Segunda,
25.
No
avião que me trouxe, sentou-se a meu lado um rapaz brasileiro que de pronto se
pôs a falar comigo. Contou-me que tinha ido a Lisboa para o casamento de uns
patrícios amigos. “Que vivem em Lisboa?” disse. Nada disso. O casal veio do
Brasil apenas para casar em Lisboa e com eles os convidados em número no avião.
Muitos deles ficaram em Portugal e este e mais uns quantos, aproveitaram para
conhecer Madrid. “Viva o luxo!” repliquei. Mas depois, no silêncio que não
revela os pensamentos e o escritor derrama na folha em branco, pensei como o
mundo é cada vez mais um espaço de desintegração do indivíduo. Para um par de pândegos
poder dar-se a esta loucura, num país dos mais desiguais, onde a pobreza impera
e as condições de dignidade de vida estão abaixo dos limites, coabita um mundo,
em folha dourada, que nem se apercebe que as suas fantasias são um atentado à
simples sobrevivência de milhões.
- Aqui como por todo o lado, o convite
é para que os cidadãos reconheçam com o seu voto a União Europeia. Pela minha
parte, podem esperar sentados. Não lhes perdoo não me terem perguntado se
queria entrar para semelhante rancho, como não esqueço que nem o simples
Tratado de Lisboa foi ratificado pelo voto popular, não obstante a promessa
daquele que enriqueceu com as esmolas do empresário de Leiria. Para não falar
nas sucessivas humilhações por que passámos e passamos, de joelhos em amém a
tudo o que os eurocratas nos impõem. Sigam sem mim – basta-me os malefícios de
toda a ordem que me atingem.
- Divertido e saboroso jantar num restaurante
agradável da Gran Vía. Laure animadíssima e Robert exibindo o prazer do nosso
encontro. Só Annie, devido à sua avançada idade e, sobretudo, aos problemas de
saúde, ficou no hotel a descansar. Mas admiro a sua coragem, o facto de não
querer baixar a bandeira da luta que é a substância básica da vida.
- Hoje pela manhã um táxi deixou-nos à
entrada do Prado. O museu assinala por todo o lado e de todas as maneiras o seu
aniversário. Algumas alterações desde que aqui estive pela última vez. O
encantamento é, contudo, sempre o mesmo. Por isso, percorremo-lo durante mais
de quatro horas, hipnotizados pelas suas riquezas, exaustos no final e prontos
a abancar no restaurante para um almoço calmo e divertido. Centenas e centenas
de visitantes de todas as idades e línguas. Começámos pelas salas Bruegel (o
velho) diante do esplendoroso quadro A
Festa de S. Martinho, composição fascinante elegendo o vinho e a sua
emoção. Depois o tríptico de Jerónimo Bosch O
Jardim das Delícias Terrenas, na linha daquele que está no Museu de Arte
Antiga, ou A Tentação de Santo António
ambos impressionantes pela temática e a imagética do artista. Mas as salas
consagrados a El Greco, cujas telas vi muito novo e nunca mais as esqueci, foram
demoradamente percorridas. Algumas assustam pela sua concepção, pelo seu clima
negro, pela realidade religiosa e, que digo eu, pela estética que concebe a cor
de um modo cru, sem mistura, rude de algum modo. E que dizer de Rogier van der
Weyden, do seu trabalho A Descida da Cruz,
mostrando os rostos constrangidos das mulheres que estão com Cristo no seu
calvário doloroso, a visão de um tempo onde a fé imperava, por vezes de uma
forma obsessiva que desvirtua a realidade mística para se transformar numa
sobreposição humana, longe dos valores que se transformam em factos do dia-a-dia
de um tempo onde Deus ocupava o centro da realidade artística. E Rafael,
Murillo, Velasquez, Zubaran, Botticelli... a arte religiosa em série que para o
final passamos o leve olhar cansado. Muito ficou por ver. A grandiosidade do
museu não se esgota em dois dias, nem em semanas.
- Os chineses na forma de gafanhotos,
passavam por nós a alta velocidade. Às vezes detinham-se a olhar um quadro e
formavam um novelo que não deixava ninguém aproximar-se. Numa sala, um grupo
estava diante de uma tela gigante de Goya. O guia, porém, explicava o conteúdo
do trabalho com um tablet erguido
acima da cabeça onde estava a tela fotografada. Ninguém olhava o original,
todos estavam fisgados na fotografia. Bizarro.
- Para o fim da tarde, longo passeio
pela Gran Vía. Se há avenida que espelha não só a cidade, mas também os
madrilenos, é esta rua. O ruído é imenso: pessoas, carros, movimento para cima
e para baixo, um desassossego que se prolonga pela noite dentro. As lojas
fecham tarde e os clientes acodem num fervilhar desesperado, entrando e saindo
como toupeiras endiabradas de tudo quanto é canto e brilha e encanta. Parece
que participamos numa festa, pois o sorriso está estampados nos rostos que se
cruzam connosco. O firmamento estrelado escondem-se por entre os prédios altos
e belos, enfeitados de estátuas em ferro e pedra, dando à avenida a impressão
de um museu a céu aberto, os milhões de estrelas que cintilam envergonhadas
ante as luzes terrenas que as desafiam. Na Gran Vía cabe Madrid inteira.