Domingo, 2 de Setembro.
Os
gongóricos cardeais que estão no Vaticano com o mesmo espírito de quem está
para o resto da vida numa estância de veraneio, com direito ao conforto, a
assistência médica, a visita de meninos para lhes aconchegar os pés, trabalham
no remanso contra o Papa Francisco que veio do céu abalar-lhes os anos de
felicidade, enriquecimento e corrupção activa e passiva. Muitos cristãos falam
já num possível cismo. Eu não acredito e penso e desejo que Francisco tenha
coragem de repor a Igreja no caminho do Senhor. Mas estou de acordo com Lídia
Jorge quando disse ao Público de hoje: “O cisma não está à vista, está escondido.”
- No funeral da diva negra Aretha
Franklin, realizado ontem, as imagens que nos chegam dos Estados Unidos,
mostram a sumptuosidade de uma grande festa: dança, cânticos, risos, piadas,
folclore, enfim, colossal animação à moda africana. O corpo da grande senhora
do folk está no meio daquela diversão de pernas cruzadas e sapatos altos cor-de-rosa,
serena no caixão. Dir-se-ia que a viagem que ela empreendeu, é do agrado
daquela gente que parece feliz por a ver pelas costas...
- Outro dia a Google escreveu-me perguntando-me
se queria voltar a receber e-mails de leitores deste blogue. Ao primeiro contacto
não respondi, por achar estranha a pergunta. Fi-lo ao segundo dando
consentimento. Só agora percebi o empenho da empresa que nos governa e
fiscaliza. Num ápice desaguaram por assim dizer na minha caixa de correio uma
série de amigos e desconhecidos; uns encantados por me terem encontrado, outros
por entrarem em contacto comigo. De todos, devo confessar, o que me deu mais
prazer foi o de Luís Pinheiro de Almeida, ele que me diz ter andado à minha
procura durante quatro décadas tendo, inclusive, posto um anúncio no Facebook.
Se eu não fosse bicho do mato, já o teria contactado porque o ouço na rádio e o
vejo às vezes na televisão. É um queridíssimo amigo de outros tempos, a quem devo
uma amizade especial, dado que envolvido em tarefas muito difíceis para a idade
que tinha na altura, ele esteve sempre do meu lado apoiando-me e,
discretamente, harmonizado as situações difíceis que eu tinha para gerir. Atrás
dele, ou por seu intermédio, vieram outros camaradas. Ele sempre foi um
organizador nato e pede-me que esteja num “comité central” no fim do ano. Como
não estou em Outubro e Novembro em Portugal e passarei por cá em Dezembro para
voltar a sair logo no início do próximo ano, a ver vamos como nos organizamos
para o encontro dos velhinhos trôpegos, divertidos e babados por destino e
condição...
*
Segunda, 3.
Fortuna
apareceu aí com areia e cimento para a duo fazermos a reparação dos pequenos
buracos nas paredes e fundo da piscina. In
loco ele olhou-me e sorriu: “Isto do que tem falta é de tinta.” Olhei-o,
estupefacto: “Como assim? – Raspe o que chama buracos com esta escova de aço,
varra, lave com um pouco de água, deixe secar e depois pinte.” Decididamente,
Helder, porque menosprezas a riqueza! Sentados depois na mesa larga do pático a
bebericar cerveja fresca, Fortuna diz-me aos 84 anos que vai-se inscrever para
aprender a nadar. É esta velhice activa no futuro que me cativa. Quem falou de
andropausa?
- Tive duas noites e respectivos dias
um mocho lindíssimo na cozinha. Deve ter entrado pela chaminé. Vi-o várias
vezes e achei-o tão bonito com aquelas vestes cardinalícias, que não fiz
nenhuma tentativa para o pôr fora de casa. Ontem, com espaço bastante,
abrigou-se na sala de jantar. O tapete de oração, berbere, tombou da parede e
quando o levantei do chão, ele saiu espavorido pela janela aberta. Um único
senão: a quantidade de pequenos objectos em barro que eu tinha sobre a chaminé
e havia trazido das minhas viagens aos Açores, foram todos feitos em mil pedaços.
- Como o tempo esteve de feição,
comecei a carregar a lenha para debaixo do telheiro, apanhei figos e fiz
compota. Para descansar, fui à vila fazer uma hora de natação. A piscina esteve
fechada para limpezas anuais e talvez por isso eu era o único utente dentro
dela. Felicidade extrema.
- Le
monde, chère Agnès, est une étrange chose, diz Molière em L´École des femmes. E como vai ele? Uma repugnância como de
costume. Assassinatos, migrações em massa, patuá dos políticos-feirantes, ódios
de estimação, facadas nas costas, impostos para pagar, estradas entupidas com a
sucata ambulante, guerras, humilhação, pobreza e incógnita quanto ao futuro.
Entre nós, o único facto divertido - a retoma da procissão dos corruptos e
ladrões que nos governam em via-sacra pelos tribunais. Será ainda este ano que
Sócrates vergará a arrogância e a pesporrência e aquele que tocava órgão e
rezava nas igrejas será preso?!
*
Terça,
4.
Esta
manhã, pelas oito horas, quando atravessava o Largo do Rato, encontrei um rapaz
com bom aspeto estendido no chão entre dois bancos da paragem do autocarro. Fui
ver o que tinha, perguntei-lhe se precisava de ajuda, ele devolveu-me um olhar
de sofrimento e agradecimento que
carreguei todo o dia como se tivesse trazido às costas um saco de mágoas.
*
Quarta,
5.
Matzneff,
como tantos outros escritores, fechou o seu blogue à canalha anónima dos nicks.
Eu quando iniciei o meu, fui logo atacado pelos burgessos e alguns houveram que
até me ameaçaram de morte, intimidando-me. Como vivo de convicções, limitei-me
a proteger esses e-mails para futuras pesquisas, interditei o acesso ao atonadovento e prossegui o meu trabalho.
