18 em baixo. Como tinha aprazado a inspecção ao carro para as nove horas, às oito peguei no dito cujo e avancei para a saída. Só então vi que tinha o caminho barrado com o braço enorme de um cedro. O calor começava a apertar, maldisse o campo, a motosserra que não tinha culpa da minha inaptidão para as ferramentas. Esquecera-me onde se punha a gasolina. Telefonei ao centro de inspecção a adiar a hora e esperei pelas nove para perguntar ao vendedor como funcionava o objecto. Estava danado comigo, o campo, a motosserra, o calor. Como afinal o instrumento não trabalha sem uma mistura de óleo e gasolina, veio um funcionário cá a casa trazer o alimento. Foi-se brusco, deixando-me a tarefa a mim. Estive uma data de tempo a namorar a magarefe, perguntei-lhe: “Por onde te posso dar o leite da manhã que necessitas para trabalhar?” Mira daqui, mira dali, até que percebi onde e como devia introduzir o líquido. Pensei que estava salvo, o suor corria-me em bica por tudo quanto era poros, o sol queimava já. Qual quê! Apesar de bem alimentada, a fulana não ousava dar corda aos pés e fazer-se ao trabalho. Mas tinha razão. Eu havia esquecido todos os movimentos e quanto mais puxava a corrente, mas a gaija se encolhia qual dama ferida no seu orgulho machista. Por fim, toquei em dois botões e iluminou-se-me o espírito: eram eles que combinados punham a corrente em movimento. Ufa! Orgulhoso da minha imensa inteligência e coragem, dirijo-me à árvore de braço pendente. Pareceu-me que a vi rir, mas não posso garantir. Assento os dentes no ponto que me pareceu mais ajustado, oiço um barulho estranho mas continuo. A dada altura, a trabalhadora parou imobilizada no tronco. “Como te tiro eu daí”, praguejava. Todos os esforços e movimentos, mostravam-se vãos – a rapariga ficara de pernas abertas num escárnio de vício lá no alto. Vou buscar um escadote, subo e faço grandes movimentações ao tronco de forma a soltá-la. Nada. Absolutamente nada. Começo a ficar esgotado, o suor corre-me do rosto em bica. Decido voltar à escuridão do salão a recuperar forças. Tomo um café, leio duas páginas à luz do candeeiro no romance de João Tordo, Três Vidas. Refeito, vou ao encontro do cedro enxertado de motosserra. Miro-o de todos os lados a estudá-lo. Apercebo-me então que ficou a faltar uns centímetros dos músculos do braço para extrair. Volto a descer do escadote, convencido que tenho força para torcer aquele emaranhado de fêvera e pele. Oiço – ou penso – uma forte gargalhada. Estou numa luta, só agora entendo. Volto à cozinha, bebo um grande copo de água fresca e retiro de uma gaveta um pequeno serrote de mão. Com ele tento acabar a parte que ficou suspensa da amputação quase conseguida. Invoco todos os deuses em primeiro o meu Deus. Que desçam do céu ou dos buracos da terra em turbamulta para me fazerem sair daquele impasse. Passa das dez da manhã. Estou nisto, portanto, desde as oito – esgotado. O pequeno serrote, apesar do enorme esforço, decide fazer companhia a sua irmã potente. Ficam os dois encavalitados no coto ferido da árvore. Mudo o escadote para o sentido oposto e, milagre, o serrote pequenote decide agarrar-se à minha mão. Rejubilo. Quase me apetece beijá-lo. Desço e vou abanar com as forças que me restam a cauda verdejante que está estendia no caminho. Pareceu-me que qualquer coisa se mexeu lá no alto. Torno a montar no escadote e vejo que, de facto, aconteceu uma folga. Pego-me a essa folga, faço tudo para que a serra desça do tronco. Nada. Ensaio ainda encadear a máquina com um olhar que passou pelo simpático, contemplativo e por fim furioso. Nada. Vou de volta e no chão onde as barbas eram mais que muitas, agito-as com garra. Subo depois para ver o que aconteceu, dou jeitos ao aparelho e, ó felicidade, este pega-se-me às mãos. Desço, contente. Torno a tentar pô-la a trabalhar. Ela aceita a minha bravura e colabora. É então que opto por escolher outra parte do braço já sem vida. Num refulgir colaborante, a serra pega-se à madeira para só a largar quando o sangue alastrava na terra. Ufa! Mil vezes ufa! Puxo o resto do corpo exangue para o lado, de modo a desimpedir o caminho, deixando o coto agarrado a seiva da mãe. Depois, mais calmo, tentei tirar lições deste longo rosário. “Não te lastimes, homem de Deus, tiveste sorte e contastes com a protecção divina. Imagina que o pesado lenho se despegava do alicerce central no momento em que passavas a pé ou de carro!” Outra lição a esta associada. A viatura, sem ter que deixar 120 euros no mecânico, passou pelo quinto ano na inspecção. Conclusão, já economizastes quinhentos euros. Venha mais um ano! Quanto ao mais, vou fazer como o gato: dormir.
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Quarta, 8.
