Quarta, 1 de Agosto.
Do
nunca visto. Duas moções de censura na mesma sessão do Parlamento Francês.
Cairá o rei? Claro que não. Pelo menos por enquanto.
- Ameaçam-nos com temperaturas a
partir de hoje e até domingo a chegar aos 40 graus centígrados!
- A Dona Catarina do BE, veio
penitenciar-se ao modo do MRPP de Arnaldo de Matos, o grande educador da classe
operária. Disse a crescida senhora que fez “um erro de análise” ao afirmar que
Ricardo Robles tinha condições para se manter como vereador na Câmara de
Lisboa, concluindo que “a contradição era muito grande” entre o negócio e a
doutrina defendida pelo partido. Ó tempo volta para trás ! A vida política portuguesa é tão ridícula !
*
Quinta, 2.
Como
estamos em férias, ocupemo-nos de coisas ligeiras. O banqueiro diz que não
precisa do Sporting, que o move a grandeza e honra do clube. Com estas divinas
e sinceras intenções, engrossou a equipa de suplentes ao cargo de Presidente. Imagino
que dispense como Trump o ordenado de dez mil mais o resto que parece ser a
esmola que o clube paga ao seu dirigente máximo. Dos que eu palpitei
candidatar-se ao pódio, já só falta o senhor dez por cento, perdão, o bombeiro.
- O senhor Robles, quanto mais não
fosse para calar a matéria inorgânica do CDS, interessada na especulação
imobiliária, com lei a condizer, devia, se me permite caro vereador, a parte
que lhe cabe no negócio chorudo do prédio, revertê-la para os pobres da
capital. Fazia a diferença relativamente à canarinha da direita oportunista.
- Marcelo que se apressou a receber e
condecorar o grupo de jovens “promissores” que ganharam um qualquer campeonato
que eu não percebi bem qual era, diz que o futuro de Portugal está ali, naquele
friso de rapazes a correr atrás de uma bola. A Ciência e a Cultura, que
arrastem os pés a mendigar os tostões. Primeiro o futebol, depois tudo o resto.
Se isto não é demagogia, o que é?
*
Sexta,
3.
Férias
é um tempo para esquecer tristezas e saborear asneiras. A propósito do clima e
da alegria das televisões em terem, enfim, tema para entreter as multidões fechadas
em casa ao comedouro dos ecrãs, e ainda para animar as hostes de “jornalistas”
e “especialistas”, estes com o seu minuto de glória. Uma dama engalanada, veio-nos
prevenir que as poeiras vindas de África são extremamente prejudiciais à saúde,
sobretudo, para os que sofrem das vias respiratórias; outra, mais concentrada,
disse que as poeiras não atingiriam os seres humanos por se manterem muito
altas e assim não prejudicam as pessoas.
Só não vieram os imprescindíveis psicólogos que tanto sabem de tudo.
- No afã de incitar Marcelo Rebelo de
Sousa a recandidatar-se, o Governo do Mágico, com o seu inefável Ministro do
Interior à cabeça, desdobra-se em tratados de prevenção contra fogos. A coisa é
tal, que a Protecção Civil mandou 1.359 milhões alertas (Público de hoje) de
incêndio por SMS à população de Faro e Beja. Com um pormenor que define a
natureza habitual do funcionalismo no nosso pobre país, o número incorrecto. Ou
antes era o número de telefone de uma empresa de reparação de vidros para
automóveis. Conclusão: os empregados da Glassdrive gastaram o seu caro tempo a
atender os aflitos... dos incêndios.
- Continuemos de férias. O Governo do
Mágico com o Ministro do Interior na dianteira, juraram durante os dramáticos
fogos do ano passado e quando toda a gente atribuía grande parte da desgraça às comunicações, que
o controlo do SIRESP, devia passar em pleno para o Estado. Conhecemos agora a
sequência: a Altice (entenda-se a PT) e os outros sócios adquiriram a
totalidade do sistema na batalha que o Estado queria e devia ganhar. Aqui
também há um detalhe (os detalhes são sempre algo que os Governos guardam para
si como troféus de imagem) o Estado que havia consagrado no melhoramento das
redes um total de 8,2 milhões de euros até 2021, saiu “vitorioso” por ter
conseguido dois membros na comissão executiva da SIRESP. O secretário de
Estado, falando às televisões para que o povo o escutasse, destacou as
“redundâncias” para dar fiabilidade à rede. O povo sorriu de contentamento e
entendimento.
- O Papa Francisco destaca-se pela
sapiência em sentido contrário ao estabelecido canónico, anunciou que a pena de
morte é inadmissível em qualquer situação. Tal como Jesus, também Francisco põe
a vida humana acima de qualquer percalço existencial, mesmo quando alguém comete
um crime grave. É o ponto final sobre o assunto. Neste aspecto, a Igreja nunca
havia sido tão clara como agora com o presente Papa.
- Por aqui, os termómetros atingiram
os 46 graus.
*
Sábado, 4.
A cruel
Volta a Portugal em Bicicleta é um crime, um assassinato por um tempo de fogo e
canícula pura. O desporto sob as ordens ditatoriais das empresas e produtos.
- Um grande fogo eclodiu na Serra de
Monchique, anteontem. 700 bombeiros, talvez justificando a sua existência,
combatem o incêndio. O Presidente está de férias no lugar dos crimes do ano
passado, mas nenhum dos políticos por ele incentivados a seguir-lhe os passos
apareceu até hoje. Que ideia aquela! Então não é no Algarve que durante quinze
dias se destilam invejas e ódios, senhor Presidente!
- Apesar do calor insuportável, tenho conseguido
dormir sete horas seguidas embora... nu sobre a cama.
*
Domingo, 5.
Devido
aos 48 graus celsius, a vida alterou-se. A água que sai da torneira, parece ter
passado pelo esquentador de tão quente, o ar paralisa-nos, o Black que costuma
adorar o sol, resguarda-se debaixo do aparelho de climatização que tenho na
cozinha, as abelhas deixaram o exterior e optaram pelo interior do salão às
centenas, as plantas regadas abundantemente de manhã, envelhecem à tarde, as
hortências morreram, os limões caiem juncando o chão, as maçãs idem, não corre
uma brisa por poética que seja, só deito o nariz de fora depois das seis da
tarde, em casa estou submerso nas sombras. Como alimentação legumes: endívias,
alface, tomate, pepino, beterraba... fruta: uvas, maçãs, amoras, melão, cerejas,
nozes... O nec plus ultra deste tempo?
Desforrar-me a dormir.
- Todavia, penso que a noite passada
foi a mais quente. Quando subi para descansar depois de ter visto na 2 uma
excelente mise en scene da obra de
Bizet, Carmen, de Kasper Holten, com
um arrojo de cenários e interpretações fabulosas com um senão para o interprete
na personagem de Dom José, o termómetro do quarto registava 27 graus. Adormeci
logo. Acordei pelas cinco a transpirar, liguei a ventoinha e abri a janela. Mergulhei
no sono, mas na forma de uma noite mal dormida.
