terça-feira, outubro 30, 2018

Domingo, 2 de Setembro.
Os gongóricos cardeais que estão no Vaticano com o mesmo espírito de quem está para o resto da vida numa estância de veraneio, com direito ao conforto, a assistência médica, a visita de meninos para lhes aconchegar os pés, trabalham no remanso contra o Papa Francisco que veio do céu abalar-lhes os anos de felicidade, enriquecimento e corrupção activa e passiva. Muitos cristãos falam já num possível cismo. Eu não acredito e penso e desejo que Francisco tenha coragem de repor a Igreja no caminho do Senhor. Mas estou de acordo com Lídia Jorge quando disse ao Público de hoje: “O cisma não está à vista, está escondido.”

         - No funeral da diva negra Aretha Franklin, realizado ontem, as imagens que nos chegam dos Estados Unidos, mostram a sumptuosidade de uma grande festa: dança, cânticos, risos, piadas, folclore, enfim, colossal animação à moda africana. O corpo da grande senhora do folk está no meio daquela diversão de pernas cruzadas e sapatos altos cor-de-rosa, serena no caixão. Dir-se-ia que a viagem que ela empreendeu, é do agrado daquela gente que parece feliz por a ver pelas costas...

         - Outro dia a Google escreveu-me perguntando-me se queria voltar a receber e-mails de leitores deste blogue. Ao primeiro contacto não respondi, por achar estranha a pergunta. Fi-lo ao segundo dando consentimento. Só agora percebi o empenho da empresa que nos governa e fiscaliza. Num ápice desaguaram por assim dizer na minha caixa de correio uma série de amigos e desconhecidos; uns encantados por me terem encontrado, outros por entrarem em contacto comigo. De todos, devo confessar, o que me deu mais prazer foi o de Luís Pinheiro de Almeida, ele que me diz ter andado à minha procura durante quatro décadas tendo, inclusive, posto um anúncio no Facebook. Se eu não fosse bicho do mato, já o teria contactado porque o ouço na rádio e o vejo às vezes na televisão. É um queridíssimo amigo de outros tempos, a quem devo uma amizade especial, dado que envolvido em tarefas muito difíceis para a idade que tinha na altura, ele esteve sempre do meu lado apoiando-me e, discretamente, harmonizado as situações difíceis que eu tinha para gerir. Atrás dele, ou por seu intermédio, vieram outros camaradas. Ele sempre foi um organizador nato e pede-me que esteja num “comité central” no fim do ano. Como não estou em Outubro e Novembro em Portugal e passarei por cá em Dezembro para voltar a sair logo no início do próximo ano, a ver vamos como nos organizamos para o encontro dos velhinhos trôpegos, divertidos e babados por destino e condição...   
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Segunda, 3.
Fortuna apareceu aí com areia e cimento para a duo fazermos a reparação dos pequenos buracos nas paredes e fundo da piscina. In loco ele olhou-me e sorriu: “Isto do que tem falta é de tinta.” Olhei-o, estupefacto: “Como assim? – Raspe o que chama buracos com esta escova de aço, varra, lave com um pouco de água, deixe secar e depois pinte.” Decididamente, Helder, porque menosprezas a riqueza! Sentados depois na mesa larga do pático a bebericar cerveja fresca, Fortuna diz-me aos 84 anos que vai-se inscrever para aprender a nadar. É esta velhice activa no futuro que me cativa. Quem falou de andropausa?  

         - Tive duas noites e respectivos dias um mocho lindíssimo na cozinha. Deve ter entrado pela chaminé. Vi-o várias vezes e achei-o tão bonito com aquelas vestes cardinalícias, que não fiz nenhuma tentativa para o pôr fora de casa. Ontem, com espaço bastante, abrigou-se na sala de jantar. O tapete de oração, berbere, tombou da parede e quando o levantei do chão, ele saiu espavorido pela janela aberta. Um único senão: a quantidade de pequenos objectos em barro que eu tinha sobre a chaminé e havia trazido das minhas viagens aos Açores, foram todos feitos em mil pedaços.

         - Como o tempo esteve de feição, comecei a carregar a lenha para debaixo do telheiro, apanhei figos e fiz compota. Para descansar, fui à vila fazer uma hora de natação. A piscina esteve fechada para limpezas anuais e talvez por isso eu era o único utente dentro dela. Felicidade extrema.  

         - Le monde, chère Agnès, est une étrange chose, diz Molière em L´École des femmes.  E como vai ele? Uma repugnância como de costume. Assassinatos, migrações em massa, patuá dos políticos-feirantes, ódios de estimação, facadas nas costas, impostos para pagar, estradas entupidas com a sucata ambulante, guerras, humilhação, pobreza e incógnita quanto ao futuro. Entre nós, o único facto divertido - a retoma da procissão dos corruptos e ladrões que nos governam em via-sacra pelos tribunais. Será ainda este ano que Sócrates vergará a arrogância e a pesporrência e aquele que tocava órgão e rezava nas igrejas será preso?!
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Terça, 4.
Esta manhã, pelas oito horas, quando atravessava o Largo do Rato, encontrei um rapaz com bom aspeto estendido no chão entre dois bancos da paragem do autocarro. Fui ver o que tinha, perguntei-lhe se precisava de ajuda, ele devolveu-me um olhar de  sofrimento e agradecimento que carreguei todo o dia como se tivesse trazido às costas um saco de mágoas.
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Quarta, 5.
Matzneff, como tantos outros escritores, fechou o seu blogue à canalha anónima dos nicks. Eu quando iniciei o meu, fui logo atacado pelos burgessos e alguns houveram que até me ameaçaram de morte, intimidando-me. Como vivo de convicções, limitei-me a proteger esses e-mails para futuras pesquisas, interditei o acesso ao atonadovento e prossegui o meu trabalho. Com plena consciência do país onde vivo, mas convencido do aperfeiçoamento que este labor quotidiano acrescenta à escrita, à claridade das ideias, à revolta e ao confronto com os bem instalados que tudo fazem para sobreviver com mais uns patacos, dizendo bem desta e daquele, conformados na paz dos génios laureados nos palcos das televisões e dos cargos de subserviência. O Simão que está no meio, a quem eu lamentava o estorvo que é a liberdade sagrada, que se me impõe por sobre caganças e convencimentos medíocres, respondeu que eu teria mais dificuldade porque aqueles que gerem as editoras têm medo e dependem de esquemas para subsistirem. Não serão todos, felizmente. Mas talvez ele tenha alguma razão. Todavia, é a consciência do meu trabalho, a independência da minha voz, que permanece. Não tem sido por isso que deixei de escrever e, para ser sincero, a mim basta-me ESCREVER. Tout court.
        