O fogo que lavra há vários dias na Serra de Monchique e ameaça continuamente as povoações por onde passa, surgiu do nada. Ninguém ainda nos explicou como foi possível uma tal tragédia, num ano onde os Governo, Presidente da República, Protecção Civil, departamentos administrativos, bombeiros e autarquias nos prometiam sossego e paz depois de o último Verão negro e trágico. Acrescente-se que nunca se gastou tanto dinheiro em prevenção, viaturas, aviões e logística. A mim isto causa-me estranheza. O incêndio deixou o Norte para se instalar no Sul. Quem estará por detrás disto tudo? Que forças se movimentam para destruir a pouco e pouco a democracia pondo no seu lugar um regime corrupto, constituído de comadres, capitães, soldados rasos todos a soldo de interesses criminosos. Será que o país tornou-se ingovernável e não há estruturas políticas e políticos independentes que possam enfrentar os assassinos? A máquina é tenebrosa, está instalada e só uma ditadura vai conseguir afastar os monstros que a engordam com a avidez dos sanguinários. Entretanto, como sempre acontece em Portugal, debatem-se de novo estratégias, cada um apresenta a sua e o fogo passa por entre a vosearia colectiva de gestores e governantes. O que até aqui parecia consensual, está uma vez mais posto em causa conspurcado por interesses corporativos e empresariais de muita ordem. Este país devia fechar ou juntar-se a Espanha. Pelas reacções das pessoas aflitas, ninguém confia na GNR nem nos operacionais “especialistas” do fogo e muito menos nas autarquias. Estamos num impasse colectivo.
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Quinta, 9.
Quebrei de propósito a disciplina, esse garrote de forças em que vivo quotidianamente, e quedei-me sem horário nem funções emergentes, num dos quartos de hóspedes onde dormi de ontem para hoje. Nunca tal havia feito, mesmo quando de sábado para domingo da semana passada o calor se tornara insuportável e não me deixara sossegar de noite. Aquela divisão deve ser a mais fresca de toda a casa, com duas janelas voltadas uma a Norte, outra a Sul. Repousei sem nada a cobrir-me, de calções e descansei como um justo. Acordei pelas sete da manhã e desci para tomar o pequeno-almoço, seguiram-se as regas e o final da decapagem da piscina. Não me sentia cansado, o dia tinha crescido fresco, com a aragem forte a escovar a casa em todos os sentidos. As janelas de cima e de baixo abertas de par em par contribuíam para arrefecer todo o edifício. Pelas nove a Piedade telefonou a dizer que não podia vir e eu tomei a sua decisão como signo de um começo de dia majestoso e intenso. Voltei ao quarto onde havia pernoitado e do qual tenho uma vista de todos os ângulos do campo, reclinei-me em dois almofadões na velha cama de metal cromado, e deixei entrar as sensações fortes que nos acordam da vida remanescente que não nos larga nunca, o crocito e o chilreio da passarada. Na mesa de cabeceira – ali como em outras divisões da casa – havia várias revistas de decoração. O tempo desapareceu para mim. Folheei uma depois outra no remanso das horas sem tempo, disponível para encher a parte da manhã e talvez o resto do dia, naquela quietude com o ciclorama de verdes e o fundo do casario branco como cenário montado à minha janela. Entraram em catadupa bandos de recordações, como se eu estivesse de férias no quarto de um hotel, numa ilha encantada onde não chega a turbamulta do turismo de massas. Até o apartamento onde vivi em S. Marçal, se aproximou para que eu o lembrasse nas horas idas, com aquela atmosfera que tanto encantava a Annie e Saramago e Isabel e Borges Coelho e Alexandre Ribeirinho quando lá iam almoçar ou jantar e ficavam até tarde à conversa. Parecia que viajava, conduzido por uma espécie de alegria breve, um instante de graça, um sublime rumor que me deteve por horas, suspenso da perpetuidade antecipada, como se o ciclo da vida não fosse fechado antes do resumo feliz do calendário dos anos, beatificados pelos dias comuns na rude tarefa que nos conduz à morte. Uma das revistas, trazia a casa de Madrid do escritor Vargas Llosa (o homem possui outras em Londres, Paris e Lima onde julgo nasceu). Não era espaço onde gostasse de viver. Prefiro mil vezes esta concebida pelo arquitecto João Biancard, que também veio ao meu encontro, como se repetíssemos os jantares que deram forma ao traçado magnífico onde hoje vivo. No interior madrileno de Llosa não encontro as palavras de Virginia Woolf (tradução de Miguel Silva para a Relógio d´Água e que penso já aqui ter citado): “Parece ser consensual que os escritores deixam nos seus bens uma marca mais indelével do que a maior parte das outras pessoas. Podem ser totalmente desprovidos de sentido estético, mas é como se possuíssem um dom mais raro e mais interessante do que esse – a capacidade de se alojarem de forma harmoniosa, de fazerem a mesa, a cadeira, os cortinados, o tapete à sua imagem.” A Annie quando cá veio a primeira vez, resumiu desta forma o que viu: “C´est une maison d´artiste; o meu amigo Christian Berteaux c´est une maison qui a un charme fous.” E no entanto, nada há aqui de valor. O único valor para mim com importância e sem preço - os livros. E o silêncio. Este que me embebedou até ao delírio, embalado pela melodia do vento que ocultou as horas enfadonhas que me lembram que estou de passagem e não me devo reter em nenhuma divisão da casa.