Com plena consciência do país onde vivo, mas convencido do aperfeiçoamento que
este labor quotidiano acrescenta à escrita, à claridade das ideias, à revolta e
ao confronto com os bem instalados que tudo fazem para sobreviver com mais uns
patacos, dizendo bem desta e daquele, conformados na paz dos génios laureados
nos palcos das televisões e dos cargos de subserviência. O Simão que está no
meio, a quem eu lamentava o estorvo que é a liberdade sagrada, que se me impõe
por sobre caganças e convencimentos medíocres, respondeu que eu teria mais
dificuldade porque aqueles que gerem as editoras têm medo e dependem de
esquemas para subsistirem. Não serão todos, felizmente. Mas talvez ele tenha alguma
razão. Todavia, é a consciência do meu trabalho, a independência da minha voz,
que permanece. Não tem sido por isso que deixei de escrever e, para ser
sincero, a mim basta-me ESCREVER. Tout court.
Estas considerações vêm na sequência
do que escreveu Gabriel Matzneff outro dia no Le Point e que passo a transcrever: “En ces jours de rentrée
littéraire, je donne ce conseil à mes jeunes confrères qui publient leur
premier roman : si vous voulez être aimés de tous, vivre tranquilles,
contentez-vous d’écrire des romans, ne trempez jamais votre plume dans
l’encrier du polémiste, ne devenez jamais une vox clamantis in deserto,
ne prenez pas de risques. » Evidentemente,
estas palavras são irónicas, dado que o escritor foi toda a sua santa vida um
livre pensador, com inimizades em todos os círculos, e passando por
dificuldades terríveis. Mas ele havia escolhido a liberdade e esta constituiu (constitui)
os pilares da sua original criação literária, da sua premonitória visão
política, da sua revolta e inconformação. Dizia aquela que no início de carreira
foi considerada uma escritora law profile,
Françoise Sagan: “Il faut de la violence
pour écrire, un tempérament.”
- O fogo destruiu quase por completo o
Museu Nacional do Brasil. Diz-me quem o conhecia que era notável do ponto de
vista da história, cultura, educação. Possuía uma fabulosa colecção de múmias
da América Latina, a par de muitos outros tesouros hoje reduzidos a cinzas. Por
sarcasmo do destino, o incêndio aconteceu no dia do aniversário da assinatura
do decreto de Independência do Brasil, a 2 de Setembro de 1822. Ali guardava-se
não só a história do Brasil, como a nossa história. Duzentos anos desapareceram
e duvido que tenha sido por descuido ou coisa do género. O antigo Palácio de D.
João VI, no Rio de Janeiro, reduzido a paredes carcomidas! Será que uma joia daquelas
vai morrer sem conhecermos os seus algozes?
- Chou Chou vai de mal a pior. A
equipa que formou quando ganhou as eleições, em pouco mais de um ano, está
desfeita. Ele que acreditou que a sua “juventude” era suficiente para manter
uma nação como a França! Os casos dos seus bambinos - ele que parecia um juiz à
moda antiga expurgando dos eleitos os pecados -, são mais que muitos, e pouco abonatórios
para eles e, sobretudo, para a imagem de honradez que o Presidente queria dar.
Ainda falam de Trump. No Eliseu, as saídas e entradas, acontecem a um ritmo
alucinante.
*
Quinta,
6.
Os
jornais e as televisões, andam perdidos de jubilação porque Portugal vive mais
um momento “fantástico” de futebol, alimentado pelas notícias que eles apregoam,
segundo as quais o “icónico” Benfica pode vir a ficar interditado de jogar
durante três anos. Isto porque impende sobre ele uma carga de crimes de ordem
vária. Só a SAD tem às costas 30 crimes, para não falar em Paulo Gonçalves,
José Silva e Júlio Loureiro num total de mais de cem delitos. Ora, como a corrupção
está à desgarrada pelo mundo do futebol, pergunta-se alguém com dois dedos de
testa, acredita no que os órgãos de informação divulgam. Porque o Benfica não é
melhor nem pior que todas as outras equipas. Se a Justiça condenar o clube da
Luz, vai ter que atacar todo o futebol nacional e já agora os políticos que se
encostam ou são cúmplices ou vivem do futebol. Quem acredita nesta zoada? Em
que país pensam eles viver? Que fantasia é esta? Então não é o espectáculo que
interessa, a publicidade que cresce, e já agora o protagonismo de algumas almas
do outro o mundo. Claro que não vai acontecer absolutamente nada. O futebol é
outro mundo, outro planeta, vale não sei quantas vezes mais que Portugal com os
portugueses lá dentro. O futebol é uma nação. Urra! Urra!
- Assisti a cenas tristes no Chiado e
no metro entre lisboetas e chineses. Estes estão por todo o lado, numa
algazarra chinesa de olhos em bico, apossando-se dos lugares, avariando as
máquinas de bilhetes nas estações de metropolitano, fazendo esperar os passageiros
nacionais que desesperam com a invasão sem que as estruturas se tenham
preparado para tantos passageiros. Dizia-me a funcionária do metro quando
reclamei da série de máquinas avariadas: “Isto é a toda a hora. O senhor não
faz ideia quantas vezes ao dia reparamos os aparelhos. Raio que os partam!
Ainda por cima julgam que são donos disto tudo.” De facto, começo a sentir o
ódio dos portugueses a esta tonelada de arroz saltitante. Que Confúcio lhes valha.
*
Sexta, 7.
A
campanha para a presidência está ao rubro no Brasil. Num comício, o líder da extrema-direita,
foi atacado à facada por um louco que diz tê-lo feito mandado por Deus. Entre
um e outro, venha o diabo e escolha. Porque o programa do homem da direita, só
acicata atitudes e violência daquele quilate. Violência chama violência. Os
Trumps têm caminho aberto num mundo de indiferentes, desiludidos, acomodados.
- Almocei com o João Corregedor e o Guilherme
Parente no restaurante A Vela, na doca de Belém. Encontro magnífico, bem servido
de conversa, pleno daquele entendimento luminoso entre pessoas que se estimam e
apreciam o convívio onde entra tanta coisa que o fio das horas face ao manto resplandecente
do Tejo se escoa num ápice. Falou-se muito da próxima exposição do pintor, por
ele apelidada de Mil e Uma. Trata-se
das mil e uma aguarelas que a filha preparou para a monumental mostra e
catálogo do pai. Guilherme com a sua calma habitual, o seu doce sorriso, o seu
labor quotidiano e decerto também alguma astúcia nos relacionamentos profissionais
e sociais, com coragem e determinação vai levar a cabo no próximo ano.