         Estas considerações vêm na sequência do que escreveu Gabriel Matzneff outro dia no Le Point e que passo a transcrever: “En ces jours de rentrée littéraire, je donne ce conseil à mes jeunes confrères qui publient leur premier roman : si vous voulez être aimés de tous, vivre tranquilles, contentez-vous d’écrire des romans, ne trempez jamais votre plume dans l’encrier du polémiste, ne devenez jamais une vox clamantis in deserto, ne prenez pas de risques. » Evidentemente, estas palavras são irónicas, dado que o escritor foi toda a sua santa vida um livre pensador, com inimizades em todos os círculos, e passando por dificuldades terríveis. Mas ele havia escolhido a liberdade e esta constituiu (constitui) os pilares da sua original criação literária, da sua premonitória visão política, da sua revolta e inconformação. Dizia aquela que no início de carreira foi considerada uma escritora law profile, Françoise Sagan:  “Il faut de la violence pour écrire, un tempérament.”

         - O fogo destruiu quase por completo o Museu Nacional do Brasil. Diz-me quem o conhecia que era notável do ponto de vista da história, cultura, educação. Possuía uma fabulosa colecção de múmias da América Latina, a par de muitos outros tesouros hoje reduzidos a cinzas. Por sarcasmo do destino, o incêndio aconteceu no dia do aniversário da assinatura do decreto de Independência do Brasil, a 2 de Setembro de 1822. Ali guardava-se não só a história do Brasil, como a nossa história. Duzentos anos desapareceram e duvido que tenha sido por descuido ou coisa do género. O antigo Palácio de D. João VI, no Rio de Janeiro, reduzido a paredes carcomidas! Será que uma joia daquelas vai morrer sem conhecermos os seus algozes?

         - Chou Chou vai de mal a pior. A equipa que formou quando ganhou as eleições, em pouco mais de um ano, está desfeita. Ele que acreditou que a sua “juventude” era suficiente para manter uma nação como a França! Os casos dos seus bambinos - ele que parecia um juiz à moda antiga expurgando dos eleitos os pecados -, são mais que muitos, e pouco abonatórios para eles e, sobretudo, para a imagem de honradez que o Presidente queria dar. Ainda falam de Trump. No Eliseu, as saídas e entradas, acontecem a um ritmo alucinante.
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Quinta, 6.
Os jornais e as televisões, andam perdidos de jubilação porque Portugal vive mais um momento “fantástico” de futebol, alimentado pelas notícias que eles apregoam, segundo as quais o “icónico” Benfica pode vir a ficar interditado de jogar durante três anos. Isto porque impende sobre ele uma carga de crimes de ordem vária. Só a SAD tem às costas 30 crimes, para não falar em Paulo Gonçalves, José Silva e Júlio Loureiro num total de mais de cem delitos. Ora, como a corrupção está à desgarrada pelo mundo do futebol, pergunta-se alguém com dois dedos de testa, acredita no que os órgãos de informação divulgam. Porque o Benfica não é melhor nem pior que todas as outras equipas. Se a Justiça condenar o clube da Luz, vai ter que atacar todo o futebol nacional e já agora os políticos que se encostam ou são cúmplices ou vivem do futebol. Quem acredita nesta zoada? Em que país pensam eles viver? Que fantasia é esta? Então não é o espectáculo que interessa, a publicidade que cresce, e já agora o protagonismo de algumas almas do outro o mundo. Claro que não vai acontecer absolutamente nada. O futebol é outro mundo, outro planeta, vale não sei quantas vezes mais que Portugal com os portugueses lá dentro. O futebol é uma nação. Urra! Urra!

         - Assisti a cenas tristes no Chiado e no metro entre lisboetas e chineses. Estes estão por todo o lado, numa algazarra chinesa de olhos em bico, apossando-se dos lugares, avariando as máquinas de bilhetes nas estações de metropolitano, fazendo esperar os passageiros nacionais que desesperam com a invasão sem que as estruturas se tenham preparado para tantos passageiros. Dizia-me a funcionária do metro quando reclamei da série de máquinas avariadas: “Isto é a toda a hora. O senhor não faz ideia quantas vezes ao dia reparamos os aparelhos. Raio que os partam! Ainda por cima julgam que são donos disto tudo.” De facto, começo a sentir o ódio dos portugueses a esta tonelada de arroz saltitante. Que Confúcio lhes valha. 
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Sexta, 7.
A campanha para a presidência está ao rubro no Brasil. Num comício, o líder da extrema-direita, foi atacado à facada por um louco que diz tê-lo feito mandado por Deus. Entre um e outro, venha o diabo e escolha. Porque o programa do homem da direita, só acicata atitudes e violência daquele quilate. Violência chama violência. Os Trumps têm caminho aberto num mundo de indiferentes, desiludidos, acomodados.  

         - Almocei com o João Corregedor e o Guilherme Parente no restaurante A Vela, na doca de Belém. Encontro magnífico, bem servido de conversa, pleno daquele entendimento luminoso entre pessoas que se estimam e apreciam o convívio onde entra tanta coisa que o fio das horas face ao manto resplandecente do Tejo se escoa num ápice. Falou-se muito da próxima exposição do pintor, por ele apelidada de Mil e Uma. Trata-se das mil e uma aguarelas que a filha preparou para a monumental mostra e catálogo do pai. Guilherme com a sua calma habitual, o seu doce sorriso, o seu labor quotidiano e decerto também alguma astúcia nos relacionamentos profissionais e sociais, com coragem e determinação vai levar a cabo no próximo ano.
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Terça, 11.
Maria José Mauperin morreu com a bonita idade de 89 anos. Conheci-a quando tive o programa Nova Musa transmitido pela ex-Emissora Nacional. Era uma mulher generosa, culta, disposta a ajudar, uma pessoa boa em resumo. Que descanse em paz, crendo eu que com a sua bondade esteja onde estão os justos.