         - Ouvi o Mágico na televisão a botar discurso sobre os incêndios. Que dizer! Propaganda pura, estudada ao pormenor com as fotos ridículas de sua excelência no seu repouso estival atento aos acontecimentos, rezando para que Marcelo se conserve distante. Que disse o nosso feiticeiro senão elogios à sua governação, aos comandos e bombeiros, à estratégica traçada pelos seus homens na ponta dos quais está o seu dócil  Ministro da Administração Interna. Ainda que as imagens dissessem mais que mil das suas palavras, e nós víssemos a atarantação dos bombeiros no terreno, a desconfiança das populações em atender às ordens para deixarem as suas casas, as chamas a engolirem a paisagem, o nosso Primeiro parecia viver num mundo de rosas e perfumes bentos.
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Sexta, 10.
Ontem, ao procurar a menção acima referida, acabei a tarde a reler o pequeno livro de 100 páginas de Virginia Woolf, Londres. Outra passagem que havia sublinhado quando da primeira leitura: “Nós não edificamos para os nossos descendentes, que tanto poderão vir a morar nas nuvens como debaixo da terra, mas para nós próprios e para as nossas necessidades. Nós arrasamos e reconstruímos tal como esperamos ser arrasados e reconstruídos.” Colossal Virginia!  

         - Os clássicos, gregos ou latinos, nunca nos desiludem. São os grandes mestres que traçaram quem somos e como seremos no futuro.
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Sábado, 11.
Somos os maiores. Não só batemos records em futebol como em incêndios. De entre os países europeus, somos os primeiros em área ardida este ano. Urra! Urra!

         - O nosso dinheiro confiado à administração dos nossos governantes, é água que corre dos seus dedos finos. Felizmente existem homens de negócios que dão cartas e fintam os mais espertos lusitanos. Vem isto a propósito da venda do Novo Banco aos americanos da Lone Star. O Estado no arrolamento do banco perdeu um espólio artístico incrível - fotografia, pintura, obras literárias e moeda - com mais de quatro séculos de um valor que deve rondar os 50 milhões de euros segundo o jornal Público. Sem falar no nosso dinheiro enterrado lá que deve andar pelos 3,9 milhões de euros. O curioso ou nem tanto, é que o Banco de Portugal foi avisado do achado, mas respondeu que também possui obras como aquelas e, portanto, não aprecia duplicados! Quanto pagou a firma americana pelos 75 por cento do banco? Mil milhões. Uma ridicularia! As aves de rapina sabem onde encontrar as prezas mais cintilantes.

         - Com o fogo do Algarve extinto, Marcelo reapareceu com o seu cesto de afectos. Mas primeiro apareceu o Mágico e mais a sua sombra, ambos cheios de esperança, agradecimentos, acções de graças por não ter havido mortes. Nem o Primeiro, nem o da Administração Interna, nos explicaram como foi possível aquela tragédia ambiental e pessoal para tantos dos atingidos, alguns levados algemados pela GNR de suas casas, e toda a desordem nas forças de combate que contou com “estagiários”.
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Domingo, 12.
Marcelo Rebelo de Sousa foi o último do carrossel do poder a chegar a Monchique e o primeiro a despachar a fúria de haver sido protelado pelo Mágico e seus muchachos. Assim que aligeirou o cabaz dos afectos, disparou em avisos ao Governo para que não entrasse em entusiasmos e aventou a hipótese da criação de uma Comissão Independente, sob a vigilância da Assembleia da República, que conheça a razão dos incêndios. O homem sabe mais a dormir que o Mágico no palco a fazer magia. E depois toda a gente sabe que os socialistas nunca souberam gerir o país. São espertos em propaganda, mas fraquíssimos nos negócios correntes. Governam-se e dão a governar. Muitos roubam, alguns são ingénuos, poucos detestam caviar e champanhe.  
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Segunda, 13.
João telefonou a desafiar-me para um almoço. Antes tinha destilado a sua raiva contra a última de Marcelo, que em resposta à pergunta se se recandidatava, respondeu: “Está nas mãos de Deus.” Eu percebo o que o Presidente quis dizer. Na sua idade, estamos mais próximos do fim, ainda que esse fim não tenha dia nem hora para ninguém. Mas é da natureza da vida, partirem os que primeiro chegaram. Deus, de resto, não nos querendo a sós a enfrentar esse momento, vai-nos a pouco e pouco preparando para a grande viagem, aligeirados do muito que fomos acumulando: ódios, rivalidades, invejas, valores materiais, enfim, tudo o que obsessivamente conquistámos.

         - Entrei no epílogo. O juiz Apostolatos não tarda a revelar-se na sua imensa e grata dimensão. A ver se consigo terminar o livro antes de partir para Paris.

         - No mundo fabulosamente feliz do Mágico, mais uma rodada de greves: enfermeiros, pessoal de abastecimento aos hospitais, trabalhadores portuários.
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Terça, 14.
Vergílio queixa-se que eu deixei de lhe ligar. É verdade. Assim como a tia Júlia, a um ou outro amigo. São normalmente pessoas idosas, a quem eu levei anos a discar os seus números e quase nunca era correspondido. A amizade não se mendiga. Ela deve ser reciproca ou então não é coisa nenhuma. A rainha de Inglaterra não liga a ninguém, nem à sua própria família. São os súbditos que devem telefonar-lhe. Acontece que a realeza não faz o meu género.

         - No comboio que me levou a Lisboa, sentadas a meu lado, duas santas mulheres falavam dos seus cônjuges. Uma dizia que o marido era incapaz de ajudar em casa, deixava as luzes acesas, era porco, esquecia-se das chaves do carro na ignição; a outra, mais contida, falou em linguagem encriptada do companheiro que nem na cama a satisfazia. Nesse particular, pelo que percebi, estavam ambas em sintonia. E eu do meu lado, fingindo que não me interessava pela conversa, pensava: “Para que servem homens assim?” É caso para se dizer “l´amore va oltre le parole, è impossibile definirlo a parole perché si deve vivere direttamente.”