- Como eu aqui previ, a Coreia do
Norte não suspendeu o seu programa nuclear. E fez bem. Dir-me-ão King Jong-un é
um louco e tudo pode acontecer. Replico: e Trump? Além que o norte-coreano tem
tanta razão para manter os mísseis como os Estados Unidos ou outro qualquer
país. Como eu costumo dizer, não há armas nucleares benignas e outras
mortíferas.
*
Segunda, 6.
No
fim, o que os técnicos da Protecção Civil queriam dizer a Marcelo que se
ofereceu para visitar a zona, era isto: “Não venha para cá importunar quem
trabalha no terreno com os seus afectos.” Eles vão no quarto dia e quatro
noites de luta contra o incêndio na Serra do Monchique. Dir-se-ia que com a sua
presença o Presidente da República evita que alguém propague fogos... Ele está
onde nenhum político quer estar de férias – naquele horror calcinado que deve
dar dor de coração olhar. De facto, não há memória de uma quentura assim. Pela
primeira vez, a noite passada não suportei os 27 graus que tinha no quarto. A
dada altura abrir a janela, mas nem assim consegui retomar o sono. Às seis da
manhã levantei-me, tomei o pequeno-almoço e fui regar. Antes, porém, abri
portadas, janelas e portas. Devem ser ao todo 16 em cima, 18 em baixo. Como
tinha aprazado a inspecção ao carro para as nove horas, às oito peguei no dito
cujo e avancei para a saída. Só então vi que tinha o caminho barrado com o
braço enorme de um cedro. O calor começava a apertar, maldisse o campo, a
motosserra que não tinha culpa da minha inaptidão para as ferramentas. Esquecera-me
onde se punha a gasolina. Telefonei ao centro de inspecção a adiar a hora e
esperei pelas nove para perguntar ao vendedor como funcionava o objecto. Estava
danado comigo, o campo, a motosserra, o calor. Como afinal o instrumento não
trabalha sem uma mistura de óleo e gasolina, veio um funcionário cá a casa
trazer o alimento. Foi-se brusco, deixando-me a tarefa a mim. Estive uma data
de tempo a namorar a magarefe, perguntei-lhe: “Por onde te posso dar o leite da
manhã que necessitas para trabalhar?” Mira daqui, mira dali, até que percebi
onde e como devia introduzir o líquido. Pensei que estava salvo, o suor
corria-me em bica por tudo quanto era poros, o sol queimava já. Qual quê!
Apesar de bem alimentada, a fulana não ousava dar corda aos pés e fazer-se ao
trabalho. Mas tinha razão. Eu havia esquecido todos os movimentos e quanto mais
puxava a corrente, mas a gaija se encolhia qual dama ferida no seu orgulho
machista. Por fim, toquei em dois botões e iluminou-se-me o espírito: eram eles
que combinados punham a corrente em movimento. Ufa! Orgulhoso da minha imensa
inteligência e coragem, dirijo-me à árvore de braço pendente. Pareceu-me que a
vi rir, mas não posso garantir. Assento os dentes no ponto que me pareceu mais
ajustado, oiço um barulho estranho mas continuo. A dada altura, a trabalhadora parou
imobilizada no tronco. “Como te tiro eu daí”, praguejava. Todos os esforços e
movimentos, mostravam-se vãos – a rapariga ficara de pernas abertas num
escárnio de vício lá no alto. Vou buscar um escadote, subo e faço grandes movimentações
ao tronco de forma a soltá-la. Nada. Absolutamente nada. Começo a ficar
esgotado, o suor corre-me do rosto em bica. Decido voltar à escuridão do salão
a recuperar forças. Tomo um café, leio duas páginas à luz do candeeiro no
romance de João Tordo, Três Vidas.
Refeito, vou ao encontro do cedro enxertado de motosserra. Miro-o de todos os
lados a estudá-lo. Apercebo-me então que ficou a faltar uns centímetros dos
músculos do braço para extrair. Volto a descer do escadote, convencido que
tenho força para torcer aquele emaranhado de fêvera e pele. Oiço – ou penso –
uma forte gargalhada. Estou numa luta, só agora entendo. Volto à cozinha, bebo
um grande copo de água fresca e retiro de uma gaveta um pequeno serrote de mão.
Com ele tento acabar a parte que ficou suspensa da amputação quase conseguida. Invoco
todos os deuses em primeiro o meu Deus. Que desçam do céu ou dos buracos da
terra em turbamulta para me fazerem sair daquele impasse. Passa das dez da
manhã. Estou nisto, portanto, desde as oito – esgotado. O pequeno serrote,
apesar do enorme esforço, decide fazer companhia a sua irmã potente. Ficam os
dois encavalitados no coto ferido da árvore. Mudo o escadote para o sentido
oposto e, milagre, o serrote pequenote decide agarrar-se à minha mão. Rejubilo.
Quase me apetece beijá-lo. Desço e vou abanar com as forças que me restam a
cauda verdejante que está estendia no caminho. Pareceu-me que qualquer coisa se
mexeu lá no alto. Torno a montar no escadote e vejo que, de facto, aconteceu
uma folga. Pego-me a essa folga, faço tudo para que a serra desça do tronco.
Nada. Ensaio ainda encadear a máquina com um olhar que passou pelo simpático,
contemplativo e por fim furioso. Nada. Vou de volta e no chão onde as barbas
eram mais que muitas, agito-as com garra. Subo depois para ver o que aconteceu,
dou jeitos ao aparelho e, ó felicidade, este pega-se-me às mãos. Desço,
contente. Torno a tentar pô-la a trabalhar. Ela aceita a minha bravura e
colabora. É então que opto por escolher outra parte do braço já sem vida. Num refulgir
colaborante, a serra pega-se à madeira para só a largar quando o sangue
alastrava na terra. Ufa! Mil vezes ufa! Puxo o resto do corpo exangue para o
lado, de modo a desimpedir o caminho, deixando o coto agarrado a seiva da mãe. Depois,
mais calmo, tentei tirar lições deste longo rosário. “Não te lastimes, homem de
Deus, tiveste sorte e contastes com a protecção divina. Imagina que o pesado
lenho se despegava do alicerce central no momento em que passavas a pé ou de
carro!” Outra lição a esta associada. A viatura, sem ter que deixar 120 euros
no mecânico, passou pelo quinto ano na inspecção. Conclusão, já economizastes
quinhentos euros. Venha mais um ano! Quanto ao mais, vou fazer como o gato:
dormir.
*
Quarta, 8.