         - João Lourenço, o novo homem forte de Angola, conseguiu, enfim, ver-se livre da família dos Santos e acabar com “o nepotismo, a impunidade e a bajulação” como ele afirma. Só espero que com o tempo, ele não venha a cair nas mesmas tentações. Até aqui, nada a reprovar. A propósito, na Festa do Avante, foi impedida a venda do livro do jornalista angolano Rafael Marques. Uma vergonha, um atentado à liberdade de opinião.

         - A UEFA criou mais um campeonato a que chama Liga das Nações. Esmifram os novos escravos da sociedade de consumo a um ponto que, embora bem pagos, a riqueza não lhes servirá muito, visto que a pouca vida que terão quando descalçarem as botas, será preenchida de sofrimento e muitas limitações físicas.

         - Acabei de chegar de Caldas da Rainha onde estive com a Alice. Festejámos por assim dizer os nossos aniversários: eu, dia nove, ela, três dias antes. Se vivesse na cidade, não dispensaria a ida diária ao pequeno mercado no centro da cidade. É uma maravilha, cedo, quando a manhã acabou de abrir as suas asas de luz. Depois o calor instala-se e tudo fica murcho: vendedeiras, frutos, legumes, nós próprios que por ali andamos no passo remanso do prazer. Para descansar o cérebro ultimamente muito esgotado, dispensei o computador, esqueci o telemóvel e deixei a escrita em banho- maria.
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Quarta, 12.
Ontem passaram dezassete anos sobre os atentados às torres gémeas, em Manhattan. As torres eram feias, mais feios e bárbaros e assassinos os que levaram a cabo a sua destruição.  

         - Relendo os jornais em atraso, parei babaca nas pp. 12 e 13 do Público de sexta-feira passada. Nelas tive a vergonhosa sensação de ser português e ser governado por uma corja de gatunos e salteadores. Vejamos para a posteridade. Só na chamada Operação Marquês (quem será o marquês: José Sócrates?), estão 26, VINTE E SEIS, acusados pelo Ministério Público, quase todos antigos governantes, gestores de topo, um banqueiro, empresas conluiadas com eles. À conta do nosso impoluto ex-primeiro ministro, estão levantados 31 crimes: corrupção passiva de titular de cargo (três), branqueamento de capitais (16), falsificação de documento (nove), fraude fiscal qualificada (três). Dir-se-ia que durante os seus dois mandatos como chefe do Governo e já antes como Ministro do Ordenamento e do Ambiente do Território, mais não fez que estender a rede para recolher todo o peixe graúdo que pudesse.

         - Ouvi não sei onde a um economista a dizer que afinal, feitas as contas, os portugueses só foram aumentados em um euro e pouco. Tudo o resto é magia, apregoada pelo ilusionista. Bah, mas isso é o que eu venho dizendo aqui desde que José Seguro foi atirado borda-fora da carroça do poder.

         - Quem chega entre as oito e as nove da manhã às portagens da Ponte Vasco da Gama em direcção a Lisboa, experimenta um arrepio de pavor ante a velocidade, o salve-se quem puder, dos carros malucos rabiando de todos os lados a ver quem chega primeiro às três vias do tabuleiro de rodagem!
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Quinta, 13.
É uma graça o léxico do presidente do Teatro Nacional São João ao Público de 7 deste mês. Uma tontearia robertiana (já agora, não é?) de linguagem que é comum àqueles que se querem passar por eruditos. Alguns exemplos: “O TNSJ tem de confundir as categorias do careta e do prafrentex,”  “O São João, após a extemporânea extinção da Culturporto, teve de ser pai e mãe,” “Timing cabe à SEC”,  “Esta administração não é um one man show”, “Aqui já estou no território do wishful thinking”, “A minha gramática é ricardopaisiana – assumo-o desassombradamente.” Será?

         - O furacão Florence que deverá chegar nas próximas horas à costa leste dos Estados Unidos, traz consigo, segundo os cientistas, a maior carga de água de que há memória para além dos ventos ciclópicos. Milhares de pessoas estão em fuga, mas muitos habitantes da zona recusam obedecer às ordens de Trump e, calafetando portas e janelas, estão dispostos a enfrentar o monstro. É assustador ver a fragilidade de uma grande e poderosa nação face à natureza que nenhuma ciência consegue controlar.

         - Por mim, no que diz respeito ao Inverno, já tenho o suficiente de lenha protegida debaixo do telheiro. Foram semanas a carregar para lá uma parte das toneladas do corte dos cedros no final do ano passado. Estou derreado. Resta a pintura da piscina que conto começar segunda-feira. A seguir entrego-me ao dolce far niente. Forma de falar. Em verdade tenho projectado a conclusão de O Juiz Apostolatos antes de deixar o meu país, assim como a leitura de dois livros.
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Sábado, 15.
Tirei ao caso da prateleira o XIV volume do Diário de Julien Green, L´Expatrié. Sentado no andar de cima, junto à pequena janela ladeada pelos desenhos do Osório, vou lendo uma passagem aqui outra mais adiante. A dada altura deparo (p. 517, Ed. Gallimard), com o pequeno homem com fama de grandes feitos, Winston Churchill. Uma mulher furiosa diz-lhe: “Si j´étais votre femme, je metrais de l´arsenic dans votre café. – Madame, responde Churchill, si j´étais votre mari, je le boirais.” Do puro humor britânico.