*
Terça, 11.
Maria
José Mauperin morreu com a bonita idade de 89 anos. Conheci-a quando tive o
programa Nova Musa transmitido pela
ex-Emissora Nacional. Era uma mulher generosa, culta, disposta a ajudar, uma
pessoa boa em resumo. Que descanse em paz, crendo eu que com a sua bondade
esteja onde estão os justos.
- João Lourenço, o novo homem forte de
Angola, conseguiu, enfim, ver-se livre da família dos Santos e acabar com “o
nepotismo, a impunidade e a bajulação” como ele afirma. Só espero que com o
tempo, ele não venha a cair nas mesmas tentações. Até aqui, nada a reprovar. A
propósito, na Festa do Avante, foi impedida a venda do livro do jornalista
angolano Rafael Marques. Uma vergonha, um atentado à liberdade de opinião.
- A UEFA criou mais um campeonato a que
chama Liga das Nações. Esmifram os novos escravos da sociedade de consumo a um
ponto que, embora bem pagos, a riqueza não lhes servirá muito, visto que a
pouca vida que terão quando descalçarem as botas, será preenchida de sofrimento
e muitas limitações físicas.
- Acabei de chegar de Caldas da Rainha
onde estive com a Alice. Festejámos por assim dizer os nossos aniversários: eu,
dia nove, ela, três dias antes. Se vivesse na cidade, não dispensaria a ida
diária ao pequeno mercado no centro da cidade. É uma maravilha, cedo, quando a
manhã acabou de abrir as suas asas de luz. Depois o calor instala-se e tudo
fica murcho: vendedeiras, frutos, legumes, nós próprios que por ali andamos no
passo remanso do prazer. Para descansar o cérebro ultimamente muito esgotado,
dispensei o computador, esqueci o telemóvel e deixei a escrita em banho- maria.
*
Quarta,
12.
Ontem
passaram dezassete anos sobre os atentados às torres gémeas, em Manhattan. As
torres eram feias, mais feios e bárbaros e assassinos os que levaram a cabo a
sua destruição.
- Relendo os jornais em atraso, parei
babaca nas pp. 12 e 13 do Público de sexta-feira passada. Nelas tive a
vergonhosa sensação de ser português e ser governado por uma corja de gatunos e
salteadores. Vejamos para a posteridade. Só na chamada Operação Marquês (quem
será o marquês: José Sócrates?), estão 26, VINTE E SEIS, acusados pelo
Ministério Público, quase todos antigos governantes, gestores de topo, um
banqueiro, empresas conluiadas com eles. À conta do nosso impoluto ex-primeiro
ministro, estão levantados 31 crimes: corrupção passiva de titular de cargo
(três), branqueamento de capitais (16), falsificação de documento (nove),
fraude fiscal qualificada (três). Dir-se-ia que durante os seus dois mandatos como
chefe do Governo e já antes como Ministro do Ordenamento e do Ambiente do
Território, mais não fez que estender a rede para recolher todo o peixe graúdo
que pudesse.
- Ouvi não sei onde a um economista a
dizer que afinal, feitas as contas, os portugueses só foram aumentados em um euro
e pouco. Tudo o resto é magia, apregoada pelo ilusionista. Bah, mas isso é o
que eu venho dizendo aqui desde que José Seguro foi atirado borda-fora da
carroça do poder.
- Quem chega entre as oito e as nove
da manhã às portagens da Ponte Vasco da Gama em direcção a Lisboa, experimenta
um arrepio de pavor ante a velocidade, o salve-se quem puder, dos carros
malucos rabiando de todos os lados a ver quem chega primeiro às três vias do
tabuleiro de rodagem!
*
Quinta, 13.
É
uma graça o léxico do presidente do Teatro Nacional São João ao Público de 7
deste mês. Uma tontearia robertiana (já agora, não é?) de linguagem que é comum
àqueles que se querem passar por eruditos. Alguns exemplos: “O TNSJ tem de
confundir as categorias do careta e do prafrentex,” “O São João, após a extemporânea extinção da
Culturporto, teve de ser pai e mãe,” “Timing
cabe à SEC”, “Esta administração não é
um one man show”, “Aqui já estou no
território do wishful thinking”, “A
minha gramática é ricardopaisiana – assumo-o desassombradamente.” Será?
- O furacão Florence que deverá chegar
nas próximas horas à costa leste dos Estados Unidos, traz consigo, segundo os
cientistas, a maior carga de água de que há memória para além dos ventos ciclópicos.
Milhares de pessoas estão em fuga, mas muitos habitantes da zona recusam
obedecer às ordens de Trump e, calafetando portas e janelas, estão dispostos a
enfrentar o monstro. É assustador ver a fragilidade de uma grande e poderosa
nação face à natureza que nenhuma ciência consegue controlar.
- Por mim, no que diz respeito ao
Inverno, já tenho o suficiente de lenha protegida debaixo do telheiro. Foram
semanas a carregar para lá uma parte das toneladas do corte dos cedros no final
do ano passado. Estou derreado. Resta a pintura da piscina que conto começar
segunda-feira. A seguir entrego-me ao dolce
far niente. Forma de falar. Em verdade tenho projectado a conclusão de O Juiz Apostolatos antes de deixar o meu
país, assim como a leitura de dois livros.
*
Sábado,
15.
Tirei
ao caso da prateleira o XIV volume do Diário de Julien Green, L´Expatrié. Sentado no andar de cima,
junto à pequena janela ladeada pelos desenhos do Osório, vou lendo uma passagem
aqui outra mais adiante. A dada altura deparo (p. 517, Ed. Gallimard), com o
pequeno homem com fama de grandes feitos, Winston Churchill. Uma mulher furiosa
diz-lhe: “Si j´étais votre femme, je metrais de l´arsenic dans votre café. –
Madame, responde Churchill, si j´étais votre mari, je le boirais.” Do puro
humor britânico.
- Esta manhã no salão nobre da Câmara
Municipal de Setúbal para a cerimónia da entrega da Medalha de Honra da Cidade ao
Virgílio Domingues. Do nosso vasto grupo só eu e o Alexandre. Inexplicavelmente.