O
fogo que lavra há vários dias na Serra de Monchique e ameaça continuamente as
povoações por onde passa, surgiu do nada. Ninguém ainda nos explicou como foi
possível uma tal tragédia, num ano onde os Governo, Presidente da República,
Protecção Civil, departamentos administrativos, bombeiros e autarquias nos
prometiam sossego e paz depois de o último Verão negro e trágico. Acrescente-se
que nunca se gastou tanto dinheiro em prevenção, viaturas, aviões e logística. A
mim isto causa-me estranheza. O incêndio deixou o Norte para se instalar no Sul.
Quem estará por detrás disto tudo? Que forças se movimentam para destruir a
pouco e pouco a democracia pondo no seu lugar um regime corrupto, constituído
de comadres, capitães, soldados rasos todos a soldo de interesses criminosos.
Será que o país tornou-se ingovernável e não há estruturas políticas e
políticos independentes que possam enfrentar os assassinos? A máquina é
tenebrosa, está instalada e só uma ditadura vai conseguir afastar os monstros
que a engordam com a avidez dos sanguinários. Entretanto, como sempre acontece
em Portugal, debatem-se de novo estratégias, cada um apresenta a sua e o fogo
passa por entre a vosearia colectiva de gestores e governantes. O que até aqui
parecia consensual, está uma vez mais posto em causa conspurcado por interesses
corporativos e empresariais de muita ordem. Este país devia fechar ou juntar-se
a Espanha. Pelas reacções das pessoas aflitas, ninguém confia na GNR nem nos
operacionais “especialistas” do fogo e muito menos nas autarquias. Estamos num
impasse colectivo.
*
Quinta, 9.
Quebrei
de propósito a disciplina, esse garrote de forças em que vivo quotidianamente,
e quedei-me sem horário nem funções emergentes, num dos quartos de hóspedes
onde dormi de ontem para hoje. Nunca tal havia feito, mesmo quando de sábado
para domingo da semana passada o calor se tornara insuportável e não me deixara
sossegar de noite. Aquela divisão deve ser a mais fresca de toda a casa, com
duas janelas voltadas uma a Norte, outra a Sul. Repousei sem nada a cobrir-me,
de calções e descansei como um justo. Acordei pelas sete da manhã e desci para
tomar o pequeno-almoço, seguiram-se as regas e o final da decapagem da piscina.
Não me sentia cansado, o dia tinha crescido fresco, com a aragem forte a escovar
a casa em todos os sentidos. As janelas de cima e de baixo abertas de par em
par contribuíam para arrefecer todo o edifício. Pelas nove a Piedade telefonou
a dizer que não podia vir e eu tomei a sua decisão como signo de um começo de
dia majestoso e intenso. Voltei ao quarto onde havia pernoitado e do qual tenho
uma vista de todos os ângulos do campo, reclinei-me em dois almofadões na velha
cama de metal cromado, e deixei entrar as sensações fortes que nos acordam da
vida remanescente que não nos larga nunca, o crocito e o chilreio da passarada.
Na mesa de cabeceira – ali como em outras divisões da casa – havia várias
revistas de decoração. O tempo desapareceu para mim. Folheei uma depois outra
no remanso das horas sem tempo, disponível para encher a parte da manhã e
talvez o resto do dia, naquela quietude com o ciclorama de verdes e o fundo do
casario branco como cenário montado à minha janela. Entraram em catadupa bandos
de recordações, como se eu estivesse de férias no quarto de um hotel, numa ilha
encantada onde não chega a turbamulta do turismo de massas. Até o apartamento
onde vivi em S. Marçal, se aproximou para que eu o lembrasse nas horas idas,
com aquela atmosfera que tanto encantava a Annie e Saramago e Isabel e Borges
Coelho e Alexandre Ribeirinho quando lá iam almoçar ou jantar e ficavam até
tarde à conversa. Parecia que viajava, conduzido por uma espécie de alegria
breve, um instante de graça, um sublime rumor que me deteve por horas, suspenso
da perpetuidade antecipada, como se o ciclo da vida não fosse fechado antes do resumo
feliz do calendário dos anos, beatificados pelos dias comuns na rude tarefa que
nos conduz à morte. Uma das revistas, trazia a casa de Madrid do escritor Vargas
Llosa (o homem possui outras em Londres, Paris e Lima onde julgo nasceu). Não
era espaço onde gostasse de viver. Prefiro mil vezes esta concebida pelo
arquitecto João Biancard, que também veio ao meu encontro, como se repetíssemos
os jantares que deram forma ao traçado magnífico onde hoje vivo. No interior
madrileno de Llosa não encontro as palavras de Virginia Woolf (tradução de
Miguel Silva para a Relógio d´Água e que penso já aqui ter citado): “Parece ser
consensual que os escritores deixam nos seus bens uma marca mais indelével do
que a maior parte das outras pessoas. Podem ser totalmente desprovidos de
sentido estético, mas é como se possuíssem um dom mais raro e mais interessante
do que esse – a capacidade de se alojarem de forma harmoniosa, de fazerem a
mesa, a cadeira, os cortinados, o tapete à sua imagem.” A Annie quando cá veio
a primeira vez, resumiu desta forma o que viu: “C´est une maison d´artiste; o meu amigo Christian Berteaux c´est une maison qui a un charme fous.” E
no entanto, nada há aqui de valor. O único valor para mim com importância e sem
preço - os livros. E o silêncio. Este que me embebedou até ao delírio, embalado
pela melodia do vento que ocultou as horas enfadonhas que me lembram que estou
de passagem e não me devo reter em nenhuma divisão da casa.
- Ouvi o Mágico na televisão a botar
discurso sobre os incêndios. Que dizer! Propaganda pura, estudada ao pormenor
com as fotos ridículas de sua excelência no seu repouso estival atento aos
acontecimentos, rezando para que Marcelo se conserve distante. Que disse o
nosso feiticeiro senão elogios à sua governação, aos comandos e bombeiros, à
estratégica traçada pelos seus homens na ponta dos quais está o seu dócil Ministro da Administração Interna. Ainda que
as imagens dissessem mais que mil das suas palavras, e nós víssemos a
atarantação dos bombeiros no terreno, a desconfiança das populações em atender
às ordens para deixarem as suas casas, as chamas a engolirem a paisagem, o
nosso Primeiro parecia viver num mundo de rosas e perfumes bentos.
*
Sexta,
10.
Ontem,
ao procurar a menção acima referida, acabei a tarde a reler o pequeno livro de
100 páginas de Virginia Woolf, Londres.
Outra passagem que havia sublinhado quando da primeira leitura: “Nós não
edificamos para os nossos descendentes, que tanto poderão vir a morar nas
nuvens como debaixo da terra, mas para nós próprios e para as nossas
necessidades. Nós arrasamos e reconstruímos tal como esperamos ser arrasados e
reconstruídos.” Colossal Virginia!
- Os clássicos, gregos ou latinos,
nunca nos desiludem. São os grandes mestres que traçaram quem somos e como
seremos no futuro.
*
Sábado, 11.