         - Esta manhã no salão nobre da Câmara Municipal de Setúbal para a cerimónia da entrega da Medalha de Honra da Cidade ao Virgílio Domingues. Do nosso vasto grupo só eu e o Alexandre. Inexplicavelmente. E mesmo assim soube en passant quando ontem ao almoço no Sinal Verde, Guilherme nos anunciou ao João e a mim a cessão. Virgílio comovido, frágil, satisfeito subiu ao pódio para receber das mãos da Presidente o reconhecimento que por mérito lhe pertence, ele que doou uma parte da sua imensa obra à cidade e está exposta no museu com o seu nome. Pela minha parte, aguentei firme duas horas e meia de pé, ouvindo discursos, agradecimentos de mais de meia centena de agraciados, desde o Herman José à funcionária da limpeza.

         - Como eu aqui previ o ano passado, as irregularidades, os desvios e outros quiproquós, mancharam as edilidades onde o fogo andou doido a matar e a destruir o que encontrou pelo caminho. Tudo indica que houve desvio de verbas para construção de casas que não tinham sido afectadas pelos fogos, assim como de moradas de súbito transferidas para a zona queimada e assim. Muito dinheiro transviado e na corda bamba está o Presidente da Câmara de Pedrógão Grande. O homem parece-me honesto, embora presumo um pouco laxista à maneira dos seus confrades de muitas outras autarquias e juntas de freguesias. Estamos todos à espera do resultado das movimentações no local da Polícia Judiciária.

         - O calor voltou a instalar-se. Ontem em Lisboa e hoje aqui 36 graus.
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Domingo, 16.
Sexta-feira o nosso almoço terminou no atelier do Guilherme que possui dois andares no palácio que inspirou Eça de Queirós. Ficámos à cavaqueira pelo adiantado da tarde quente, misturando anedotas com pintura, política com literatura. Diante de mim, tive uma tela gigantesca com uns dez metros de comprimento e três de altura, A Nau Catrineta. Almeida Garrett haveria de gostar ver o seu poema ilustrado com aquela maestria. Com um senão para mim - a onda que está em primeiro plano. Devia, talvez ser melhor trabalhada e a chegada a terra mais onírica.

         - Há tanto trabalho urgente por todo o lado a somar a cada vez menos horas consagradas ao livro e todo ele devido à aproximação do Outono! Vou ter que ir menos a Lisboa, aos nossos almoços que duram quase toda a tarde e me fazem perder o dia inteiro. É que outro dia, acabado de chegar ao portão vindo de Caldas da Rainha, tinha à minha espera o meu vizinho e logo o olhar se me abriu de espanto ante as centenas de eucaliptos mortos no chão. Um homem com uma máquina diabólica havia desenterrado as raízes na forma de bomba atómica com que vivi nos últimos nove anos e passei a ter, enfim, a certeza que o campo havia sido desminado. “Então, está satisfeito?”, perguntou ele com um sorriso maroto. Para de pronto me pedir autorização para cortar uma parte dos pinheiros que estão junto ao caminho e impedem os carros que vêm de Espanha com rações para os animais passar. Disse-lhe: “dou se arredondar as árvores que devido às vezes que o senhor as desequilibrou ameaçam cair”. E assim, de uma assentada, realizei dois trabalhos que me preocupavam há anos: este e o abate do cedro solitário que o bombeiro deixou para trás e me pedia 300 euros mais para o cortar. Ainda por cima (no caso do solitário bombeiral), sem despender dinheiro que prejudique o meu orçamento. Contudo, antes das chuvas, vou ter que recolher tanta lenha dispersa para um monte, de forma a cobri-la porque debaixo do telheiro já não cabe uma pinha. 

         - Há instantes, pela ARTE, momentos de comunhão com o divino que atravessa as sinfonias de Beethoven. A Sinfonia nº 5, dirigida por Murray Perahia que também esteve ao piano com a Academia Saint in the Fields. Beethoven que influenciou tantos dos melhores que se lhe seguiram Gluck, entre outros.
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Segunda, 17.
A maré dos tufões com nomes pouco agressivos, não pára de chegar às costas dos EUA e da China, crescendo no Atlântico e no Pacífico. Só o supertufão Mangkhut deixou um caos nunca visto, levantando prédios, deslizamentos de terras, acompanhado de ventos de 160/km/hora e, até agora, 16 mortos. 105 mil pessoas estão em abrigos improvisados. Já o Florence, fez deslocar de suas casas, 22.600 pessoas na Carolina do Norte e 7.000 na Carolina do Sul. Quase um milhão de casas estão privadas de electricidade, os seus habitantes condenados a permanecer nas suas residências por vários dias devido à subida do nível das águas. Enquanto a morte e o desassossego passeia a espiral de horrores, o resto da população prossegue somando ganhos nas bolsas, os políticos apregoando o peixe das próximas eleições, milhares de seres atravessam os mares transformados em cemitérios para muitos companheiros de infortúnio.

         - Fui ler Mateus (9 e 10) recomendado por Bento Domingues no Público de ontem. Como uma premonição de que o NT é fértil, encontrei a voz aberta do Evangelista de que o clero dos nossos dias desconhece ou finge desconhecer. Diz o articulista a dada altura, referindo-se aos ataques de bispos e padres contra Francisco: “Os padres e os bispos não mandam na Igreja, servem a igreja.” Na mesma linha diz a democracia: os políticos estão ao servido do povo e não este ao seu serviço.

         - Com a cabeça em desalinho, medi a tensão: 10,2 - 6,0.