E mesmo assim soube en passant quando
ontem ao almoço no Sinal Verde, Guilherme nos anunciou ao João e a mim a cessão.
Virgílio comovido, frágil, satisfeito subiu ao pódio para receber das mãos da
Presidente o reconhecimento que por mérito lhe pertence, ele que doou uma parte
da sua imensa obra à cidade e está exposta no museu com o seu nome. Pela minha
parte, aguentei firme duas horas e meia de pé, ouvindo discursos,
agradecimentos de mais de meia centena de agraciados, desde o Herman José à
funcionária da limpeza.
- Como eu aqui previ o ano passado, as
irregularidades, os desvios e outros quiproquós, mancharam as edilidades onde o
fogo andou doido a matar e a destruir o que encontrou pelo caminho. Tudo indica
que houve desvio de verbas para construção de casas que não tinham sido
afectadas pelos fogos, assim como de moradas de súbito transferidas para a zona
queimada e assim. Muito dinheiro transviado e na corda bamba está o Presidente
da Câmara de Pedrógão Grande. O homem parece-me honesto, embora presumo um
pouco laxista à maneira dos seus confrades de muitas outras autarquias e juntas
de freguesias. Estamos todos à espera do resultado das movimentações no local
da Polícia Judiciária.
- O calor voltou a instalar-se. Ontem
em Lisboa e hoje aqui 36 graus.
*
Domingo, 16.
Sexta-feira
o nosso almoço terminou no atelier do Guilherme que possui dois andares no
palácio que inspirou Eça de Queirós. Ficámos à cavaqueira pelo adiantado da
tarde quente, misturando anedotas com pintura, política com literatura. Diante
de mim, tive uma tela gigantesca com uns dez metros de comprimento e três de
altura, A Nau Catrineta. Almeida
Garrett haveria de gostar ver o seu poema ilustrado com aquela maestria. Com um
senão para mim - a onda que está em primeiro plano. Devia, talvez ser melhor
trabalhada e a chegada a terra mais onírica.
- Há tanto trabalho urgente por todo o
lado a somar a cada vez menos horas consagradas ao livro e todo ele devido à
aproximação do Outono! Vou ter que ir menos a Lisboa, aos nossos almoços que
duram quase toda a tarde e me fazem perder o dia inteiro. É que outro dia,
acabado de chegar ao portão vindo de Caldas da Rainha, tinha à minha espera o
meu vizinho e logo o olhar se me abriu de espanto ante as centenas de
eucaliptos mortos no chão. Um homem com uma máquina diabólica havia
desenterrado as raízes na forma de bomba atómica com que vivi nos últimos nove
anos e passei a ter, enfim, a certeza que o campo havia sido desminado. “Então,
está satisfeito?”, perguntou ele com um sorriso maroto. Para de pronto me pedir
autorização para cortar uma parte dos pinheiros que estão junto ao caminho e
impedem os carros que vêm de Espanha com rações para os animais passar. Disse-lhe:
“dou se arredondar as árvores que devido às vezes que o senhor as desequilibrou
ameaçam cair”. E assim, de uma assentada, realizei dois trabalhos que me
preocupavam há anos: este e o abate do cedro solitário que o bombeiro deixou
para trás e me pedia 300 euros mais para o cortar. Ainda por cima (no caso do
solitário bombeiral), sem despender dinheiro que prejudique o meu orçamento.
Contudo, antes das chuvas, vou ter que recolher tanta lenha dispersa para um
monte, de forma a cobri-la porque debaixo do telheiro já não cabe uma
pinha.
- Há instantes, pela ARTE, momentos de
comunhão com o divino que atravessa as sinfonias de Beethoven. A Sinfonia nº 5,
dirigida por Murray Perahia que também esteve ao piano com a Academia Saint in
the Fields. Beethoven que influenciou tantos dos melhores que se lhe seguiram
Gluck, entre outros.
*
Segunda,
17.
A
maré dos tufões com nomes pouco agressivos, não pára de chegar às costas dos
EUA e da China, crescendo no Atlântico e no Pacífico. Só o supertufão Mangkhut deixou um caos nunca visto,
levantando prédios, deslizamentos de terras, acompanhado de ventos de
160/km/hora e, até agora, 16 mortos. 105 mil pessoas estão em abrigos
improvisados. Já o Florence, fez
deslocar de suas casas, 22.600 pessoas na Carolina do Norte e 7.000 na Carolina
do Sul. Quase um milhão de casas estão privadas de electricidade, os seus
habitantes condenados a permanecer nas suas residências por vários dias devido
à subida do nível das águas. Enquanto a morte e o desassossego passeia a
espiral de horrores, o resto da população prossegue somando ganhos nas bolsas,
os políticos apregoando o peixe das próximas eleições, milhares de seres
atravessam os mares transformados em cemitérios para muitos companheiros de
infortúnio.
- Fui ler Mateus (9 e 10) recomendado
por Bento Domingues no Público de ontem. Como uma premonição de que o NT é
fértil, encontrei a voz aberta do Evangelista de que o clero dos nossos dias
desconhece ou finge desconhecer. Diz o articulista a dada altura, referindo-se
aos ataques de bispos e padres contra Francisco: “Os padres e os bispos não
mandam na Igreja, servem a igreja.” Na mesma linha diz a democracia: os
políticos estão ao servido do povo e não este ao seu serviço.
- Com a cabeça em desalinho, medi a
tensão: 10,2 - 6,0.
- Às primeiras horas da manhã, antes
da sessão no Juiz Apostolatos no Café
da Casa, comecei a pintar a piscina. In
petto conclui que não devia
seguir as recomendações do Fortuna. Se tivesse afagado o chão e paredes com uma
aguadilha de cimento, seria o ideal. Como me considero uma nulidade em tantos
domínios, confio sempre nos outros que acho sabem mais do que eu.
*
Terça, 18.