Somos os maiores. Não só batemos records em futebol como em
incêndios. De entre os países europeus, somos os primeiros em área ardida este
ano. Urra! Urra!
- O nosso dinheiro confiado à
administração dos nossos governantes, é água que corre dos seus dedos finos. Felizmente
existem homens de negócios que dão cartas e fintam os mais espertos lusitanos.
Vem isto a propósito da venda do Novo Banco aos americanos da Lone Star. O
Estado no arrolamento do banco perdeu um espólio artístico incrível -
fotografia, pintura, obras literárias e moeda - com mais de quatro séculos de
um valor que deve rondar os 50 milhões de euros segundo o jornal Público. Sem
falar no nosso dinheiro enterrado lá que deve andar pelos 3,9 milhões de euros.
O curioso ou nem tanto, é que o Banco de Portugal foi avisado do achado, mas
respondeu que também possui obras como aquelas e, portanto, não aprecia
duplicados! Quanto pagou a firma americana pelos 75 por cento do banco? Mil
milhões. Uma ridicularia! As aves de rapina sabem onde encontrar as prezas mais
cintilantes.
- Com o fogo do Algarve extinto,
Marcelo reapareceu com o seu cesto de afectos. Mas primeiro apareceu o Mágico e
mais a sua sombra, ambos cheios de esperança, agradecimentos, acções de graças
por não ter havido mortes. Nem o Primeiro, nem o da Administração Interna, nos
explicaram como foi possível aquela tragédia ambiental e pessoal para tantos
dos atingidos, alguns levados algemados pela GNR de suas casas, e toda a desordem
nas forças de combate que contou com “estagiários”.
*
Domingo, 12.
Marcelo
Rebelo de Sousa foi o último do carrossel do poder a chegar a Monchique e o
primeiro a despachar a fúria de haver sido protelado pelo Mágico e seus
muchachos. Assim que aligeirou o cabaz dos afectos, disparou em avisos ao
Governo para que não entrasse em entusiasmos e aventou a hipótese da criação de
uma Comissão Independente, sob a vigilância da Assembleia da República, que
conheça a razão dos incêndios. O homem sabe mais a dormir que o Mágico no palco
a fazer magia. E depois toda a gente sabe que os socialistas nunca souberam
gerir o país. São espertos em propaganda, mas fraquíssimos nos negócios
correntes. Governam-se e dão a governar. Muitos roubam, alguns são ingénuos, poucos
detestam caviar e champanhe.
*
Segunda,
13.
João
telefonou a desafiar-me para um almoço. Antes tinha destilado a sua raiva
contra a última de Marcelo, que em resposta à pergunta se se recandidatava,
respondeu: “Está nas mãos de Deus.” Eu percebo o que o Presidente quis dizer.
Na sua idade, estamos mais próximos do fim, ainda que esse fim não tenha dia
nem hora para ninguém. Mas é da natureza da vida, partirem os que primeiro
chegaram. Deus, de resto, não nos querendo a sós a enfrentar esse momento,
vai-nos a pouco e pouco preparando para a grande viagem, aligeirados do muito
que fomos acumulando: ódios, rivalidades, invejas, valores materiais, enfim,
tudo o que obsessivamente conquistámos.
- Entrei no epílogo. O juiz
Apostolatos não tarda a revelar-se na sua imensa e grata dimensão. A ver se
consigo terminar o livro antes de partir para Paris.
- No mundo fabulosamente feliz do
Mágico, mais uma rodada de greves: enfermeiros, pessoal de abastecimento aos
hospitais, trabalhadores portuários.
*
Terça,
14.
Vergílio
queixa-se que eu deixei de lhe ligar. É verdade. Assim como a tia Júlia, a um
ou outro amigo. São normalmente pessoas idosas, a quem eu levei anos a discar
os seus números e quase nunca era correspondido. A amizade não se mendiga. Ela
deve ser reciproca ou então não é coisa nenhuma. A rainha de Inglaterra não
liga a ninguém, nem à sua própria família. São os súbditos que devem
telefonar-lhe. Acontece que a realeza não faz o meu género.
- No comboio que me levou a Lisboa,
sentadas a meu lado, duas santas mulheres falavam dos seus cônjuges. Uma dizia
que o marido era incapaz de ajudar em casa, deixava as luzes acesas, era porco,
esquecia-se das chaves do carro na ignição; a outra, mais contida, falou em
linguagem encriptada do companheiro que nem na cama a satisfazia. Nesse
particular, pelo que percebi, estavam ambas em sintonia. E eu do meu lado,
fingindo que não me interessava pela conversa, pensava: “Para que servem homens
assim?” É caso para se dizer “l´amore va oltre le parole, è impossibile
definirlo a parole perché si deve vivere direttamente.”
- O Mourato apareceu esta manhã na
Brasileira. Há muito tempo que não o via e logo que ele entrou, perguntei:
“Então ainda estás intacto?” Esperava que me respondesse como fazem os novos e
sobretudo os velhos para quem está sempre tudo na vertical. Mas não. Ele foi
mais assertivo e disse: “Olha, para tua informação, ainda dou três.” “Ah,
valente!” disse eu, desconfiado. Então ele esclareceu: “A média são três: duas
tentativas e uma nega.” Depois passámos a coisas menos sérias, mas nem por isso
menos importantes, como o magnífico livro que ele ilustrou com escritores,
políticos, pintores e são no seu traço e interpretação pessoal, uma maravilha.
*
Quinta,
16.
O
mundo ontem parecera abandonado pelo Criador e prontamente ocupado por Lúcifer
que nele instalou a sua avidez de morte e caos. Num só dia, uma parte da ponte de Génova caiu levando à morte até ao
presente 40 automobilistas e ferindo um número ainda indeterminado dos que a
atravessavam no momento fatídico; em Londres um homem, junto ao Parlamento,
feriu de enfiada uma série de pessoas ao embater a grande velocidade na vedação
de metal de acesso a Westminster; no Afeganistão, a organização que sustenta os
talibans, matou 40 pessoas; duas dezenas de crianças libanesas, morreram ao
atravessarem o Nilo... Só neste rectângulo abençoado pelas festas estivais e
pelo futebol que fez a sua reentrada em força, a vida prosseguiu monótona e
inútil, isolada e feliz.
- A freiras do BE, senhoras poderosas
do convento de S. Bento, apesar do perigo solar sobre os seus rostos devotos,
saíram enraivecidas contra Marine Le Pen. A senhora havia sido convidada para
falar numa reunião onde se imagina discutia a pobreza e a humilhação dos povos
sujeitos à tirania de Bruxelas, uma coisa chamada Web Summit, quando a ditadura
das irmãs guardiãs da liberdade de opinião tudo fez para lhe cortar o pio. Só
tem direito a ter ideias, quem vestir o mesmo hábito, for minúsculo e sectário,
e se pôr em bicos de pés para se agigantar. O mundo desta gente é sinistro,
faccioso e grosseiro. São víboras assanhadas pelo poder. O pivete no convento
deve ser nauseabundo. Fujam!