         - Às primeiras horas da manhã, antes da sessão no Juiz Apostolatos no Café da Casa, comecei a pintar a piscina. In petto conclui que não devia seguir as recomendações do Fortuna. Se tivesse afagado o chão e paredes com uma aguadilha de cimento, seria o ideal. Como me considero uma nulidade em tantos domínios, confio sempre nos outros que acho sabem mais do que eu.
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Terça, 18.
Fait divers divertido. Sábado, depois da recepção na Câmara de Setúbal, encontrei numa esplanada um dos técnicos das festas, dito produtor de espectáculos. Era um rapaz compenetrado, de serviço constante ao smartphone, muito aperaltado de escuro como é o albernó deste tipo de pessoas. Iniciada a conversa a propósito do declínio físico de um ilustre homem de letras presente no Salão Nobre, por sinal alguém por quem não tenho grandes simpatias conhecendo-lhe a história pública e privada, logo o diálogo disparou, inopinado, num rom-rom espécie de harcèlement curioso. A coisa foi ao ponto de marcação de hora, eu tolhido a mon age de ternura por ele e por mim próprio, mas duas horas da manhã  não é propriamente agendamento que se faça. O facto, é que sou cada vez mais sensível ao rom-rom e perco-me na carícia das palavras. “Não sabe o que perde!”, ouvi em jeito de despedida. E eu: “Olha, perde-se com este cliente, ganha-se com aqueloutro, como no mercado a retalho.” Explosão de riso. O diabo bem tenta, “mas o céu não lhe responde ou responde que não”. Oh, querido Régio!
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Quarta, 19.
Mais um abandona o barco do arrogante e convencido banqueiro, perdão, Chefe de Estado francês, senhor Chou Chou. Desta vez, é o seu fiel Ministro do Interior, Gérard Collomb, o mesmo que chorou, comovido, quando da investidura do seu Presidente.

         - Estou todo partido. Como detesto trabalho mal feito, sendo do signo de virgem, exijo para mim e para os outros, a perfeição. Vai daí comecei tudo de novo no tocante à piscina. Comprei um cimento especial e andei desde as sete da matina quando nasceu o dia, a tapar os buracos e as imperfeições no chão e paredes. A lição aprendia-a na internet. Só daqui a 48 horas posso ver o que resultou de um trabalho que nunca havia feito na vida. Mas, Helder, estás sempre a tempo de acrescentar conhecimento ao teu saber. Se tudo resultar bem, podes mudar de profissão e em vez de passares o dia a escrevinhar, põe uma tabuleta ao portão com estes dizeres: “Pedreiro especializado em tapar buracos. 100 euros/hora.”

         - O Juiz Apostolatos aproxima-se do fim. Noto como - verifiquei no João Tordo e noutros escritores - ao tocar o limite da história, há como que uma irradiação de maestria que toma conta das páginas. Tordo nos dois últimos capítulos é sublime, regressa ao autor que eu adoro, e até as gralhas e perissologias, são quase nulas. Eu, pelo meu lado, tenho de estar mais do que nunca de atalaia. A narrativa foge-me das mãos, não tenho rédeas nas personagens, tudo se precipita para o fim deixando-me um vazio que começo já a sentir, pese embora o imenso labor nas duas ou três sucessivas correções que sou obrigado a fazer. Mas o principal está feito. Falo da criação, da psicose e delírio que me toma por inteiro quando estou ocupado em tornar realidade uma fantasia. Ovídio diz: “Ulisses descrev(e) os (feitos), que fez sem testemunhas, dos quais só a noite é sabedora.” (Livro XIII, 10-15) Por outras palavras, Ulisses é uma fantasia.

         - Mário (advogado), grande apaixonado pelo mar e os barcos que o sulcam, está nesta altura na Noruega de onde me enviou este sms: “Caro amigo, estou na Noruega, num porto de abrigo, à espera que o mar do Norte acalme para iniciarmos a travessia para Inglaterra e depois para a Corunha.” São viagens que ele paga do seu bolso, aviões para lá e para cá, alimentação, alojamento e assim, pedido ao dono da embarcação para que o receba entre a tripulação, tudo pela paixão dos mares. O texto deixou-me a sonhar. Imagino-o a olhar a tempestade, as noites de ventania, o sono profundo nos oceanos de silêncio, a camaradagem dentro do barco, o olhar perdido no horizonte, o lençol de estrelas projectadas nas noites e de dia brilhando em cintilações quando o sol os faz movimentar, o uísque tomado à proa quando todo o pessoal dorme já, ele e as vagas, ele e o céu sem fim, ele e os seus pensamentos, as imagens da mulher e do filho a rodarem no seu cérebro, aquele cais e todos os outros – sítios onde a terra começa e o mar se expande em múrmuros e mistérios até ao derradeiro porto onde acabamos todos por chegar um dia...   
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Quinta, 20.
Esta tarde na Fnac do Chiado, deparo com um senhor de cabelos brancos, ar distinto, a dizer para aquela que mais tarde vim a saber ser sua neta: “Não sei se compre este livro!” O livro era a obra de Daniel Mendelsohn Uma Odisseia, recentemente editada pela Elsinore, uma ainda pequena editora com qualidade editorial muito acima da média. “Não só deve comprá-lo, como lê-lo porque é um  trabalho muito sério e bem pensado.” Resumi o seu conteúdo e depois ficámos à conversa por mais de um quatro de hora. Ele contou a história das pessoas da sua geração, a mesma que ouço por todo o lado a mulheres e homens com mais de sessenta anos. Vivia no Largo do Carmo, num edifício pombalino, vasto e cheio de memórias e ali queria morrer, ele a mulher, ambos com maleitas da senectude. Os filhos detestam o apartamento e insistem com os pais para o vender ou alugar que eles não estão interessados em ali morar. “Mas, dizia-me ele, nós queremos morrer ali e não faz ideia a quantidade de pessoas e empresas que vêm bater-nos à porta interessadas em o comprar. Chegam a dizer: Peça o que quiser que nós damos. Isto quase todos os dias.” Todavia, o problema maior do meu interlocutor, era os 20 mil livros que possui e que também nenhum dos filhos quer, não obstante os pais terem feito o que puderam para que eles fossem grandes leitores. “De todos, esta minha neta, é a única que gosta de livros.” A miúda sorriu e perguntou ao avô se lhe podia comprar os três volumes de bolso que trazia nas mãos. “Claro e também este que este senhor me aconselha a ler”, acrescentou juntando a obra de Mendelsohn. Voltando-se para mim: “Vê porque é que eu hesito em adquiri mais livros. Adoro ler, mas que vou eu fazer da minha biblioteca que conta com uns milhares do meu sogro que foi um neurologista reputado.” “Continue a ler, a comprar o que lhe apeteça, não pense no que se segue depois da sua morte. Goze à maneira dos Estoicos o dia, seja feliz como lhe aprouver. E já agora não pense deixá-la a nenhuma universidade ou biblioteca pública. Em Portugal não há interesse, nem sensibilidade, nem gosto pela cultura”, disse do fundo dos meus ímpetos de revolta. “Mas o que vai ser desta geração sem interesse pelo saber, a cultura, a história! – Nada. Absolutamente nada, retorqui. Não se incomode com isso. Uma nova civilização já se prepara, eles vão ser obrigados a adaptar-se a ela. Talvez essa civilização não tenha precisão do passado para seguir em frente.” “Não me diga isso! Sem conhecermos o que os nossos antepassados pensaram e fizeram, não percebemos quem somos. – Diga-me uma coisa: é preciso queimar as pestanas, frequentar o liceu ou a escola primária para saber de futebol? Aí tem o futuro: o instante nasce e morre a todas as horas, vai ser tudo transitório, vive-se o momento.” Calou-se, a olhar-me do fundo não sei de que espécie de inquietação e depois despediu-se: “Obrigado. Gostei muito de falar consigo. Continue com essa força.”
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Sexta, 21.
Como vai o país do Mágico? Muito bem, julgo. Em protesto estão os clássicos enfermeiros, os professores, os estivadores e a dívida pública não pára de subir, mas isso que importa, o último que feche a luz e encoste a porta... devagarinho.

