Quarta, 30.
Portugal é uma anedota. Pobre, iletrado,
humilde, subserviente, ingénuo, sem espírito crítico, indo aonde vai o
colectivo, rende-se a quem lhe surge ao caminho montado na impostura e na
grandeza. O futebol é um maná porque o português não questiona aquilo que vive
com paixão e porque o futebol não exige esforço mental e cada português
julga-se um técnico na matéria. Vem isto a propósito dos contratos milionários
entre os três principais clubes e as empresas de telecomunicações. No espaço de
uma semana, circulam por aí qualquer coisa como 1.350 milhões de euros! De onde
vem tanto dinheiro assim de repente para entregar ao futebol onde a corrupção e
os oportunistas imperam? Ninguém quer saber. Aquilo é um outro planeta, com
leis próprias e escravos de luxo às ordens. Numa altura em que até a Arábia
Saudita impõe austeridade, entre nós é a fanfarra, a festa, a disputa entre
gangsters pelo melhor e mais valioso negócio. Invejamos tudo do vizinho, menos
a miséria.
- À pergunta, contudo, respondo eu. O dinheiro vem do abuso das empresas
de comunicações que cobram aos pobres mais do que as suas congéneres europeias
levam aos ricos. O Robert diz-me quanto paga por um pacote abrangente de
comunicações e não tem nada a ver com o que eu ouço dizer obtêm aqui. Mais:
segundo ele um acordo é um acordo e ninguém se atreve a mudá-lo com preços de
novo ano. O mesmo se passa com o escândalo das televisões. Por cá é uma selva.
As Meo, as Vodafones e as Nós fazem autênticos assaltos à carteira do
espectador. Ganham fortunas por infantilidades e ainda por cima sem coberturas
capazes. Enganam todo o mundo e ninguém discute e o Estado finge ignorar a
aldrabice. Preparem-se os adeptos do futebol para o que aí vem. Vão pagar com
língua de fora o seu gosto por uma modalidade que é um verdadeiro atentado à
sua pobreza e dignidade.
- Bem faço eu. Não possuo senão os canais ditos generalistas e o satélite
que a Meo tornou obsoleto. E digo-vos com toda a franqueza, não sinto precisão
de mais. Quando vejo a imbecilidade de programas, as apresentadoras e
apresentadores, a praga do futebol e dos seus agentes que mal soletram uma
letra, os comentadores e analistas que debitam asneiras e banalidades de todos
conhecidas, os actores chamados cómicos, mas que não me fazem rir, os
noticiários verdadeiros atentados à inteligência, sinto que estou no bom
caminho. Não totalmente, porém. Melhor estão a Conceição, o João, o Simão, o
Ricardo e tantos outros que pura e simplesmente se recusam a ter em casa a
caixa que dizem mudou o mundo... para pior. Eles são mais sábios do que eu,
estão mais resguardados das agressões psicológicas e publicitárias, políticas e
económicas. À parte o arcebispo que durante dez anos pregou e promoveu-se a si
e às ideias do seu partido e amigalhaços, não sei de quem mais tivesse tido
proveito directo. Sim. Claro. A classe dos ambiciosos políticos, que usam
primeiro a televisão para construir a dimensão do boneco que depois aproveitam,
transformando-o em primeiro-ministro, secretário de Estado, presidente da República
e personagens mais liliputianas.
- Mas a razia alienante agrupa em torno da televisão aquilo a que eles
chamam o gosto popular. Agora, cá como por essa Europa fora, as vedetas são os
chefes e a cozinha de autor. Toda a droga que entope artérias, leva ao corpo
gorduras e açúcares, causa carcinomas e desarranjos físicos, enriquece as
farmacêuticas, os supermercados, as multinacionais dos pratos confeccionados é
oferecida como bijutaria fina. Aquilo sabe a tudo menos aos vegetais, peixe e
carne que é suposto encontrarmos no prato. Ainda por cima, não podemos reclamar
das doses anãs e dos preços proibitivos que não saciam a fome. Comprámos uma
joia e não um prato de lentilhas.
- Os amigos apareceram. Um deles tem o fascínio da fotografia e anda
sempre por assim dizer a reboque da máquina fotográfica. Sendo a primeira vez
que cá vinha a casa, andou por aí encantado com tudo o que via. Depois, tomando-me
por modelo, fotografou-me em todas as divisões, incluindo a cozinha. Ensinou-me
que eu próprio podia fazer o meu auto-retracto e logo pensei em Green que tinha
esse hábito e deixou um álbum fotografias de si mesmo ao longo dos anos de que
é testemunho o Album Pléiade. Eu
fiquei-me por esta a ver se daqui a vinte primaveras encontro os traços deste
homem aparentemente paisible sentado à
sua mesa de trabalho.