         - O Mourato apareceu esta manhã na Brasileira. Há muito tempo que não o via e logo que ele entrou, perguntei: “Então ainda estás intacto?” Esperava que me respondesse como fazem os novos e sobretudo os velhos para quem está sempre tudo na vertical. Mas não. Ele foi mais assertivo e disse: “Olha, para tua informação, ainda dou três.” “Ah, valente!” disse eu, desconfiado. Então ele esclareceu: “A média são três: duas tentativas e uma nega.” Depois passámos a coisas menos sérias, mas nem por isso menos importantes, como o magnífico livro que ele ilustrou com escritores, políticos, pintores e são no seu traço e interpretação pessoal, uma maravilha.
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Quinta, 16.
O mundo ontem parecera abandonado pelo Criador e prontamente ocupado por Lúcifer que nele instalou a sua avidez de morte e caos. Num só dia, uma parte da  ponte de Génova caiu levando à morte até ao presente 40 automobilistas e ferindo um número ainda indeterminado dos que a atravessavam no momento fatídico; em Londres um homem, junto ao Parlamento, feriu de enfiada uma série de pessoas ao embater a grande velocidade na vedação de metal de acesso a Westminster; no Afeganistão, a organização que sustenta os talibans, matou 40 pessoas; duas dezenas de crianças libanesas, morreram ao atravessarem o Nilo... Só neste rectângulo abençoado pelas festas estivais e pelo futebol que fez a sua reentrada em força, a vida prosseguiu monótona e inútil, isolada e feliz.

         - A freiras do BE, senhoras poderosas do convento de S. Bento, apesar do perigo solar sobre os seus rostos devotos, saíram enraivecidas contra Marine Le Pen. A senhora havia sido convidada para falar numa reunião onde se imagina discutia a pobreza e a humilhação dos povos sujeitos à tirania de Bruxelas, uma coisa chamada Web Summit, quando a ditadura das irmãs guardiãs da liberdade de opinião tudo fez para lhe cortar o pio. Só tem direito a ter ideias, quem vestir o mesmo hábito, for minúsculo e sectário, e se pôr em bicos de pés para se agigantar. O mundo desta gente é sinistro, faccioso e grosseiro. São víboras assanhadas pelo poder. O pivete no convento deve ser nauseabundo. Fujam!

         - Como eu sempre pensara, existe, de facto, uma linguagem política ou dos políticos. Anteontem, à mesa do café, explicando que o Mário (advogado) tem um irmão interessante e culto, que possui o hábito e o gosto de emprestar os seus livros e até consente que os anotem, o João salta-me em cima afirmando que “na linguagem dos políticos eu estava a dizer que o Mário não é culto nem interessante”. Contra-ataquei: “Odeio a linguagem a que chamas da política, pela simples e exata razão que o que tenho para dizer digo sem segundas intenções nem falsos elogios. No caso, não é o Mário que está em situação, é o irmão.”

         - Período de desânimo pelo muito trabalho aqui na quinta que se vai acumulando sem que eu consiga realizá-lo. Quem chega como o caso ontem da Mariette e companhia, vem para gozar dos prazeres da atmosfera e da mesa. Por isso, recusei a vinda do Carlos amanhã para um almoço. Estou esgotado.
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Sexta, 17.
A madame Brigitte Bardot disse que o ministro da Ecologia francês, Nicolas Hulot, é “um cobarde de primeira categoria”. E disse muito bem. Este é mais um que apregoa a contenção em favor do Planeta, mas faz rigorosamente o contrário. Tem não sei quantos carros, apartamentos e assim. Pertence ao grupo dos que não dispensam o caviar e o champanhe a acompanhar.

         - Eu estou absolutamente de acordo com o Governo italiano quando, pondo os pontos nos ii, reclama responsabilidades aos que detinham a exploração da Ponte Morandi, em Génova. Diz que a exploração da ponte não devia servir apenas para ganhar milhões, mas também para a manutenção. E nós por cá como vamos depois da Ponte de Entre-os-Rios há uns anos, quando o país era dirigido pelos socialistas? E o que se diz sobre a segurança na Ponte 25 de Abril? A nossa extremosa UE, perante as palavras justas do actual Executivo de Itália, apressou-se a falar de não sei quantos milhões oferecidos ao país para infra-estruturas e auto-estradas. Mas a realidade é, todavia, outra: os povos sob o domínio daquele mastodonte, apertados no colete de forças que é o PIB, a gestão diária sugada e ditatorialmente imposta, não têm margem para acudir senão aos desastres que vão acontecendo por todo o lado.
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Domingo, 19.
Não consigo vislumbrar que contributo traz Santana Lopes à democracia com a criação do seu partido Aliança. A princípio pensei que era o trampolim para Bruxelas como fez Marinho Pinto, mas eis que o velho político esclareceu os cépticos como eu que esse objectivo não está no seu horizonte. Então o que o move? Raiva contra aqueles que o marginalizaram? Precisão do poder para estar vivo? Uma família para sustentar? O que for se verá. Agora de que estou quase certo, é que Lopes direccinou Costa para a maioria absoluta. Infelizmente.

         - Ontem assisti, maravilhado, no canal 2, ao espectáculo da canção francesa. O grande Charles Aznavour disse que a canção do seu país é antes de mais o texto. Tem razão a começar pelos seus próprios poemas que não desmerecem da música e ambos são obras-primas eternas. Os meus amigos em Paris que o conhecem, dizem-me que o nonagenário tem mau feitio. Talvez. Ele não deve apreciar a mediocridade. Entre nós, com raras excepções, não existe boa música. Cada vez mais a choldra tomou conta do espectáculo alimentada pela RTP1, TVI e câmaras desta língua de terra salpicada de autarcas-vedetas.