         - O cérebro é uma máquina incrível. Ainda não terminei O Juiz Apostolatos e tenho a tarefa técnica da revisão, ajuste e limpeza do texto, já vou montando mentalmente a história de O Matricida. Tenho a ideia geral, mas falta-me tudo o resto. O tema está cá, tudo em volta é um deserto por habitar. Como antevejo um trabalho de uma extrema complexidade, talvez ao exemplo de O Pesadelo dos Dias Felizes, inquieto-me já pelos próximos dois anos. Vou residir no fundo de um abismo a vasculhar o interior de uma alma condenada à fantasia da construção cara à sociedade - a família. “Aquele que ama pai ou mãe mais do que a mim, não é digno de mim.” (Mt. 10-37)

         - Pascal diz que Deus está em todo o lado mesmo nas frinchas das casas. Eu peço-Lhe ao acordar a Sua bênção e sigo pelo dia fora com a sensação que Ele está comigo mesmo nos ínfimos intervalos da respiração coordenados com as batidas do coração.  Si Dieu le veut antecede cada acção, cada pensamento, cada tristeza e cada alegria, cada palpitação de silêncio e cada momento de voluptas in tranquilittate.
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Sábado, 22.
Cheira-me que a esta hora José Sócrates e todos os seus capangas, já abriram a garrafa de vinho de champanhe que tinham de reserva no frigorífico. Os camaradas encarregaram-se de lhes aliviar as culpas com a não recandidatura de Joana Marques Vidal. Tudo o que constato é que este país com a sua democracia, não foi feito para gente honesta.

         - O director do Museu de Serralves demitiu-se na sequência da atitude da administração da Fundação ter impedido a menores de 18 anos as fotografias de Robert Mapplethorpe e ter obrigado a retirar da exposição uma parte que mostra sexo explícito. Eu conheço a obra do fotógrafo americano e sei que na origem da censura à moda fascista, estão as fotografias dos corpos masculinos, a maioria de negros, que são de uma beleza estética impressionante. Não admira que os falsos moralistas se sintam chocados, foram educados à moda de Salazar que tudo consentia desde que não se soubesse publicamente. Quem disse que vivemos em democracia?
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Domingo, 23.
Durante a parada militar da Semana da Sagrada Defesa, que o Irão celebra todos os anos tendo a vitória sobre o Iraque em mente, um grupo de homens envergando a farda militar e integrado no desfile, de repente, começou a atirar a tudo o que viam na frente. Balanço: 29 mortes, várias dezenas de feridos. O ayatollah Ali khamenei, líder supremo iraniano, apontou o dedo aos Estados Unidos. Mas o atentado foi reivindicado pelo Daesh e pelo movimento árabe de oposição ao regime. O chefe do país prometeu vingança análoga.

         - O Público traz uma homenagem ao fotógrafo Alfredo Cunha. No meio do caderno, são vistas várias fotos de individualidades nacionais e, entre elas, uma do meu companheiro Roby Amorim como eu o conheci quando me iniciei no jornalismo. Que saudades! Que saudades de um tempo que começava, de um prólogo agitado, rebelde, que ele tentou trazer à realidade com avisos ternos que me serviram de emenda para o resto dos meus dias.

         - Fez-se história com o acordo que o Vaticano celebrou com a China. O trabalho de Francisco é notório e, a partir de agora, o Papa é reconhecido como chefe da Igreja Católica na China.  

          - As taxistas ocupam as principais artérias de Lisboa e Porto há quatro noites e cinco dias. Comem e dormem dentro dos carros, numa atitude corajosa para se igualarem aos tipos da UBER ou o contrário que, entretanto, duplicaram os preços aproveitando a paralisação dos que antes deles já cá trabalhavam. O Governo como eles não fazem cenas, não entopem o trânsito, estão numa de pacíficos, deixa andar a ver se desistem. O Ministro do Interior que em boa verdade é o ministro do interior do Partido Socialista, um homem ao serviço partidário, que nunca esteve ao serviço dos cidadãos, arruaça força contra os fracos e complacência com os fortes.
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Segunda, 24.
O pequenote, com ideias pequenotes, manipulando completamente a informação, analista como é, em vez de invocar as razões dos motoristas de táxi, afirmou que eles o que deviam era pedir ao Estado ajudas técnicas e financeiras para aprenderem a lidar com os novos sistemas informáticos como fazem os seus concorrentes americanos; quando o que devia dizer era que as condições são desleais e indignas de um país democrático. Os taxistas portugueses são os parentes pobres do sistema. Eu não estou contra a UBER e outras organizações, o que acho é que para haver concorrência leal e proveitosa para os utilizadores, têm de partir todos da mesma meta.