Fait
divers divertido. Sábado, depois da recepção na Câmara de Setúbal, encontrei
numa esplanada um dos técnicos das festas, dito produtor de espectáculos. Era
um rapaz compenetrado, de serviço constante ao smartphone, muito aperaltado de
escuro como é o albernó deste tipo de pessoas. Iniciada a conversa a propósito
do declínio físico de um ilustre homem de letras presente no Salão Nobre, por
sinal alguém por quem não tenho grandes simpatias conhecendo-lhe a história
pública e privada, logo o diálogo disparou, inopinado, num rom-rom espécie de harcèlement curioso. A coisa foi ao
ponto de marcação de hora, eu tolhido a
mon age de ternura por ele e por mim próprio, mas duas horas da manhã não é propriamente agendamento que se faça. O
facto, é que sou cada vez mais sensível ao rom-rom e perco-me na carícia das
palavras. “Não sabe o que perde!”, ouvi em jeito de despedida. E eu: “Olha,
perde-se com este cliente, ganha-se com aqueloutro, como no mercado a retalho.”
Explosão de riso. O diabo bem tenta, “mas o céu não lhe responde ou responde
que não”. Oh, querido Régio!
*
Quarta, 19.
Mais
um abandona o barco do arrogante e convencido banqueiro, perdão, Chefe de
Estado francês, senhor Chou Chou. Desta vez, é o seu fiel Ministro do Interior,
Gérard Collomb, o mesmo que chorou, comovido, quando da investidura do seu Presidente.
- Estou todo partido. Como detesto
trabalho mal feito, sendo do signo de virgem, exijo para mim e para os outros,
a perfeição. Vai daí comecei tudo de novo no tocante à piscina. Comprei um
cimento especial e andei desde as sete da matina quando nasceu o dia, a tapar
os buracos e as imperfeições no chão e paredes. A lição aprendia-a na internet.
Só daqui a 48 horas posso ver o que resultou de um trabalho que nunca havia
feito na vida. Mas, Helder, estás sempre a tempo de acrescentar conhecimento ao
teu saber. Se tudo resultar bem, podes mudar de profissão e em vez de passares
o dia a escrevinhar, põe uma tabuleta ao portão com estes dizeres: “Pedreiro
especializado em tapar buracos. 100 euros/hora.”
- O
Juiz Apostolatos aproxima-se do fim. Noto como - verifiquei no João Tordo e
noutros escritores - ao tocar o limite da história, há como que uma irradiação
de maestria que toma conta das páginas. Tordo nos dois últimos capítulos é
sublime, regressa ao autor que eu adoro, e até as gralhas e perissologias, são
quase nulas. Eu, pelo meu lado, tenho de estar mais do que nunca de atalaia. A
narrativa foge-me das mãos, não tenho rédeas nas personagens, tudo se precipita
para o fim deixando-me um vazio que começo já a sentir, pese embora o imenso
labor nas duas ou três sucessivas correções que sou obrigado a fazer. Mas o
principal está feito. Falo da criação, da psicose e delírio que me toma por
inteiro quando estou ocupado em tornar realidade uma fantasia. Ovídio diz:
“Ulisses descrev(e) os (feitos), que fez sem testemunhas, dos quais só a noite
é sabedora.” (Livro XIII, 10-15) Por outras palavras, Ulisses é uma fantasia.
- Mário (advogado), grande apaixonado
pelo mar e os barcos que o sulcam, está nesta altura na Noruega de onde me
enviou este sms: “Caro amigo, estou na Noruega, num porto de abrigo, à espera
que o mar do Norte acalme para iniciarmos a travessia para Inglaterra e depois
para a Corunha.” São viagens que ele paga do seu bolso, aviões para lá e para
cá, alimentação, alojamento e assim, pedido ao dono da embarcação para que o
receba entre a tripulação, tudo pela paixão dos mares. O texto deixou-me a
sonhar. Imagino-o a olhar a tempestade, as noites de ventania, o sono profundo
nos oceanos de silêncio, a camaradagem dentro do barco, o olhar perdido no
horizonte, o lençol de estrelas projectadas nas noites e de dia brilhando em
cintilações quando o sol os faz movimentar, o uísque tomado à proa quando todo
o pessoal dorme já, ele e as vagas, ele e o céu sem fim, ele e os seus
pensamentos, as imagens da mulher e do filho a rodarem no seu cérebro, aquele
cais e todos os outros – sítios onde a terra começa e o mar se expande em
múrmuros e mistérios até ao derradeiro porto onde acabamos todos por chegar um
dia...
*
Quinta,
20.
Esta
tarde na Fnac do Chiado, deparo com um senhor de cabelos brancos, ar distinto,
a dizer para aquela que mais tarde vim a saber ser sua neta: “Não sei se compre
este livro!” O livro era a obra de Daniel Mendelsohn Uma Odisseia, recentemente editada pela Elsinore, uma ainda pequena
editora com qualidade editorial muito acima da média. “Não só deve comprá-lo,
como lê-lo porque é um trabalho muito
sério e bem pensado.” Resumi o seu conteúdo e depois ficámos à conversa por
mais de um quatro de hora. Ele contou a história das pessoas da sua geração, a
mesma que ouço por todo o lado a mulheres e homens com mais de sessenta anos. Vivia
no Largo do Carmo, num edifício pombalino, vasto e cheio de memórias e ali
queria morrer, ele a mulher, ambos com maleitas da senectude. Os filhos
detestam o apartamento e insistem com os pais para o vender ou alugar que eles
não estão interessados em ali morar. “Mas, dizia-me ele, nós queremos morrer
ali e não faz ideia a quantidade de pessoas e empresas que vêm bater-nos à
porta interessadas em o comprar. Chegam a dizer: Peça o que quiser que nós
damos. Isto quase todos os dias.” Todavia, o problema maior do meu
interlocutor, era os 20 mil livros que possui e que também nenhum dos filhos
quer, não obstante os pais terem feito o que puderam para que eles fossem
grandes leitores. “De todos, esta minha neta, é a única que gosta de livros.” A
miúda sorriu e perguntou ao avô se lhe podia comprar os três volumes de bolso
que trazia nas mãos. “Claro e também este que este senhor me aconselha a ler”,
acrescentou juntando a obra de Mendelsohn. Voltando-se para mim: “Vê porque é
que eu hesito em adquiri mais livros. Adoro ler, mas que vou eu fazer da minha
biblioteca que conta com uns milhares do meu sogro que foi um neurologista
reputado.” “Continue a ler, a comprar o que lhe apeteça, não pense no que se
segue depois da sua morte. Goze à maneira dos Estoicos o dia, seja feliz como
lhe aprouver. E já agora não pense deixá-la a nenhuma universidade ou
biblioteca pública. Em Portugal não há interesse, nem sensibilidade, nem gosto
pela cultura”, disse do fundo dos meus ímpetos de revolta. “Mas o que vai ser
desta geração sem interesse pelo saber, a cultura, a história! – Nada.