         - Os bombeiros, em Génova, ainda lutam para salvar possíveis automobilistas soterrados na enorme sucata da Ponte Morandi. Entretanto, celebraram-se as cerimónias religiosas dos infelizes falecidos no desastre. As imagens que nos chegam são comoventes. Só quem nunca esteve em Itália pode admirar-se com o fervor que toca os corações dos italianos. De todas as idades. Lembro-me de uma tarde de calor insuportável, em Assis, quando desci um desfiladeiro que parecia não ter fim para visitar o pequeno convento de S. Damião nos arredores da cidade. Quando cheguei, exausto de tanto andar e mortificado pela canícula, sentei-me à entrada com vista para o vale de Assis e a cidade do Poverello. Não havia ninguém. Quando subi ao claustro, ao fundo, a fazer ângulo, vi um casal de uns vinte anos de joelhos a orar. Aproximei-me, maravilhado e comovido, voltados para a parede onde uma pintura do séc. XIV (?) representava Santa Clara, eles eram os únicos visitantes. E que visitantes!  

         - Morreu o empresário Pedro Queiroz Pereira. Levou a vida microscópica a defender o seu império para o vir a perder para a morte. Aquele que nos dirigiu e depois governou a Europa de Bruxelas com o seu sorriso macaco, era seu amigo e costumava passar férias na propriedade que o triste possuía no Brasil. Que descanse em paz. Ele que agora sabe quanto perdeu ao empenhar-se sofregamente em viver vida... ganhando fortunas.

         - Não sei o que restará do trabalho esta manhã no Café da Casa. Há uma espécie de aceleração da história que entrou no Epílogo. Apostolatos de uma penada abre-se ao mistério que tem sido difícil revelar. As palavras saltam para a folha do computador de todos os lados, decidem do labirinto, fecham a boca às personagens, ocupam o enredo sem esperar que o narrador as oriente. É certo e sabido que amanhã este brouhaha será apagado com uma simples tecla.
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Segunda, 20.
Um rapaz muito novo, de carrapito negro pendente da nuca, ensandecido às sete da manhã, que acompanhei até ao metro, em Sete Rios, e à minha frente gritava – literalmente – ao telemóvel contra aquela que suponho ser a sua companheira: “Ó Lúcia tu não me provoques, não me enerves, a Catarina (filha?) nunca ficará contigo, eu dou cabo de ti, olha que não respondo pelos meus actos...”
         O curioso desta história, é que não havia uma semana que eu descrevera uma cena semelhante, passada na secção do tribunal onde o juiz Apostolatos exerce.

         - A noite passada, acordo às quatro da madrugada, com o anúncio da morte do Eugénio. Uma voz sacudiu-me do repouso e num tom nítido de quem tem uma missão a cumprir, diz-me que o meu amigo que não vejo há mais de dez anos, acabara de falecer. Já não consegui recuperar o sono. Devia telefonar-lhe, mas há um mês o chip do meu telemóvel avariou e tive de comprar outro sem que a Vodafone conseguisse recuperar a lista de quase uma centena de pessoas nele guardadas.

         - Almocei no Alentejano, Bairro Alto, com o João e o Guilherme. Grande conversa ao prazer do Corregedor que nela respirou de satisfacção. Ninguém a preparou, veio no correr da confraternização, palavras atrás de ideias, como assim deve ser, não tendo a cultura de ser forçada a apresentar-se ao convívio dos cavalheiros que gostam de a ter de manhã à noite, uns chatos se me permitem. Falou-se da origem da religião católica, do judaísmo, do celibato sacerdotal, etc. João é ateu, Guilherme pensa bem, mas tem dificuldade em se exprimir. Naquele reino, impus-me eu respondendo ao João que o seu ateísmo remete para uma espécie de populismo que a Igreja, a reboque das modas, da política e do baixo nível cultural das massas, aproveita para navegar à vista da descrença e da ausência de Deus, substituído pela parafernália de valores sem valor absolutamente nenhum. Do puro vazio. 
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Terça, 21.
Novo tremor de terra em Lombok, Indonésia, com magnitude 6,9. Não fez um mês quando a cidade foi sacudida por outro abalo sísmico que levou 460 pessoas e deixou milhares sem casa. Por todo o lado as alterações climatéricas, inundações, incêndios e calores insuportáveis chegam e partem deixando a terra num sufoco e os seus habitantes em desespero. Será isto cíclico ou provocado pela actividade humana que produz e consome como se os recursos fossem inesgotáveis.

         - Ontem tive uma interessante conversa com o Brito, nosso antigo colega do Diário de Lisboa. Está com 92 anos, quase cego, surdo, mas mantém o cérebro e uma actividade invejáveis a par de um humor astuto à prova de bala. Vive, só, para os lados de Benfica e desce ao Chiado todas as manhãs para estar com os amigos. Contou o seu feito, depois de a mulher morrer e ter optado por conservar a memória dela, assim como a casa onde ambos foram felizes. Trocámos vidas, isto é, falámos do que é viver em solitário e das alegrias que isso nos traz, a ele apesar da idade avançada, a mim que lentamente me vou aproximando. Tanto ele como eu, convergimos nas vantagens de uma vida cuja opção foi a solidão criadora, a disponibilidade aos outros, a ausência de egoísmos debruados da ternura dos filhos possessivos, que nunca crescem e têm os pais por escravos ao seu serviço. Grande leitor, só há pouco tempo ficou impedido de ler e isso foi um choque que me pareceu hoje aceite como natural. Cito uma vez mais Oscar Wilde: só envelhecemos por fora, o coração permanece jovem – esse é o drama da existência.

