Segunda, 28.
Ontem almocei no CI manhã cedo cheio de
gente. Curioso como sou, fui espreitar para ver o que fazia tanto pagode em
torno de expositores, bancas, prateleiras. Não encontrando razão para tanta
azáfama, dirigi-me a uma empregada que me informou tratar-se de um dia especial
com preços baixos, balbuciando o nome num inglês confidencial. Disse para
comigo: “o contrário da Bolsa. Lá quando os valores descem é o pânico, aqui é o
contentamento”. Um homem visivelmente atarantado repetia ao telefone: “Senhor
doutor, não encontro as calças.” Percebi que o “senhor doutor” da sua sala
confortável, dirigia aos gritos que todos nós escutávamos o pobre escravo. Este
cada vez mais aflito, andava de um lado para o outro, afastando cabides,
tirando e colocando o produto, em busca daquilo que o “senhor doutor”
necessitava. “O senhor doutor deseja que cor? – ligeiro silêncio. - Essa não
vejo. Não deve haver já!” Telecomandado, o infeliz afasta-se no sentido oposto e
de longe vejo pelo seu rosto contristado que as ordens prosseguem. A abastada
criatura quer aproveitar-se dos preços para pobres. Se economizar dez euros,
amanhã terá dez euros e um cêntimo. O custo da chamada corre por conta do
outro...
- Levantei-me passava das oito. Tendo acordado pelas sete, deixei-me
ficar, o quatro aquecido, a cama fofa, a ouvir o cântico da chuva tocada a
vento. Havia uma nota mais grave que permanecia em ondulações sobre a janela,
parecendo-me a mim uma gota de água pingando do exterior. Coisa da minha cabeça
rebelde. Em noites assim, desejava não ter esta saúde que me faz adormecer de
jacto, dormir a grande velocidade e acordar sete horas depois. Penso sempre que
chuva e o vento, trazem dos confins do mundo uma mensagem que eu sinto pacificadora
e capaz de me transmitir as histórias que embalam a felicidade e o murmúrio
interior. Porque a chuva e o vento, são elementos que nos suspendem, nos travam
à soleira da porta e, portanto, capazes de transformar os pensamentos em
partículas criadoras. Os sentimentos abandonam-se a si próprios assim que a sua
sinfonia começa a tecer na vidraça os primeiros acordes e os envolve e os recentra
para lá do espaço, num universo sem fim, sem matéria nem consubstanciação. Agora
que trabalho frente à janela com o horizonte rasgado diante, continuo a escutar
a combinação de notas que o vento (sem chuva) vai compondo com a vegetação
rasteira, as árvores lá longe, os fios de arame farpado que delimitam o espaço.
Toda esta orquestra, dirigida pelo extraordinário maestro que é o vento, executa
a mais sonora e bela sinfonia que só a Natureza pode escrever.
- A América está debaixo da violência de tremendos tornados e chuvas
diluvianas. Já morreu quase meia centena de pessoas e os prejuízos estão por
fazer. O mesmo no Reino Unido com uma parte do Norte submerso pela água que caiu
em poucos dias, tanta como a que cai num ano. Mais de três mil lares estão sem
electricidade, os próximos dias não vão ser melhores.
- Quando voltei da natação, encontrei a Piedade na cozinha a passar a
ferro. Não veio só. Trouxe consigo uma travessa de sonhos e uma caixa de figos
secos e da sua lavra. Nunca comi figos tão saborosos! É ela que os apanha das
suas figueiras e os seca por um processo artesanal que lhe acrescentam
qualidade. Assim como os sonhos. Tenho-os saboreado noutros natais, mas os
deste ano lembram-me os da minha infância. Há lá coisa mais valiosa à face da
terra que estes mimos inopinados!