Absolutamente nada, retorqui. Não se incomode com isso. Uma nova civilização já
se prepara, eles vão ser obrigados a adaptar-se a ela. Talvez essa civilização
não tenha precisão do passado para seguir em frente.” “Não me diga isso! Sem
conhecermos o que os nossos antepassados pensaram e fizeram, não percebemos
quem somos. – Diga-me uma coisa: é preciso queimar as pestanas, frequentar o
liceu ou a escola primária para saber de futebol? Aí tem o futuro: o instante
nasce e morre a todas as horas, vai ser tudo transitório, vive-se o momento.”
Calou-se, a olhar-me do fundo não sei de que espécie de inquietação e depois
despediu-se: “Obrigado. Gostei muito de falar consigo. Continue com essa
força.”
*
Sexta, 21.
Como
vai o país do Mágico? Muito bem, julgo. Em protesto estão os clássicos
enfermeiros, os professores, os estivadores e a dívida pública não pára de
subir, mas isso que importa, o último que feche a luz e encoste a porta...
devagarinho.
- O cérebro é uma máquina incrível.
Ainda não terminei O Juiz Apostolatos
e tenho a tarefa técnica da revisão, ajuste e limpeza do texto, já vou montando
mentalmente a história de O Matricida.
Tenho a ideia geral, mas falta-me tudo o resto. O tema está cá, tudo em volta é
um deserto por habitar. Como antevejo um trabalho de uma extrema complexidade,
talvez ao exemplo de O Pesadelo dos Dias
Felizes, inquieto-me já pelos próximos dois anos. Vou residir no fundo de
um abismo a vasculhar o interior de uma alma condenada à fantasia da construção
cara à sociedade - a família. “Aquele que ama pai ou mãe mais do que a mim, não
é digno de mim.” (Mt. 10-37)
- Pascal diz que Deus está em todo o
lado mesmo nas frinchas das casas. Eu peço-Lhe ao acordar a Sua bênção e sigo
pelo dia fora com a sensação que Ele está comigo mesmo nos ínfimos intervalos
da respiração coordenados com as batidas do coração. Si Dieu le veut antecede cada acção, cada
pensamento, cada tristeza e cada alegria, cada palpitação de silêncio e cada
momento de voluptas in tranquilittate.
*
Sábado,
22.
Cheira-me
que a esta hora José Sócrates e todos os seus capangas, já abriram a garrafa de
vinho de champanhe que tinham de reserva no frigorífico. Os camaradas
encarregaram-se de lhes aliviar as culpas com a não recandidatura de Joana
Marques Vidal. Tudo o que constato é que este país com a sua democracia, não
foi feito para gente honesta.
- O director do Museu de Serralves
demitiu-se na sequência da atitude da administração da Fundação ter impedido a
menores de 18 anos as fotografias de Robert Mapplethorpe e ter obrigado a
retirar da exposição uma parte que mostra sexo explícito. Eu conheço a obra do
fotógrafo americano e sei que na origem da censura à moda fascista, estão as
fotografias dos corpos masculinos, a maioria de negros, que são de uma beleza
estética impressionante. Não admira que os falsos moralistas se sintam
chocados, foram educados à moda de Salazar que tudo consentia desde que não se
soubesse publicamente. Quem disse que vivemos em democracia?
*
Domingo, 23.
Durante
a parada militar da Semana da Sagrada Defesa, que o Irão celebra todos os anos
tendo a vitória sobre o Iraque em mente, um grupo de homens envergando a farda
militar e integrado no desfile, de repente, começou a atirar a tudo o que viam
na frente. Balanço: 29 mortes, várias dezenas de feridos. O ayatollah Ali
khamenei, líder supremo iraniano, apontou o dedo aos Estados Unidos. Mas o
atentado foi reivindicado pelo Daesh e pelo movimento árabe de oposição ao
regime. O chefe do país prometeu vingança análoga.
- O Público traz uma homenagem ao
fotógrafo Alfredo Cunha. No meio do caderno, são vistas várias fotos de
individualidades nacionais e, entre elas, uma do meu companheiro Roby Amorim como
eu o conheci quando me iniciei no jornalismo. Que saudades! Que saudades de um
tempo que começava, de um prólogo agitado, rebelde, que ele tentou trazer à
realidade com avisos ternos que me serviram de emenda para o resto dos meus
dias.
- Fez-se história com o acordo que o
Vaticano celebrou com a China. O trabalho de Francisco é notório e, a partir de
agora, o Papa é reconhecido como chefe da Igreja Católica na China.
- As taxistas ocupam as principais
artérias de Lisboa e Porto há quatro noites e cinco dias. Comem e dormem dentro
dos carros, numa atitude corajosa para se igualarem aos tipos da UBER ou o
contrário que, entretanto, duplicaram os preços aproveitando a paralisação dos
que antes deles já cá trabalhavam. O Governo como eles não fazem cenas, não
entopem o trânsito, estão numa de pacíficos, deixa andar a ver se desistem. O
Ministro do Interior que em boa verdade é o ministro do interior do Partido Socialista,
um homem ao serviço partidário, que nunca esteve ao serviço dos cidadãos,
arruaça força contra os fracos e complacência com os fortes.
*
Segunda, 24.
O
pequenote, com ideias pequenotes, manipulando completamente a informação,
analista como é, em vez de invocar as razões dos motoristas de táxi, afirmou
que eles o que deviam era pedir ao Estado ajudas técnicas e financeiras para
aprenderem a lidar com os novos sistemas informáticos como fazem os seus
concorrentes americanos; quando o que devia dizer era que as condições são
desleais e indignas de um país democrático. Os taxistas portugueses são os
parentes pobres do sistema. Eu não estou contra a UBER e outras organizações, o
que acho é que para haver concorrência leal e proveitosa para os utilizadores,
têm de partir todos da mesma meta.