         - Vários jornais trazem hoje boas notícias. A melhor de todas é os aumentos aos reformados no próximo ano de eleições. Assim como reduções do iva na electricidade chinesa e mais umas quantas benesses retidas para brilharem em pleno nas legislativas. Este tipo de gestão, mostra a irresponsabilidade dos partidos quando no poder e prova que as pessoas têm razão ao não confiar nos políticos, fartas de serem usadas e aldrabadas sem respeito nem dignidade.
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Quarta, 22.
Eu devia dedicar-me em exclusivo à jardinagem. Ser jardineiro é qualquer coisa de mágico, é viver da lentidão da beleza, da cumplicidade da arte, do refúgio da vegetação que nos defende da invasão da cidade e prende-nos ao silêncio que dialoga com a eternidade. É estar sempre voltado para nós, perscrutando o que no nosso interior permanece de imanente, de secreto, mas também de evanescente. Que o diga a Cica que todos os anos desenvolve esta espécie de falo que daqui a um mês expandirá em ramos; ou este nenúfar que eu transplantei e se sente tão bem na pedra antiga à entrada da casa.  
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Quinta, 23.
Fez bem Zélia Afonso em ter recusado que o marido fosse parar com os costados ao Panteão Nacional. Outra coisa não esperava eu da mulher que conheci juntamente com o Zeca no tempo da outra senhora, num serão em casa de ambos, em Setúbal. A bandalheira em que os senhores deputados transformaram o sarcófago pátrio, já só serve hoje para recolher o cadáver dos fatigados jogadores de futebol.

         - A mim quer-me parecer que há nas sucessivas greves dos enfermeiros a que junto as declarações absolutamente reles dos dirigentes sindicais, o propósito de acabar com o SNS. Não me admira que a ultra direita esteja por detrás destas acções inconsequentes, levianas e atentatórias da saúde dos portugueses. Dizem-me que eu tenho muitos leitores entre o pessoal médico e hospitalar. Se assim é, que alguém leve até eles esta minha revolta e cessem de dar protagonismo à sua bastonária.

         - As temperaturas não baixam obrigando-me as regas constantes. Por todo o lado, estão acima dos trinta graus. Aqui 36º.

         - Os netos dos portugueses que passaram a fronteira a pé para França, estão a optar por viver em Portugal. Dizem-se cansados da política de Macron, temem pelas suas vidas, preferem a pacatez desta zona onde os pais têm casa. Ontem jantei em casa de um e todo o serão foi a projectar o retorno definitivo.
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Sexta, 24.
Há uma tabela recentemente publicada que dá conta que Portugal está entre os dez primeiros consumidores mundiais de álcool. É mais uma vitória a par das outras que há dias registei. Somos um país óptimo até para bêbados. A verdade porém, é esta: estamos cercados de alcoólicos. Não admira pois que as desgraças caiam em catadupa: acidentes rodoviários, assassinatos familiares, violência no futebol, adolescentes a consumir toda a sorte de drogas, incapacidade para o trabalho, precariedade no sono, doenças várias, a lista não tem fim.

         - A figueira falada séculos antes de Cristo e na Bíblia e por gregos e romanos, árvore robusta, nascida para guardar os segredos que debaixo dela se revelam, protectora de grandes sombras que se estendem benfazejas sobre as cabeças dos filósofos e sábios e rabinos, cujo fruto é por si só uma bênção do céu, cresce aqui cinco mil anos depois em liberdade, borrifando o ar do seu perfume único, que lembra e imortaliza o Verão, em rodadas de folhas largas, luminosas e de um verde intenso. Esta que gosto de chamar-lhe minha, não pode com tanto figo e rasteja no chão, derreada.

         - O romance de João Tordo As 3 Vidas não me convence. Na badana do livro, houve quem o comparasse a Saramago embora eu não perceba bem porquê. Se é porque a história está bem contada, sim, de facto está. Todavia, não é por aí que um autor se pode considerar escritor. O que eu enxergo no livro, é a tradução técnica própria de um guião para filme. Nota-se na narrativa a pesquisa técnica das drogas aplicadas por Milhouse Pascal aos seus pacientes, assim como a preocupação do autor em as explicitar (pp. 194-200) como se de um relatório se tratasse. A par de uma infinidade de gralhas, do português próprio da linguagem oral, de uma coisa ali, outra acolá mal construída, o tratamento cerimoniático de uma personagem para o tutear, ou o pronome você e por aí fora. Para não falar na apresentação do livro enquanto objecto (edição QuinNovi) um desastre. Perante tudo o que fui anotando, tive curiosidade em ir ver quem havia feito a revisão – não existe. Quer dizer foi João Tordo que se ocupou desse trabalho. O pobre. Prefiro continuar a guardar a leitura do seu primeiro romance O Livro dos Homens sem Luz ou até O Bom Inverno.  
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Domingo, 26.
O tormento da escrita. Passei toda a semana angustiado porque cada manhã sentado ao computador, não conseguia alinhar mais que três quatro palavras. Pensei: “Desiste. Vai fazer outra coisa e destrói as 247 páginas que constituem o original que tanto te alucina.” Depois, sem perceber porquê, no Café da Casa, às primeiras horas do dia como é habitual, enchi uma página ontem e hoje duas. Milagre! O mistério da escrita ou da inspiração, ou lá o que seja, surge do fundo dos abismos interiores para se metamorfosear em algo sem fantasias nem esforço – em pura realidade.

         - O Papa está na Irlanda. Corajoso, frontal, simples, humano, enfrenta todos aqueles que lhe atiram à cara os vícios e pecados de uma Igreja que só há poucos anos é governada por ele. Claro que todas as crianças que foram violentadas por padres e bispos usando a sua missão sacerdotal, devem ser julgados e afastados da Igreja. Mas isso não deve ser trampolim, como eu tenho visto e ouvido, a uma dúzia de comentadores ateus ou agnósticos para vociferarem contra a Igreja num todo. Eles usam a pedofilia para manifestarem o seu asco ao Papa que dizem não estar a fazer o bastante para corrigir os erros do passado; mas a mim, a impressão que me dão, é que com a sua indigna acusação, escondem o seu gosto por crianças ou pretendem protagonismo que de outro modo não gozarão.