         - O calor está de regresso e os fogos também muito embora o Outono tivesse entrado ontem. A Annie que me telefonou, diz-me que em Paris estão 27 graus. Aqui 37 e sem brisa que suavize. Todas as manhãs, pelas sete, estou a pintar a piscina depois de ter terminado os arranjos com cimento. Concluí as paredes, amanhã iniciarei o chão, esperando que S. Pedro não despeje nenhum balde de água cá para baixo. Preciso de bom tempo até domingo. Com um pouco de sorte, ainda mergulharei este ano. De qualquer modo, atendendo ao que me disse o filho do João Corregedor que é arquitecto, devo encher a piscina para que a pressão da água equilibre o conjunto.

         - A par disto, tenho a regas diárias. Ontem, regando do lado do jardim, fui atacado por um enxame de vespas. Eram tantas ou tão poucas, que me tomaram por alvo e picaram-me na cabeça, nas pernas (estava em calções), no pescoço. Em vez de fugir, sacudia-as com as mãos molhadas, numa aflição desenfreada. Acudiu-me o Fenistil apesar dos seus 3 anos fora de prazo.
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Terça, 25.
Retiraram a canga de “maior jogador do mundo” ao nosso querido Cristiano. Todos nós portugueses devíamos estar revoltados porque, em boa verdade, é a Portugal que descem do pedestal. Coitado do homem, coitadinhos de nós. Esta época não lhe está a correr nada bem e até foi penalizado num jogo com suspensão. Na sequência do opróbrio desfez-se em lágrimas como um bebé mimado. Pois, meu caro amigo, quero reconfortá-lo, sim eu que detesto a sarna do futebol. Há uma coisa que ninguém lhe rouba: a categoria de Comendador. Faça você o que fizer, essa atribuição dada com todos os cestos de afectos que o nosso Presidente carrega às costas, pertence-lhe para o resto dos seus dias que eu desejo sejam mais que muitos. Quanto ao estar em boa companhia, não posso garantir-lhe. Tem, naturalmente, a dos seus camaradas vencedores do Euro, os outros, políticos e empresários de sucesso, siga o meu conselho: não prive muito com eles, são piores que a sarna que lhe granjeou a riqueza. Para além de corruptos e ladrões, ainda lhe podem extorquir a fortuna que acumulou. Vá por mim, senhor Comendador.  
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Quarta, 26.
Nos confrontos ocorridos em Trípoli, resultaram 115 mortos e quase quatro centenas de feridos. Facções rivais que dividem entre si o território que Kadafi mantinha unido, ilustram a desastrosa intervenção da França e dos Estados Unidos no derrube do líder árabe. Aquilo é um inferno, mas nem Obama nem Sarkosy estão lá para sofrerem o que padece o povo. A esta tragédia, juntou-se os migrantes que são mortos como cães vadios e os que sobrevivem preferem morrer. 

         - Tant bien que mal terminei esta manhã a pintura da piscina. Não é a perfeição que gostaria. Aqui e ali vou ter que retocar, sobretudo nos sítios em que ainda fui acreditando que o Fortuna tinha razão. O mestre Sebastião acha que artesanal é tudo que é feito à mão e com deformações que acrescentem valor à obra. Eu sempre lhe combati essa ideia. Perdi.  

         - Falam contra a governação de Trump, a de Costa não é melhor. As trapalhadas à Trump são tantas, que é nele, acho, que os líderes socialistas aprenderam a fórmula. Que o diga a comédia das armas desaparecidas de Tancos (a Judiciária ou lá quem foi, deu-lhe o nome de código Húbris, que cultos que nós andamos!), a transferência do Infarmed para o Porto, a questão do hospital pediátrico do S. João e por aí fora. Nada é pensado, tudo é feito com o patuá de feira, a palavra dada NÃO é honrada. Ó Costa, por amor da santa! Pergunto-me, o que seria do primeiro-ministro sem o actual Chefe de Estado.

         - Esta frase de Stendhal: “La solitude aporte tout, sauf le caractère.”
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Quinta, 27.
Dou-me conta que cada vez mais aprecio o convívio com gente dita idosa. Sobretudo com aquelas e aqueles com quem convivi ao longo dos anos e envelheceram comigo, eu a vê-los disfarçar os achaques e depois a assumi-los por inevitáveis; eles a olharem-me como cúmplice de uma vida de pura e nobre coxearia. Não quero com isto dizer que não goste de acamaradar com gente nova, só que com esta dou preferência a que habita nas poucas ilhas existentes no deserto da vulgaridade e zumbisse que hoje inflama de orgulho a sociedade portuguesa.  Como os temas caros aos novos-ricos são o futebol, o dinheiro e o sexo e eu disso ou nada sei, ou não me avassalo ou me esqueci, ufa!, empanco diante de gente incaracterística que nada tem a ver comigo. Porque na realidade o fosso geracional nunca foi tão nítido. Não deifico a juventude para não parecer velho, mas porque no meu íntimo não vejo novos e antigos, mas seres humanos. O que veio com o 25 de Abril foi festa para os que o viveram e o mereceram, e esbanjamento de muita ordem para os que nasceram depois. Neste desajuste mora a divisão desastrosa, o sentimento de que a liberdade é um bem eterno, que a vida deve ser gozada pela juventude e desprezada pela senectude. Há um hiato incomensurável, um voltar de costas não ao ser humano por quem os anos ainda não passaram, mas ao desprezo que ele tem pelos valores da cultura, do saber, da solidariedade, do cuidado com o outro, da abrangência de um conjunto de valores sem os quais os mais velhos não podem viver. Disto falámos, a Gi e eu, pela manhã fora. Entre muita gargalhada, um espírito de cumplicidade, um amor a histórias, vividas e inventadas, de que a memória se nutri não porque sejamos anciãos ou a entrar na derradeira etapa, mas porque a amizade vai lá a trás buscar o que vivemos juntos e constitui hoje as páginas fabulosas de um ensaio sem remate.