- Como eu sempre pensara, existe, de
facto, uma linguagem política ou dos políticos. Anteontem, à mesa do café,
explicando que o Mário (advogado) tem um irmão interessante e culto, que possui
o hábito e o gosto de emprestar os seus livros e até consente que os anotem, o
João salta-me em cima afirmando que “na linguagem dos políticos eu estava a
dizer que o Mário não é culto nem interessante”. Contra-ataquei: “Odeio a
linguagem a que chamas da política, pela simples e exata razão que o que tenho
para dizer digo sem segundas intenções nem falsos elogios. No caso, não é o
Mário que está em situação, é o irmão.”
- Período de desânimo pelo muito
trabalho aqui na quinta que se vai acumulando sem que eu consiga realizá-lo.
Quem chega como o caso ontem da Mariette e companhia, vem para gozar dos
prazeres da atmosfera e da mesa. Por isso, recusei a vinda do Carlos amanhã
para um almoço. Estou esgotado.
*
Sexta,
17.
A
madame Brigitte Bardot disse que o ministro da Ecologia francês, Nicolas Hulot,
é “um cobarde de primeira categoria”. E disse muito bem. Este é mais um que
apregoa a contenção em favor do Planeta, mas faz rigorosamente o contrário. Tem
não sei quantos carros, apartamentos e assim. Pertence ao grupo dos que não
dispensam o caviar e o champanhe a acompanhar.
- Eu estou absolutamente de acordo com
o Governo italiano quando, pondo os pontos nos ii, reclama responsabilidades
aos que detinham a exploração da Ponte Morandi, em Génova. Diz que a exploração
da ponte não devia servir apenas para ganhar milhões, mas também para a
manutenção. E nós por cá como vamos depois da Ponte de Entre-os-Rios há uns
anos, quando o país era dirigido pelos socialistas? E o que se diz sobre a
segurança na Ponte 25 de Abril? A nossa extremosa UE, perante as palavras
justas do actual Executivo de Itália, apressou-se a falar de não sei quantos
milhões oferecidos ao país para infra-estruturas e auto-estradas. Mas a
realidade é, todavia, outra: os povos sob o domínio daquele mastodonte,
apertados no colete de forças que é o PIB, a gestão diária sugada e ditatorialmente
imposta, não têm margem para acudir senão aos desastres que vão acontecendo por
todo o lado.
*
Domingo,
19.
Não
consigo vislumbrar que contributo traz Santana Lopes à democracia com a criação
do seu partido Aliança. A princípio pensei que era o trampolim para Bruxelas
como fez Marinho Pinto, mas eis que o velho político esclareceu os cépticos
como eu que esse objectivo não está no seu horizonte. Então o que o move? Raiva
contra aqueles que o marginalizaram? Precisão do poder para estar vivo? Uma
família para sustentar? O que for se verá. Agora de que estou quase certo, é
que Lopes direccinou Costa para a maioria absoluta. Infelizmente.
- Ontem assisti, maravilhado, no canal
2, ao espectáculo da canção francesa. O grande Charles Aznavour disse que a
canção do seu país é antes de mais o texto. Tem razão a começar pelos seus
próprios poemas que não desmerecem da música e ambos são obras-primas eternas. Os
meus amigos em Paris que o conhecem, dizem-me que o nonagenário tem mau feitio.
Talvez. Ele não deve apreciar a mediocridade. Entre nós, com raras excepções,
não existe boa música. Cada vez mais a choldra tomou conta do espectáculo
alimentada pela RTP1, TVI e câmaras desta língua de terra salpicada de autarcas-vedetas.
- Os bombeiros, em Génova, ainda lutam
para salvar possíveis automobilistas soterrados na enorme sucata da Ponte
Morandi. Entretanto, celebraram-se as cerimónias religiosas dos infelizes
falecidos no desastre. As imagens que nos chegam são comoventes. Só quem nunca
esteve em Itália pode admirar-se com o fervor que toca os corações dos
italianos. De todas as idades. Lembro-me de uma tarde de calor insuportável, em
Assis, quando desci um desfiladeiro que parecia não ter fim para visitar o
pequeno convento de S. Damião nos arredores da cidade. Quando cheguei, exausto
de tanto andar e mortificado pela canícula, sentei-me à entrada com vista para
o vale de Assis e a cidade do Poverello. Não havia ninguém. Quando subi ao
claustro, ao fundo, a fazer ângulo, vi um casal de uns vinte anos de joelhos a
orar. Aproximei-me, maravilhado e comovido, voltados para a parede onde uma
pintura do séc. XIV (?) representava Santa Clara, eles eram os únicos
visitantes. E que visitantes!
- Morreu o empresário Pedro Queiroz
Pereira. Levou a vida microscópica a defender o seu império para o vir a perder
para a morte. Aquele que nos dirigiu e depois governou a Europa de Bruxelas com
o seu sorriso macaco, era seu amigo e costumava passar férias na propriedade
que o triste possuía no Brasil. Que descanse em paz. Ele que agora sabe quanto
perdeu ao empenhar-se sofregamente em viver vida... ganhando fortunas.
- Não sei o que restará do trabalho
esta manhã no Café da Casa. Há uma espécie de aceleração da história que entrou
no Epílogo. Apostolatos de uma penada abre-se ao mistério que tem sido difícil
revelar. As palavras saltam para a folha do computador de todos os lados,
decidem do labirinto, fecham a boca às personagens, ocupam o enredo sem esperar
que o narrador as oriente. É certo e sabido que amanhã este brouhaha será apagado com uma simples
tecla.
*
Segunda,
20.
Um
rapaz muito novo, de carrapito negro pendente da nuca, ensandecido às sete da
manhã, que acompanhei até ao metro, em Sete Rios, e à minha frente gritava –
literalmente – ao telemóvel contra aquela que suponho ser a sua companheira: “Ó
Lúcia tu não me provoques, não me enerves, a Catarina (filha?) nunca ficará
contigo, eu dou cabo de ti, olha que não respondo pelos meus actos...”
O curioso desta história, é que não
havia uma semana que eu descrevera uma cena semelhante, passada na secção do
tribunal onde o juiz Apostolatos exerce.
- A noite passada, acordo às quatro da
madrugada, com o anúncio da morte do Eugénio. Uma voz sacudiu-me do repouso e
num tom nítido de quem tem uma missão a cumprir, diz-me que o meu amigo que não
vejo há mais de dez anos, acabara de falecer. Já não consegui recuperar o sono.
Devia telefonar-lhe, mas há um mês o chip do meu telemóvel avariou e tive de
comprar outro sem que a Vodafone conseguisse recuperar a lista de quase uma
centena de pessoas nele guardadas.