         - É verdade que para a Igreja, desde tempos remotos, o sexo sempre foi um problema. Suponho que desde o Apóstolo Paulo. Das muitas Cartas que conhecemos dele, verdadeiras ou falsas, o tema sexo ocupará, talvez, metade das suas obsessões. Foi, aliás, de certo modo S. Paulo que ante o mundo promíscuo de então, alienado à fornicação selvagem, onde o corpo era usado com quem calhasse, para evitar, digamos, essa bandalheira, impôs a opção de cada homem ter a sua mulher e cada mulher o seu homem, deste modo passando a usar o corpo em união restrita. Esta é a contextualização de Frederico Lourenço e é também a minha. A Igreja actual, apesar dos avanços sociais e morais, continua a pensar como S. Paulo e toda a sua doutrina decorre das Epístolas do abnegado pregador. Daí a ideia de uma certa esquerda dita progressista, contra o celibato dos padres. Outro dia o João Corregedor, hoje no Público Vicente Jorge Silva. Para ambos “o celibato dos padres constitui um dos factores decisivos dessa doença (entenda-se a pedofilia).” Nada disto é verdade. Os dois ignoram a mensagem de Jesus Cristo, ambos incorrem num engano facilmente contestado. Não é pelo facto de os padres amanhã formarem família, que a pedofilia acaba. Veja-se as estatísticas que dizem que os maiores e mais frequentes pedófilos estão no seio das famílias. Depois a exclusividade dos sacerdotes à Igreja, quero dizer a Deus e aos fiéis, não é a mesma. A PIDE sabia disso. Quando queria atacar forte alguém, escolhia de preferência casados e dentro destes os que tivessem filhos. A partir do momento em que uma mulher ou um homem opta pela via do casamento, não pode considerar-se mais absolutamente livre. A própria natureza se encarrega de fazer a escolha. Já agora mais uma achega. Alguns pensam que os homossexuais são propensos a violar crianças, orientam as suas acções e os seus princípios para aquilo que os satisfaz e desse “vício” tornam-se dependentes. A Irlanda que recebeu o Papa tem como primeiro-ministro um homossexual assumido, mas nem por isso deixou de estar onde Francisco esteve. A França idem com um embuçado, a Bélgica...

         - O Mágico repetiu à exaustão que este ano teríamos menos fogos, lembram-se? Pois bem, há dois meses que quase não houve um dia em que os bombeiros não tivessem de serviço á tragédia.

         - Faleceu, com 92 anos, o poeta Luís Amaro. Era o adjectivo superlativo do saber e da cultura nacionais. Um homem bom, prestável, verdadeira enciclopédia que todos nós consultávamos... graciosamente. Descansa em paz nobre poeta. Que deu a tanta gente boa para desertar?
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Terça, 28.
Um dia perguntei ao Tó que exerce medicina num hospital privado, mas antes trabalhou no Curry Cabral, como eram recebidas as pessoas sós, sem ninguém próximo, que apareciam no limite das suas forças. Ele respondeu-me, ante a minha descrença, que todas as equipas médicas tratavam do solitário, novo ou velho, com toda a consideração e humanidade. Pensei: “fala por ti”, sem lhe transmitir o meu pensamento. Esta manhã, com mais tempo que na semana passada quando passei na Brasileira a caminho do almoço com a Alzira, pude estar com o Brito pelo menos hora e meia. Quando cheguei já lá estava ele e o Mário (economista). Brito não me reconheceu, tendo perguntado ao nosso amigo quem havia chegado. Quase gritei dando-lhe conta que era eu. Daí começou uma longa conversa que largou de Lisboa a Macau, de lá a Coimbra e mais não sei aonde. O jornalista e homem de cultura falou sem descanso, o cérebro envolto nas recordações que saltavam vivas com imagens lá dentro. Quem o visse e ouvisse não diria do estado físico em que se encontra. Contou-me que a semana passada, quando se levantou, viu no espelho a sua imagem com farta cabeleira que lhe cobria os olhos. “Homessa! Então eu que sou careca estou com tanto cabelo!” Foi de casa imediatamente ao hospital. A médica que o recebeu e antes as empregadas que o atenderam, todas “pareciam ter pena de mim, velho com 92 anos, surdo e cego”. “Então e o senhor vem assim sozinho?” “Detesto essa mania do coitadinho.” Resumindo: a clinica marcou para depois de amanhã a operação à retina (urgente, portanto). Ofereci-me para o acompanhar, ele agradeceu. “Consegui convencer dois sobrinhos com a promessa que lhes pagaria o almoço.” Disse-lhe: “Brito é melhor assim que ter filhos e netos, e não haver ninguém que se interesse por acompanhar ou havendo por interesse. A decepção, nesses casos, é mortal.” Mais uma vez, constato que a cultura é muito útil em todos os momentos da nossa vida. Sem ela ficamos abandonados, reduzidos aos instintos, à mercê da caridadezinha, como os coxinhos, coitadinhos. Prefiro a solidariedade, a amizade franca e desinteressada, a coragem que nos faz morrer de pé. E já agora o humor que no caso do meu amigo é o húmus da dignidade.