         - Por volta das sete da tarde, há dois dias, instala-se na entrada da casa, no sítio onde eu queria abrir uma caixa onde coubesse as minhas cinzas, e dos amigos que desejassem juntar-se na eternidade, e os pedreiros fugiram deixando os trabalhos a meio espavoridos com “o louco” que tão bizarra ideia tinha, um ruído contínuo, espécie de viatura a trabalhar, água a correr, botija de gás a verter... Vou lá fora, inspeciono o hall, subo aos quartos pensando ser o rádio ligado, olho em volta da quinta a observar se há algum trabalho em marcha, abano as botijas de gás que estão do lado de fora perto do local, e nada, absolutamente nada vejo. Mas aquele zunzum está lá, lá permanece até pelas onze e meia quando subo para dormir. Gosto de mistérios e daí que este possa ser mais um dos que tenho um dia de decifrar...

         - A Françoise Sagan conta no seu livro de memórias em crónicas, que nos derradeiros anos de vida de Jean-Paul Sartre ela ia buscar com frequência o escritor a sua casa para jantar ou almoçar. O filósofo estava completamente cego e era amparado a ela que retomava um pouco do fôlego de outrora. Desabafa o fabuloso escritor que marcou moral e civicamente uma época: “Vous savez, quando il m´est arrivé cette cécité et que j´ai compris que je ne pourrais plus écrire (j´écrivais alors dix heures par jour depuis cinquante ans, et c´étaient les meulleurs moments de ma vie), quand j´ai compris que c´était fini pour moi, j´ai été três frappé et j´ai même pensé à me tuer.” Silêncio respeitoso da parte dela. Sartre pressentindo o que ia na cabeça da escritora, conclui: “Et puis je n´ai même pas essayé. Voyez-vous, j´ai toute ma vie été heureux, j´ai été, j´étais jusque-là un homme, un personnage tellement fait pour le bonheur; je n´allais pas changer de rôle tout à coup. J´ai continué à être heureux par habitude.” Poche, pag. 463. Que magistral lição! Eu conheço através da Beauvoir o resto, mas isso fica para outra altura, se ficar. Seja como for, Sartre foi um homem excepcional, um pensador brilhante, um filósofo denso e contínuo, um companheiro de vida. Li muito do que escreveu e deitando um olhar à estante vejo pelo menos quinze títulos lidos e sublinhados, pensados e repensados. Ele é um dos meus pilares, como Simone de Beauvoir, Julien Green, Ernst Junger, Klaus Mann, Bertrand Russell e poucos mais.
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Domingo, 30.
“Quando certa apologética infantil, ignorante e perversa falava da história admirável da Igreja, como uma procissão de heróis, santos, mártires, doutores e místicos, ilustrada nas pinturas e esculturas das igrejas e capelas, faltava lá o reverso da medalha: a lista das vitimas dos inquisidores, dos criminosos e perversos em nome da santa vontade de Deus.” Frei Bento Domingues, Público de hoje. 

         - Eu louvo a força e tenacidade de Theresa May. Sabia-se que o primeiro a deixar o barco eurocrata seria sovado até dizer chega. É o que tem acontecido com o reino Unido. Os arrogantes dirigentes de Bruxelas, têm humilhado a senhora e o povo britânico que ousou dizer NÂO ao paraíso da União Europeia. Mas o mais surpreendente e que eleva a Democracia ao cume grego que a praticou com honra, é o facto de o Brexit não ter retorno. Muitos têm sido os que o pretendem repetir, mas o Governo de sua Majestade recusa com denodo. E tem razão. Um recente inquérito à população veio dizer que a sociedade inglesa está absolutamente dividida: fifty fifty.

         - Um grande sismo de 7,5 na escala de Ritcher abalou ontem Palu, Indonésia, seguido de tsunami. Milhares de mortos, incontável o número de feridos. Uma vasta zona ficou destruída, casas, carros, restaurante, lojas arrastados na enxurrada. 16.800 pessoas foram obrigadas a abandonar as suas casas. As imagens televisivas são tenebrosas.

         - Sereno e agradável almoço no Alentejano, sexta-feira, a sós com o João Corregedor. A conversa não se limitou apenas à política, tendo abraçado outros temas mais ligeiros e nem por isso menos interessantes. Por apelo do Guilherme Parente, passámos no seu atelier onde encontrámos o Alexandre, o Irmão e o Eduardo Nascimento da galeria Artur Bual. Carlos já tocado decerto durante o almoço no Príncipe onde eu me recuso a ir para não assistir a cenas tristes, a voz alterada, o rosto rubro, as gargalhadas sonoras, e despejando uísque como quem bebe água fresca. Para evitar os cenários que se complicam, pouco tempo fiquei. Ao cabo de trinta minutos e não obstante a insistência dos presentes para que ficasse, parti.

         - Estou absolutamente de acordo com o João quando diz que não seria aceitável que o juiz Carlos Alexandre julgasse José Sócrates e os seus coadjuvantes no processo Marquês. Do sorteio, realizado com as câmaras da SIC a fiscalizar, saiu ao juiz Ivo Rosa      a tarefa de ler uma tonelada de papel do trabalho do formidável juiz que o instruiu por conta do Ministério Público. Os advogados e mais intervenientes, esfregaram as mãos de contentamento. Depois do afastamento de Joana Marques Vidal eles confiam que vão evitar o julgamento dos gatunos que, de resto, ante a opinião geral já foram condenados. A sentença não acrescenta nada à convicção popular. Ela sabe que das mãos de certos advogados os maiores ladrões viram bebés inocentes e cândidos.


         - Outro dia, entrei numa grande superfície para comprar um artigo que precisava. O empregado que me atendeu, levou-me por um longo corredor ladeado de prateleiras, depois contornou à direita sempre dizendo: “por aqui, meu senhor”. Quando parámos diante do produto ele disse: “Aqui tem o que procura, meu senhor.” Eu agradeci com um sorriso indisfarçável. De facto, aquela deferência prefiro-a eu àquela outra “senhor doutor”, não só porque é mais bonita e nobre, ainda porque me dignifica sem precisão de qualquer estatuto verdadeiro ou quase sempre falso.