- Almocei no Alentejano, Bairro Alto,
com o João e o Guilherme. Grande conversa ao prazer do Corregedor que nela
respirou de satisfacção. Ninguém a preparou, veio no correr da confraternização,
palavras atrás de ideias, como assim deve ser, não tendo a cultura de ser
forçada a apresentar-se ao convívio dos cavalheiros que gostam de a ter de
manhã à noite, uns chatos se me permitem. Falou-se da origem da religião
católica, do judaísmo, do celibato sacerdotal, etc. João é ateu, Guilherme
pensa bem, mas tem dificuldade em se exprimir. Naquele reino, impus-me eu
respondendo ao João que o seu ateísmo remete para uma espécie de populismo que
a Igreja, a reboque das modas, da política e do baixo nível cultural das massas,
aproveita para navegar à vista da descrença e da ausência de Deus, substituído
pela parafernália de valores sem valor absolutamente nenhum. Do puro
vazio.
*
Terça,
21.
Novo
tremor de terra em Lombok, Indonésia, com magnitude 6,9. Não fez um mês quando
a cidade foi sacudida por outro abalo sísmico que levou 460 pessoas e deixou
milhares sem casa. Por todo o lado as alterações climatéricas, inundações,
incêndios e calores insuportáveis chegam e partem deixando a terra num sufoco e
os seus habitantes em desespero. Será isto cíclico ou provocado pela actividade
humana que produz e consome como se os recursos fossem inesgotáveis.
- Ontem tive uma interessante conversa
com o Brito, nosso antigo colega do Diário de Lisboa. Está com 92 anos, quase
cego, surdo, mas mantém o cérebro e uma actividade invejáveis a par de um humor
astuto à prova de bala. Vive, só, para os lados de Benfica e desce ao Chiado
todas as manhãs para estar com os amigos. Contou o seu feito, depois de a
mulher morrer e ter optado por conservar a memória dela, assim como a casa onde
ambos foram felizes. Trocámos vidas, isto é, falámos do que é viver em
solitário e das alegrias que isso nos traz, a ele apesar da idade avançada, a
mim que lentamente me vou aproximando. Tanto ele como eu, convergimos nas
vantagens de uma vida cuja opção foi a solidão criadora, a disponibilidade aos
outros, a ausência de egoísmos debruados da ternura dos filhos possessivos, que
nunca crescem e têm os pais por escravos ao seu serviço. Grande leitor, só há
pouco tempo ficou impedido de ler e isso foi um choque que me pareceu hoje
aceite como natural. Cito uma vez mais Oscar Wilde: só envelhecemos por fora, o
coração permanece jovem – esse é o drama da existência.
- Vários jornais trazem hoje boas
notícias. A melhor de todas é os aumentos aos reformados no próximo ano de
eleições. Assim como reduções do iva na electricidade chinesa e mais umas
quantas benesses retidas para brilharem em pleno nas legislativas. Este tipo de
gestão, mostra a irresponsabilidade dos partidos quando no poder e prova que as
pessoas têm razão ao não confiar nos políticos, fartas de serem usadas e aldrabadas
sem respeito nem dignidade.
*
Quarta, 22.
Eu
devia dedicar-me em exclusivo à jardinagem. Ser jardineiro é qualquer coisa de
mágico, é viver da lentidão da beleza, da cumplicidade da arte, do refúgio da
vegetação que nos defende da invasão da cidade e prende-nos ao silêncio que
dialoga com a eternidade. É estar sempre voltado para nós, perscrutando o que
no nosso interior permanece de imanente, de secreto, mas também de evanescente.
Que o diga a Cica que todos os anos desenvolve esta espécie de falo que daqui a
um mês expandirá em ramos; ou este nenúfar que eu transplantei e se sente tão
bem na pedra antiga à entrada da casa.
*
Quinta, 23.
Fez
bem Zélia Afonso em ter recusado que o marido fosse parar com os costados ao
Panteão Nacional. Outra coisa não esperava eu da mulher que conheci juntamente
com o Zeca no tempo da outra senhora, num serão em casa de ambos, em Setúbal. A
bandalheira em que os senhores deputados transformaram o sarcófago pátrio, já
só serve hoje para recolher o cadáver dos fatigados jogadores de futebol.
- A mim quer-me parecer que há nas
sucessivas greves dos enfermeiros a que junto as declarações absolutamente
reles dos dirigentes sindicais, o propósito de acabar com o SNS. Não me admira
que a ultra direita esteja por detrás destas acções inconsequentes, levianas e
atentatórias da saúde dos portugueses. Dizem-me que eu tenho muitos leitores
entre o pessoal médico e hospitalar. Se assim é, que alguém leve até eles esta
minha revolta e cessem de dar protagonismo à sua bastonária.
- As temperaturas não baixam obrigando-me
as regas constantes. Por todo o lado, estão acima dos trinta graus. Aqui 36º.
- Os netos dos portugueses que
passaram a fronteira a pé para França, estão a optar por viver em Portugal.
Dizem-se cansados da política de Macron, temem pelas suas vidas, preferem a
pacatez desta zona onde os pais têm casa. Ontem jantei em casa de um e todo o
serão foi a projectar o retorno definitivo.
*
Sexta, 24.
Há
uma tabela recentemente publicada que dá conta que Portugal está entre os dez
primeiros consumidores mundiais de álcool. É mais uma vitória a par das outras
que há dias registei. Somos um país óptimo até para bêbados. A verdade porém, é
esta: estamos cercados de alcoólicos. Não admira pois que as desgraças caiam em
catadupa: acidentes rodoviários, assassinatos familiares, violência no futebol,
adolescentes a consumir toda a sorte de drogas, incapacidade para o trabalho,
precariedade no sono, doenças várias, a lista não tem fim.
- A figueira falada séculos antes de
Cristo e na Bíblia e por gregos e romanos, árvore robusta, nascida para guardar
os segredos que debaixo dela se revelam, protectora de grandes sombras que se
estendem benfazejas sobre as cabeças dos filósofos e sábios e rabinos, cujo
fruto é por si só uma bênção do céu, cresce aqui cinco mil anos depois em
liberdade, borrifando o ar do seu perfume único, que lembra e imortaliza o
Verão, em rodadas de folhas largas, luminosas e de um verde intenso. Esta que
gosto de chamar-lhe minha, não pode com tanto figo e rasteja no chão, derreada.
- O romance de João Tordo As 3 Vidas não me convence. Na badana do
livro, houve quem o comparasse a Saramago embora eu não perceba bem porquê. Se
é porque a história está bem contada, sim, de facto está. Todavia, não é por aí
que um autor se pode considerar escritor. O que eu enxergo no livro, é a
tradução técnica própria de um guião para filme. Nota-se na narrativa a
pesquisa técnica das drogas aplicadas por Milhouse Pascal aos seus pacientes,
assim como a preocupação do autor em as explicitar (pp. 194-200) como se de um
relatório se tratasse. A par de uma infinidade de gralhas, do português próprio
da linguagem oral, de uma coisa ali, outra acolá mal construída, o tratamento cerimoniático
de uma personagem para o tutear, ou o pronome você e por aí fora. Para não
falar na apresentação do livro enquanto objecto (edição QuinNovi) um desastre.