         - No Fertagus li no Público que a SIC e TVI estão em perda de audiências. Pudera! A estação de Balsemão é uma droga de telenovelas em série; a outra uma lixeira nauseabunda. A SIC contratou uma tal Cristina Ferreira de que já aqui falei quando a Piedade se indignou por eu não saber quem artista. Quer a estação ganhar audiências e muito dinheiro com aquela que se faz passar pela Oprah portuguesa e um salário anual de um milhão de euros. Toda esta miséria é contada com hossanas de país dos mais desenvolvidos do mundo. Dito isto, como nunca vi a senhora, não posso ajuizar do seu trabalho, mas imagino o que seja.
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Quarta, 29.
O Ministro da Ecologia francês, o tal que eu já aqui falei, pregador pelo Planeta contra as emissões de ozono para a atmosfera, Nicolas Hulot de seu nome, demitiu-se em directo num programa da France Inter. Uma originalidade à la française porque ninguém sabia que ele ia demitir-se, nem mesmo Chou Chou o seu patrão. O homem estava farto dos lobbies, farto do cínico Macron, farto de fazer figura de palhaço. Ele bem foi avisando – entrevistas na RTL1e Europe 1 – contudo precisou de mais de um ano a aturar Chou Chou para se pôr a milhas. Chou Chou, já aqui disse, vai acabar pior que o infeliz Hollande.

         - Outro chico-esperto é o Primeiro-Ministro espanhol, dirigente do PSOE, empenhado em imitar a “geringonça” socialista portuguesa. Como o nosso Costa pontapeou para fora da carroça do poder António José Seguro, aquele chutou com o medíocre e corrupto Rajoy. O nosso ambicioso, começou por pensar em si, na sua projecção europeia, e vestindo o avental humanista, aceitou receber uns quantos migrantes. Pouco tempo depois, acabado o feito e com os sorrisos fingidos da clique de Bruxelas conquistados, recusou mais infelizes. Isto foi para a sua imagem exterior. Para o interior, decidiu mexer nas cinzas do passado e retirar os restos mortais de Franco do Vale dos Caídos, entregando-os à família. O senhor Pedro Sánchez é uma fantasia, um pedaço de coisa nenhuma. É um fantasista que pensa apagar a história com golpes de propaganda. Parece que ambiciona também a anulação das sentenças dos tribunais do franquismo. Nem imagina no que se vai meter! Como adverte Diego Lópes Garrido, um notável no Direito Institucional, “se anularmos por ilegitimidade do regime, temos de poder anular todas”. Enfim, mais uma caixa de Pandora.

         - Deitei-me de madrugada porque estive colado ao televisor a ver a ópera de Benjamim Britem, tirada do romance de Thomas Mann, Morte em Veneza. O canal 2 francês, com mise en scène de Willy Decker e coreografia de Athol Farmer, deu-nos momentos de êxtase, numa realização ousada, criativa, servida por processos simples, mas intensos visualmente. No papel de Aschenbach, John Daszak, aqui e ali menos conseguido, todavia brilhante nos momentos mais intensos da descoberta do jovem Tadzio por quem se apaixona, na linha concepcional de Visconti criada em filme. Simplesmente, Willy Decker, neste seu trabalho, foi mais além, ultrapassando o realizador italiano, quando materializa os sonhos do escritor em crise criativa. Nesta ópera os dois encontram-se não só para dançar juntos, como para se abraçarem e juntarem os lábios num beijo amoroso intenso. Mais: o jovem criado à beleza dos gregos, aparece completamente nu de todos os ângulos exibindo, por sinal, dentro da minha estética, um corpo pouco harmonioso onde está afastada a languidez e provocação erótica do Tadzio viscontiano.

         - Os críticos, agarram-se a uma frase infeliz do Papa Francisco de retorno ao Vaticano, quando disse aos jornalistas que na infância uma criança que os pais suspeitasse de tendências homossexuais, deviam levá-la para observação a um psiquiatra, reconhecendo assim que a homossexualidade é uma doença e como tal  deve ser tratada, contra as directivas da Organização Mundial de Saúde. Todavia, quem se der ao trabalho de rebobinar a cassete, verificará que as palavras de Sua Santidade na matéria, foram bem explicitas da compreensão e aceitação dos católicos homos até aqui marginalizados pela Igreja. Aliás, não se compreende por que razão a questão lhe foi posta, quando o que está em discussão, é a pedofilia. Eu digo: a informação espectáculo tem tábuas para ocupar.
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Quinta, 30.
Mais uma aldrabice da indústria automóvel com a conivência laxista dos governos, que enganou milhões de automobilistas e prejudicou grandemente o nosso Planeta, a nossa saúde e a nossa bolsa. Refiro-me à descoberta de quase todas as marcas andarem a vender gato por lebre. Os folhetos e a propaganda, dizem que o carro consome, por exemplo, 5 litros aos cem quilómetros, quando na realidade gasta uma boa percentagem acima. Este método, sustenta o custo mais elevado da viatura, quando afinal é o contrário. Claro que não vai acontecer mal algum aos construtores. Por mim há muito que não confio em ninguém e quanto ao desvelo das nações em se preocuparem com o Planeta e obrigarem os cidadãos a economizar e a praticar uma vida diminuta, mando-os virarem-se para as grandes indústrias – são elas as causadoras do estado geral do mundo. A ganância é mais forte que o futuro do Universo. Quem vier depois que se dane. O capital quer mais capital, os políticos mais poder. É a decadência e a finitude da nossa espécie. Morreremos soterrados sob gigantescas catástrofes. A minha esperança, é que os ambiciosos conheçam o mesmo fim.  As grandes civilizações foi deste modo que pereceram. Pareciam eternas, sucumbiram com um sopro.


         - Levanta o moral, Helder. Olha que não há melhor começo de dia que apanhar uma cesta de figos de mel. Esfrega as mãos de contentamento onde entre os dedos ficou um resto do leite pegajoso que do figo pinga ao ser cortado. Agradece ao Criador o espaço limpo dos produtos que matam e te permite comer sãmente, respirar o ar puro, cheio do oxigénio indispensável à vida. Ajoelha-te e bendiz os anos que te coube viver na paz e na meditação, com línguas de fogo estimulando os sentidos de forma a que renasças todos os dias pleno de força e de joie de vivre.