- O calor está de regresso e os fogos
também muito embora o Outono tivesse entrado ontem. A Annie que me telefonou,
diz-me que em Paris estão 27 graus. Aqui 37 e sem brisa que suavize. Todas as
manhãs, pelas sete, estou a pintar a piscina depois de ter terminado os
arranjos com cimento. Concluí as paredes, amanhã iniciarei o chão, esperando
que S. Pedro não despeje nenhum balde de água cá para baixo. Preciso de bom tempo
até domingo. Com um pouco de sorte, ainda mergulharei este ano. De qualquer
modo, atendendo ao que me disse o filho do João Corregedor que é arquitecto,
devo encher a piscina para que a pressão da água equilibre o conjunto.
- A par disto, tenho a regas diárias.
Ontem, regando do lado do jardim, fui atacado por um enxame de vespas. Eram
tantas ou tão poucas, que me tomaram por alvo e picaram-me na cabeça, nas
pernas (estava em calções), no pescoço. Em vez de fugir, sacudia-as com as mãos
molhadas, numa aflição desenfreada. Acudiu-me o Fenistil apesar dos seus 3 anos
fora de prazo.
*
Terça,
25.
Retiraram
a canga de “maior jogador do mundo” ao nosso querido Cristiano. Todos nós
portugueses devíamos estar revoltados porque, em boa verdade, é a Portugal que
descem do pedestal. Coitado do homem, coitadinhos de nós. Esta época não lhe
está a correr nada bem e até foi penalizado num jogo com suspensão. Na
sequência do opróbrio desfez-se em lágrimas como um bebé mimado. Pois, meu caro
amigo, quero reconfortá-lo, sim eu que detesto a sarna do futebol. Há uma coisa
que ninguém lhe rouba: a categoria de Comendador. Faça você o que fizer, essa
atribuição dada com todos os cestos de afectos que o nosso Presidente carrega
às costas, pertence-lhe para o resto dos seus dias que eu desejo sejam mais que
muitos. Quanto ao estar em boa companhia, não posso garantir-lhe. Tem,
naturalmente, a dos seus camaradas vencedores do Euro, os outros, políticos e
empresários de sucesso, siga o meu conselho: não prive muito com eles, são
piores que a sarna que lhe granjeou a riqueza. Para além de corruptos e
ladrões, ainda lhe podem extorquir a fortuna que acumulou. Vá por mim, senhor
Comendador.
*
Quarta, 26.
Nos
confrontos ocorridos em Trípoli, resultaram 115 mortos e quase quatro centenas
de feridos. Facções rivais que dividem entre si o território que Kadafi
mantinha unido, ilustram a desastrosa intervenção da França e dos Estados
Unidos no derrube do líder árabe. Aquilo é um inferno, mas nem Obama nem
Sarkosy estão lá para sofrerem o que padece o povo. A esta tragédia, juntou-se
os migrantes que são mortos como cães vadios e os que sobrevivem preferem
morrer.
- Tant bien que mal terminei esta manhã a pintura da piscina. Não é
a perfeição que gostaria. Aqui e ali vou ter que retocar, sobretudo nos sítios
em que ainda fui acreditando que o Fortuna tinha razão. O mestre Sebastião acha
que artesanal é tudo que é feito à mão e com deformações que acrescentem valor
à obra. Eu sempre lhe combati essa ideia. Perdi.
- Falam contra a governação de Trump,
a de Costa não é melhor. As trapalhadas à Trump são tantas, que é nele, acho,
que os líderes socialistas aprenderam a fórmula. Que o diga a comédia das armas
desaparecidas de Tancos (a Judiciária ou lá quem foi, deu-lhe o nome de código
Húbris, que cultos que nós andamos!), a transferência do Infarmed para o Porto,
a questão do hospital pediátrico do S. João e por aí fora. Nada é pensado, tudo
é feito com o patuá de feira, a palavra dada NÃO é honrada. Ó Costa, por amor
da santa! Pergunto-me, o que seria do primeiro-ministro sem o actual Chefe de
Estado.
- Esta frase
de Stendhal: “La solitude aporte tout, sauf le caractère.”
*
Quinta, 27.
Dou-me
conta que cada vez mais aprecio o convívio com gente dita idosa. Sobretudo com
aquelas e aqueles com quem convivi ao longo dos anos e envelheceram comigo, eu
a vê-los disfarçar os achaques e depois a assumi-los por inevitáveis; eles a
olharem-me como cúmplice de uma vida de pura e nobre coxearia. Não quero com
isto dizer que não goste de acamaradar com gente nova, só que com esta dou
preferência a que habita nas poucas ilhas existentes no deserto da vulgaridade
e zumbisse que hoje inflama de orgulho a sociedade portuguesa. Como os temas caros aos novos-ricos são o
futebol, o dinheiro e o sexo e eu disso ou nada sei, ou não me avassalo ou me
esqueci, ufa!, empanco diante de gente incaracterística que nada tem a ver
comigo. Porque na realidade o fosso geracional nunca foi tão nítido. Não
deifico a juventude para não parecer velho, mas porque no meu íntimo não vejo
novos e antigos, mas seres humanos. O que veio com o 25 de Abril foi festa para
os que o viveram e o mereceram, e esbanjamento de muita ordem para os que
nasceram depois. Neste desajuste mora a divisão desastrosa, o sentimento de que
a liberdade é um bem eterno, que a vida deve ser gozada pela juventude e
desprezada pela senectude. Há um hiato incomensurável, um voltar de costas não
ao ser humano por quem os anos ainda não passaram, mas ao desprezo que ele tem
pelos valores da cultura, do saber, da solidariedade, do cuidado com o outro,
da abrangência de um conjunto de valores sem os quais os mais velhos não podem
viver. Disto falámos, a Gi e eu, pela manhã fora. Entre muita gargalhada, um
espírito de cumplicidade, um amor a histórias, vividas e inventadas, de que a
memória se nutri não porque sejamos anciãos ou a entrar na derradeira etapa,
mas porque a amizade vai lá a trás buscar o que vivemos juntos e constitui hoje
as páginas fabulosas de um ensaio sem remate.