Perante tudo o que fui anotando, tive curiosidade em ir ver quem havia feito a
revisão – não existe. Quer dizer foi João Tordo que se ocupou desse trabalho. O
pobre. Prefiro continuar a guardar a leitura do seu primeiro romance O Livro dos Homens sem Luz ou até O Bom Inverno.
*
Domingo, 26.
O
tormento da escrita. Passei toda a semana angustiado porque cada manhã sentado
ao computador, não conseguia alinhar mais que três quatro palavras. Pensei:
“Desiste. Vai fazer outra coisa e destrói as 247 páginas que constituem o
original que tanto te alucina.” Depois, sem perceber porquê, no Café da Casa,
às primeiras horas do dia como é habitual, enchi uma página ontem e hoje duas.
Milagre! O mistério da escrita ou da inspiração, ou lá o que seja, surge do
fundo dos abismos interiores para se metamorfosear em algo sem fantasias nem
esforço – em pura realidade.
- O Papa está na Irlanda. Corajoso,
frontal, simples, humano, enfrenta todos aqueles que lhe atiram à cara os
vícios e pecados de uma Igreja que só há poucos anos é governada por ele. Claro
que todas as crianças que foram violentadas por padres e bispos usando a sua
missão sacerdotal, devem ser julgados e afastados da Igreja. Mas isso não deve
ser trampolim, como eu tenho visto e ouvido, a uma dúzia de comentadores ateus
ou agnósticos para vociferarem contra a Igreja num todo. Eles usam a pedofilia
para manifestarem o seu asco ao Papa que dizem não estar a fazer o bastante para
corrigir os erros do passado; mas a mim, a impressão que me dão, é que com a
sua indigna acusação, escondem o seu gosto por crianças ou pretendem
protagonismo que de outro modo não gozarão.
- É verdade que para a Igreja, desde
tempos remotos, o sexo sempre foi um problema. Suponho que desde o Apóstolo
Paulo. Das muitas Cartas que conhecemos dele, verdadeiras ou falsas, o tema
sexo ocupará, talvez, metade das suas obsessões. Foi, aliás, de certo modo S.
Paulo que ante o mundo promíscuo de então, alienado à fornicação selvagem, onde
o corpo era usado com quem calhasse, para evitar, digamos, essa bandalheira,
impôs a opção de cada homem ter a sua mulher e cada mulher o seu homem, deste
modo passando a usar o corpo em união restrita. Esta é a contextualização de
Frederico Lourenço e é também a minha. A Igreja actual, apesar dos avanços
sociais e morais, continua a pensar como S. Paulo e toda a sua doutrina decorre
das Epístolas do abnegado pregador. Daí a ideia de uma certa esquerda dita
progressista, contra o celibato dos padres. Outro dia o João Corregedor, hoje
no Público Vicente Jorge Silva. Para ambos “o celibato dos padres constitui um
dos factores decisivos dessa doença (entenda-se a pedofilia).” Nada disto é
verdade. Os dois ignoram a mensagem de Jesus Cristo, ambos incorrem num engano
facilmente contestado. Não é pelo facto de os padres amanhã formarem família,
que a pedofilia acaba. Veja-se as estatísticas que dizem que os maiores e mais
frequentes pedófilos estão no seio das famílias. Depois a exclusividade dos
sacerdotes à Igreja, quero dizer a Deus e aos fiéis, não é a mesma. A PIDE
sabia disso. Quando queria atacar forte alguém, escolhia de preferência casados
e dentro destes os que tivessem filhos. A partir do momento em que uma mulher
ou um homem opta pela via do casamento, não pode considerar-se mais
absolutamente livre. A própria natureza se encarrega de fazer a escolha. Já
agora mais uma achega. Alguns pensam que os homossexuais são propensos a violar
crianças, orientam as suas acções e os seus princípios para aquilo que os
satisfaz e desse “vício” tornam-se dependentes. A Irlanda que recebeu o Papa
tem como primeiro-ministro um homossexual assumido, mas nem por isso deixou de
estar onde Francisco esteve. A França idem com um embuçado, a Bélgica...
- O Mágico repetiu à exaustão que este
ano teríamos menos fogos, lembram-se? Pois bem, há dois meses que quase não
houve um dia em que os bombeiros não tivessem de serviço á tragédia.
- Faleceu, com 92 anos, o poeta Luís
Amaro. Era o adjectivo superlativo do saber e da cultura nacionais. Um homem
bom, prestável, verdadeira enciclopédia que todos nós consultávamos...
graciosamente. Descansa em paz nobre poeta. Que deu a tanta gente boa para
desertar?
*
Terça, 28.
Um
dia perguntei ao Tó que exerce medicina num hospital privado, mas antes
trabalhou no Curry Cabral, como eram recebidas as pessoas sós, sem ninguém
próximo, que apareciam no limite das suas forças. Ele respondeu-me, ante a
minha descrença, que todas as equipas médicas tratavam do solitário, novo ou
velho, com toda a consideração e humanidade. Pensei: “fala por ti”, sem lhe
transmitir o meu pensamento. Esta manhã, com mais tempo que na semana passada
quando passei na Brasileira a caminho do almoço com a Alzira, pude estar com o
Brito pelo menos hora e meia. Quando cheguei já lá estava ele e o Mário
(economista). Brito não me reconheceu, tendo perguntado ao nosso amigo quem
havia chegado. Quase gritei dando-lhe conta que era eu. Daí começou uma longa
conversa que largou de Lisboa a Macau, de lá a Coimbra e mais não sei aonde. O
jornalista e homem de cultura falou sem descanso, o cérebro envolto nas
recordações que saltavam vivas com imagens lá dentro. Quem o visse e ouvisse
não diria do estado físico em que se encontra. Contou-me que a semana passada,
quando se levantou, viu no espelho a sua imagem com farta cabeleira que lhe cobria
os olhos. “Homessa! Então eu que sou careca estou com tanto cabelo!” Foi de
casa imediatamente ao hospital. A médica que o recebeu e antes as empregadas
que o atenderam, todas “pareciam ter pena de mim, velho com 92 anos, surdo e
cego”. “Então e o senhor vem assim sozinho?” “Detesto essa mania do
coitadinho.” Resumindo: a clinica marcou para depois de amanhã a operação à
retina (urgente, portanto). Ofereci-me para o acompanhar, ele agradeceu.
