Terça, 26.
Não
vamos dizer que o tempo se alonga já no dorso do Verão. Aqui em Madrid faz
calor, mas um calor que afaga, convida à cavaqueira, à esplanada, ao convívio
debaixo das árvores, ao doce remanso das tardes quedas algures no espaço da
memória atulhada dos instantes felizes. Assim, ontem, quando deixámos o Prado
estirámo-nos na relva em frente e dormimos uma pequena sesta sob as ramagens
sacudidas por uma leve brisa. Talvez o sono não fosse o desfiladeiro para onde
atirámos o cansaço, mas o simples facto de declararmos à tarde abafada que se acoitasse
nas sombras da fadiga, foi suficiente para levantarmos o moral e saudarmos as
horas que no céu azul se despediam levando consigo o dia maravilhoso que nos
coube viver.
- Devido ao estado da minha amiga,
deslocamo-nos em permanência de táxi. Que nem é caro, sendo mais dispendioso o
metro por exemplo. Quando comparado com o valor em Lisboa, fica quase por
metade. Ontem demos um salto à Real Basílica de S. Francisco o Grande,
atravessando a cidade de um ponto ao outro. No burburinho da tarde, o que mais
surpreende é a azáfama que parece conter os indivíduos em permanente estado de
alerta. Sabemos que os espanhóis estão vivos porque neles existe um realejo que
os faz falar, cantar, agitar em permanência. Daí que a cidade seja uma murmuração
que acaba por nos isolar no sentimento que o silêncio é o bem precioso que não
dispensamos para o nosso equilíbrio. O ruído é, todavia, o elemento vital para
o espanhol, como se a amargura, a alegria, a exaltação fossem tão indispensáveis
ao seu viver como o sangue que lhes corre nas veias.
- Particamente o dia todo enfiados no
Museu Nacional Thyssen-Bornemisza. Antes porém, demorada visita à retrospectiva
Balthus. Uma beleza que nos trava o
passo a cada sala. Somos atraídos por uma obra monumental, cuja originalidade
se posso dizer, se destaca pelo ambiente que envolve cada cena a que somos
convidados a participar. Balthus se fosse vivo seria marginalizado. Porque hoje
impera o moralismo cínico, de conveniência, que faz um caso ser todos o casos,
um pedófilo todos os pedófilos. Balthus tinha uma especial inclinação pelos
corpos juvenis e pintou-os contra essa moralidade que quer impor as regas
estabelecendo o princípio que o jovem ou a jovem não tem voz activa na matéria.
Talvez sempre assim tenha sido. Se repararmos, por exemplo, nas estátuas masculinas
com o sexo decepado quando da invasão francesa pelos invasores, percebemos onde
reside e de que substância é feita a construção dos princípios moralizadores.
Despega-se de cada tela um rumor sensual, uma espécie de murmúrio próprio dos
amantes que, em completa liberdade, sabem provar o doce encanto do amor, a
inocência de permeio como um aceno à liberdade, a uma conduta de prazer, antes
de o pecado tolher os sentidos. O artista, era só não atraído pela beleza dos
corpos antes dos estigmas do tempo, como pelas paisagens, os entardecer em
Chassy onde viveu, e as telas retratam o encanto nostálgico dos vales sombrios,
do ondeamento da vegetação varrida pela viagem do sol mergulhando nas noites
profundas, nos horizontes inacessíveis.