- Por volta das sete da tarde, há dois
dias, instala-se na entrada da casa, no sítio onde eu queria abrir uma caixa
onde coubesse as minhas cinzas, e dos amigos que desejassem juntar-se na
eternidade, e os pedreiros fugiram deixando os trabalhos a meio espavoridos com
“o louco” que tão bizarra ideia tinha, um ruído contínuo, espécie de viatura a
trabalhar, água a correr, botija de gás a verter... Vou lá fora, inspeciono o
hall, subo aos quartos pensando ser o rádio ligado, olho em volta da quinta a
observar se há algum trabalho em marcha, abano as botijas de gás que estão do
lado de fora perto do local, e nada, absolutamente nada vejo. Mas aquele zunzum
está lá, lá permanece até pelas onze e meia quando subo para dormir. Gosto de
mistérios e daí que este possa ser mais um dos que tenho um dia de decifrar...
- A Françoise Sagan conta no seu livro
de memórias em crónicas, que nos derradeiros anos de vida de Jean-Paul Sartre
ela ia buscar com frequência o escritor a sua casa para jantar ou almoçar. O
filósofo estava completamente cego e era amparado a ela que retomava um pouco
do fôlego de outrora. Desabafa o fabuloso escritor que marcou moral e
civicamente uma época: “Vous savez, quando il m´est arrivé cette cécité et que
j´ai compris que je ne pourrais plus écrire (j´écrivais alors dix heures par
jour depuis cinquante ans, et c´étaient les meulleurs moments de ma vie), quand
j´ai compris que c´était fini pour moi, j´ai été três frappé et j´ai même pensé
à me tuer.” Silêncio respeitoso da parte dela. Sartre pressentindo o que ia na
cabeça da escritora, conclui: “Et puis je n´ai même pas essayé. Voyez-vous,
j´ai toute ma vie été heureux, j´ai été, j´étais jusque-là un homme, un
personnage tellement fait pour le bonheur; je n´allais pas changer de rôle tout
à coup. J´ai continué à être heureux par habitude.” Poche, pag. 463. Que
magistral lição! Eu conheço através da Beauvoir o resto, mas isso fica para
outra altura, se ficar. Seja como for, Sartre foi um homem excepcional, um
pensador brilhante, um filósofo denso e contínuo, um companheiro de vida. Li
muito do que escreveu e deitando um olhar à estante vejo pelo menos quinze
títulos lidos e sublinhados, pensados e repensados. Ele é um dos meus pilares,
como Simone de Beauvoir, Julien Green, Ernst Junger, Klaus Mann, Bertrand Russell
e poucos mais.
*
Domingo, 30.
“Quando
certa apologética infantil, ignorante e perversa falava da história admirável
da Igreja, como uma procissão de heróis, santos, mártires, doutores e místicos,
ilustrada nas pinturas e esculturas das igrejas e capelas, faltava lá o reverso
da medalha: a lista das vitimas dos inquisidores, dos criminosos e perversos em
nome da santa vontade de Deus.” Frei Bento Domingues, Público de hoje.
- Eu louvo a força e tenacidade de Theresa
May. Sabia-se que o primeiro a deixar o barco eurocrata seria sovado até dizer
chega. É o que tem acontecido com o reino Unido. Os arrogantes dirigentes de
Bruxelas, têm humilhado a senhora e o povo britânico que ousou dizer NÂO ao
paraíso da União Europeia. Mas o mais surpreendente e que eleva a Democracia ao
cume grego que a praticou com honra, é o facto de o Brexit não ter retorno. Muitos têm sido os que o pretendem repetir,
mas o Governo de sua Majestade recusa com denodo. E tem razão. Um recente
inquérito à população veio dizer que a sociedade inglesa está absolutamente
dividida: fifty fifty.
- Um grande sismo de 7,5 na escala de
Ritcher abalou ontem Palu, Indonésia, seguido de tsunami. Milhares de mortos,
incontável o número de feridos. Uma vasta zona ficou destruída, casas, carros,
restaurante, lojas arrastados na enxurrada. 16.800 pessoas foram obrigadas a
abandonar as suas casas. As imagens televisivas são tenebrosas.
- Sereno e agradável almoço no
Alentejano, sexta-feira, a sós com o João Corregedor. A conversa não se limitou
apenas à política, tendo abraçado outros temas mais ligeiros e nem por isso
menos interessantes. Por apelo do Guilherme Parente, passámos no seu atelier
onde encontrámos o Alexandre, o Irmão e o Eduardo Nascimento da galeria Artur
Bual. Carlos já tocado decerto durante o almoço no Príncipe onde eu me recuso a
ir para não assistir a cenas tristes, a voz alterada, o rosto rubro, as
gargalhadas sonoras, e despejando uísque como quem bebe água fresca. Para
evitar os cenários que se complicam, pouco tempo fiquei. Ao cabo de trinta
minutos e não obstante a insistência dos presentes para que ficasse, parti.
- Estou absolutamente de acordo com o
João quando diz que não seria aceitável que o juiz Carlos Alexandre julgasse
José Sócrates e os seus coadjuvantes no processo Marquês. Do sorteio, realizado
com as câmaras da SIC a fiscalizar, saiu ao juiz Ivo Rosa a tarefa de ler uma tonelada de papel do
trabalho do formidável juiz que o instruiu por conta do Ministério Público. Os
advogados e mais intervenientes, esfregaram as mãos de contentamento. Depois do
afastamento de Joana Marques Vidal eles confiam que vão evitar o julgamento dos
gatunos que, de resto, ante a opinião geral já foram condenados. A sentença não
acrescenta nada à convicção popular. Ela sabe que das mãos de certos advogados
os maiores ladrões viram bebés inocentes e cândidos.
- Outro dia, entrei numa grande
superfície para comprar um artigo que precisava. O empregado que me atendeu,
levou-me por um longo corredor ladeado de prateleiras, depois contornou à
direita sempre dizendo: “por aqui, meu senhor”. Quando parámos diante do
produto ele disse: “Aqui tem o que procura, meu senhor.” Eu agradeci com um
sorriso indisfarçável. De facto, aquela deferência prefiro-a eu àquela outra
“senhor doutor”, não só porque é mais bonita e nobre, ainda porque me dignifica
sem precisão de qualquer estatuto verdadeiro ou quase sempre falso.