“Consegui convencer dois sobrinhos com a promessa que lhes pagaria o almoço.” Disse-lhe:
“Brito é melhor assim que ter filhos e netos, e não haver ninguém que se
interesse por acompanhar ou havendo por interesse. A decepção, nesses casos, é
mortal.” Mais uma vez, constato que a cultura é muito útil em todos os momentos
da nossa vida. Sem ela ficamos abandonados, reduzidos aos instintos, à mercê da
caridadezinha, como os coxinhos, coitadinhos. Prefiro a solidariedade, a
amizade franca e desinteressada, a coragem que nos faz morrer de pé. E já agora
o humor que no caso do meu amigo é o húmus da dignidade.
- No Fertagus li no Público que a SIC
e TVI estão em perda de audiências. Pudera! A estação de Balsemão é uma droga
de telenovelas em série; a outra uma lixeira nauseabunda. A SIC contratou uma
tal Cristina Ferreira de que já aqui falei quando a Piedade se indignou por eu
não saber quem artista. Quer a estação ganhar audiências e muito dinheiro com
aquela que se faz passar pela Oprah portuguesa e um salário anual de um milhão
de euros. Toda esta miséria é contada com hossanas de país dos mais
desenvolvidos do mundo. Dito isto, como nunca vi a senhora, não posso ajuizar
do seu trabalho, mas imagino o que seja.
*
Quarta, 29.
O
Ministro da Ecologia francês, o tal que eu já aqui falei, pregador pelo Planeta
contra as emissões de ozono para a atmosfera, Nicolas Hulot de seu nome,
demitiu-se em directo num programa da France Inter. Uma originalidade à la française porque ninguém sabia que
ele ia demitir-se, nem mesmo Chou Chou o seu patrão. O homem estava farto dos
lobbies, farto do cínico Macron, farto de fazer figura de palhaço. Ele bem foi
avisando – entrevistas na RTL1e Europe 1 – contudo precisou de mais de um ano a
aturar Chou Chou para se pôr a milhas. Chou Chou, já aqui disse, vai acabar
pior que o infeliz Hollande.
- Outro chico-esperto é o
Primeiro-Ministro espanhol, dirigente do PSOE, empenhado em imitar a
“geringonça” socialista portuguesa. Como o nosso Costa pontapeou para fora da
carroça do poder António José Seguro, aquele chutou com o medíocre e corrupto Rajoy.
O nosso ambicioso, começou por pensar em si, na sua projecção europeia, e
vestindo o avental humanista, aceitou receber uns quantos migrantes. Pouco
tempo depois, acabado o feito e com os sorrisos fingidos da clique de Bruxelas
conquistados, recusou mais infelizes. Isto foi para a sua imagem exterior. Para
o interior, decidiu mexer nas cinzas do passado e retirar os restos mortais de
Franco do Vale dos Caídos, entregando-os à família. O senhor Pedro Sánchez é
uma fantasia, um pedaço de coisa nenhuma. É um fantasista que pensa apagar a
história com golpes de propaganda. Parece que ambiciona também a anulação das
sentenças dos tribunais do franquismo. Nem imagina no que se vai meter! Como
adverte Diego Lópes Garrido, um notável no Direito Institucional, “se anularmos
por ilegitimidade do regime, temos de poder anular todas”. Enfim, mais uma
caixa de Pandora.
- Deitei-me de madrugada porque estive
colado ao televisor a ver a ópera de Benjamim Britem, tirada do romance de
Thomas Mann, Morte em Veneza. O canal
2 francês, com mise en scène de Willy
Decker e coreografia de Athol Farmer, deu-nos momentos de êxtase, numa
realização ousada, criativa, servida por processos simples, mas intensos
visualmente. No papel de Aschenbach, John Daszak, aqui e ali menos conseguido,
todavia brilhante nos momentos mais intensos da descoberta do jovem Tadzio por
quem se apaixona, na linha concepcional de Visconti criada em filme.
Simplesmente, Willy Decker, neste seu trabalho, foi mais além, ultrapassando o
realizador italiano, quando materializa os sonhos do escritor em crise
criativa. Nesta ópera os dois encontram-se não só para dançar juntos, como para
se abraçarem e juntarem os lábios num beijo amoroso intenso. Mais: o jovem
criado à beleza dos gregos, aparece completamente nu de todos os ângulos
exibindo, por sinal, dentro da minha estética, um corpo pouco harmonioso onde
está afastada a languidez e provocação erótica do Tadzio viscontiano.
- Os críticos, agarram-se a uma frase
infeliz do Papa Francisco de retorno ao Vaticano, quando disse aos jornalistas
que na infância uma criança que os pais suspeitasse de tendências homossexuais,
deviam levá-la para observação a um psiquiatra, reconhecendo assim que a
homossexualidade é uma doença e como tal deve ser tratada, contra as directivas da
Organização Mundial de Saúde. Todavia, quem se der ao trabalho de rebobinar a
cassete, verificará que as palavras de Sua Santidade na matéria, foram bem explicitas
da compreensão e aceitação dos católicos homos até aqui marginalizados pela
Igreja. Aliás, não se compreende por que razão a questão lhe foi posta, quando
o que está em discussão, é a pedofilia. Eu digo: a informação espectáculo tem
tábuas para ocupar.
*
Quinta, 30.
Mais
uma aldrabice da indústria automóvel com a conivência laxista dos governos, que
enganou milhões de automobilistas e prejudicou grandemente o nosso Planeta, a
nossa saúde e a nossa bolsa. Refiro-me à descoberta de quase todas as marcas
andarem a vender gato por lebre. Os folhetos e a propaganda, dizem que o carro
consome, por exemplo, 5 litros aos cem quilómetros, quando na realidade gasta
uma boa percentagem acima. Este método, sustenta o custo mais elevado da
viatura, quando afinal é o contrário. Claro que não vai acontecer mal algum aos
construtores. Por mim há muito que não confio em ninguém e quanto ao desvelo
das nações em se preocuparem com o Planeta e obrigarem os cidadãos a economizar
e a praticar uma vida diminuta, mando-os virarem-se para as grandes indústrias
– são elas as causadoras do estado geral do mundo. A ganância é mais forte que
o futuro do Universo. Quem vier depois que se dane. O capital quer mais
capital, os políticos mais poder. É a decadência e a finitude da nossa espécie.
Morreremos soterrados sob gigantescas catástrofes. A minha esperança, é que os
ambiciosos conheçam o mesmo fim. As
grandes civilizações foi deste modo que pereceram. Pareciam eternas, sucumbiram
com um sopro.
- Levanta o moral, Helder. Olha que
não há melhor começo de dia que apanhar uma cesta de figos de mel. Esfrega as
mãos de contentamento onde entre os dedos ficou um resto do leite pegajoso que
do figo pinga ao ser cortado. Agradece ao Criador o espaço limpo dos produtos
que matam e te permite comer sãmente, respirar o ar puro, cheio do oxigénio
indispensável à vida. Ajoelha-te e bendiz os anos que te coube viver na paz e
na meditação, com línguas de fogo estimulando os sentidos de forma a que
renasças todos os dias pleno de força e de joie
de vivre.