terça-feira, março 26, 2019

Terça, 26.
Não vamos dizer que o tempo se alonga já no dorso do Verão. Aqui em Madrid faz calor, mas um calor que afaga, convida à cavaqueira, à esplanada, ao convívio debaixo das árvores, ao doce remanso das tardes quedas algures no espaço da memória atulhada dos instantes felizes. Assim, ontem, quando deixámos o Prado estirámo-nos na relva em frente e dormimos uma pequena sesta sob as ramagens sacudidas por uma leve brisa. Talvez o sono não fosse o desfiladeiro para onde atirámos o cansaço, mas o simples facto de declararmos à tarde abafada que se acoitasse nas sombras da fadiga, foi suficiente para levantarmos o moral e saudarmos as horas que no céu azul se despediam levando consigo o dia maravilhoso que nos coube viver.

         - Devido ao estado da minha amiga, deslocamo-nos em permanência de táxi. Que nem é caro, sendo mais dispendioso o metro por exemplo. Quando comparado com o valor em Lisboa, fica quase por metade. Ontem demos um salto à Real Basílica de S. Francisco o Grande, atravessando a cidade de um ponto ao outro. No burburinho da tarde, o que mais surpreende é a azáfama que parece conter os indivíduos em permanente estado de alerta. Sabemos que os espanhóis estão vivos porque neles existe um realejo que os faz falar, cantar, agitar em permanência. Daí que a cidade seja uma murmuração que acaba por nos isolar no sentimento que o silêncio é o bem precioso que não dispensamos para o nosso equilíbrio. O ruído é, todavia, o elemento vital para o espanhol, como se a amargura, a alegria, a exaltação fossem tão indispensáveis ao seu viver como o sangue que lhes corre nas veias.


         - Particamente o dia todo enfiados no Museu Nacional Thyssen-Bornemisza. Antes porém, demorada visita à retrospectiva Balthus. Uma  beleza que nos trava o passo a cada sala. Somos atraídos por uma obra monumental, cuja originalidade se posso dizer, se destaca pelo ambiente que envolve cada cena a que somos convidados a participar. Balthus se fosse vivo seria marginalizado. Porque hoje impera o moralismo cínico, de conveniência, que faz um caso ser todos o casos, um pedófilo todos os pedófilos. Balthus tinha uma especial inclinação pelos corpos juvenis e pintou-os contra essa moralidade que quer impor as regas estabelecendo o princípio que o jovem ou a jovem não tem voz activa na matéria. Talvez sempre assim tenha sido. Se repararmos, por exemplo, nas estátuas masculinas com o sexo decepado quando da invasão francesa pelos invasores, percebemos onde reside e de que substância é feita a construção dos princípios moralizadores. Despega-se de cada tela um rumor sensual, uma espécie de murmúrio próprio dos amantes que, em completa liberdade, sabem provar o doce encanto do amor, a inocência de permeio como um aceno à liberdade, a uma conduta de prazer, antes de o pecado tolher os sentidos. O artista, era só não atraído pela beleza dos corpos antes dos estigmas do tempo, como pelas paisagens, os entardecer em Chassy onde viveu, e as telas retratam o encanto nostálgico dos vales sombrios, do ondeamento da vegetação varrida pela viagem do sol mergulhando nas noites profundas, nos horizontes inacessíveis.