terça-feira, maio 31, 2022

Terça, 31.

Ontem, passei um dia de verdadeiro papa-açorda. Arrastei-me sem sair de casa, molengão como aqueles africanos gordos ou aqueles sacerdotes cobertos de pais-nossos. Não fiz literalmente nada, levantando daqui para me sentar acolá, um livro entre as mãos que não ousava ler, um marasmo doentio a travar qualquer iniciativa, duas tentativas falhadas de entrar no romance. Não desejo ao meu pior inimigo. 

         - La nuit vient, noir pirate aux cieux d´or débarquant. Rimbaud.  

         - Há tantas formas de interpretar a actvidade do diarista, como os dias do ano. Ao contrário do vulgarmente admitido, um diário não é só instrumento de trabalho dos escritores, é também registo de um imenso número de pessoas que nada têm a ver com a escrita de ensaios, poesia ou romances. Lembro-me que há vinte anos fui aos Açores e encontrei na Fajã de Baixo da ilha de S. Jorge, um casal muito pobre que nos convidou a entrar no seu humilde lar, a mim, Annie e Robert. Era um espaço térreo, com apenas duas divisões, um quarto e a cozinha onde o quotidiano se desenrolava de porta aberta para a leira bem tratada. A mulher já de provecta idade, sempre sorridente, a dada altura sem que nenhum de nós se tivesse identificado, foi ao quarto e trouxe um caderno onde anotava o seu dia-a-dia. Annie olhou-me e eu retribui-lhe um olhar de maravilha, surpresa e espanto. Pedi-lhe que me emprestasse o manuscrito e prometi-lhe que lho devolveria por correio. Assim se fez juntado eu um exemplar de A Ruptura. Aqui em casa, não foi precisa uma hora para perceber que as folhas escritas numa caligrafia de principiante, narrando os dias onde verdadeiramente nada se passava, reverberados ad nauseam, falando da horta e do mau tempo, do filho ausente e das preces imploradas em horas de tempestade, depressa esgotaram a minha curiosidade e a vida inteira daquele casal solitário e pobre no fundo vulcão que os ameaçava em silêncio. No extremo, Julien Green: Un journal est une longue lettre que l´auteur s´écrit à lui même, et les plus étonnant de l´histoire est qu´il se donne à lui-même de ses propres nouvelles. Já Gide, no seu diário, mostra-se frio, seco de sentimentos, compondo a personagem que ele queria deixar para a posteridade. Dos autores alemães, dou muita importância ao diário de Klaus Mann e Ernst Junger, sem esquecer no plano inglês Virginia Wolf e katherine Mansfield (na forma de cartas ao marido). Nós, falo dos portugueses, não somos dados a um trabalho que exige persistência. Vejamos alguns. Torga é interessante, mas não fala dele, podendo dizer-se que não compõe propriamente um diário, antes um registo de factos, de acontecimentos. Vergílio Ferreira é uma máquina pensante, que transportou para o diário o discurso ensaísta onde deposita as suas obsessões. Marcello Mathias está ente Torga e Ferreira, com ligeiras entradas pessoais sem expressão que traduza o silêncio interior. Mais fascinante é José Régio, que contorna o mistério e o silêncio como elemento de dignificação do homem, prevenindo-nos (p, 67, Ed. Imprensa Nacional): “Sou, cada vez mais, um homem capaz de amar profundamente os homens, mas incapaz de os tratar sem franqueza rude e sem espírito crítico.” Ou ainda (p. 45, idem): “Estou cansado de fingir e de mentir, e sinto-me incapaz de me desmascarar..” E ultimamente conheci o trabalho neste domínio de Eugénio Lisboa que não ousa despir-se, mas é ferramenta de traumatismos, de ataques frontais, de língua solta, de alguém que põe os pontos nos ii – e nesse sentido muito curioso e marcando uma época. E tu pobre homem? Que pretendes tu com a lengalenga diária? Tudo até esconder-me atrás das palavras sem nunca aspirar a mais do que o silêncio – esse grande manto que nos desnuda incomplacente. Vanitas, vanitatum et omnia vanitas. 

         - Sob tempo  moche fui a Lisboa. Nas minhas deambulações, encontro algo que me sensibilizou de tal modo que tive de suster os sentimentos que afloraram num ápice à tona de mim, e não resisti a fotografar a pura poesia que se levanta do chão em glória da Ucrânia.   




segunda-feira, maio 30, 2022

Segunda, 30.

Isto de novas vacinas e novos vírus em catadupa, começando por perfilar os velhos até aos jovens para os inocular, ainda um dia se explicará. Há, todavia, algo que se pode observar desde já: a crescente riqueza do sector farmacêutico. Segundo o relatório da Oxfam, 1000 dólares por segundo!!  

         - Montenegro ganhou o poleiro do PSD. Que dizer senão que é mais do mesmo. Ele tem a escola completa do conluio, das manobras políticas, do jogo de interesses. Preferia Rui Rio com a sua personalidade outside e as suas hesitações e delírios se tentasse que Montenegro lhe ensinasse as vigarices habituais. 

         - Agora sei o prazer que os jogadores de futebol têm quando se atiram para o chão. Eu explico. Ontem, tropecei na mangueira ao limpar a piscina e caí desamparado por terra, batendo com a perna que as moçoilas e os moçoilos me pedem às vezes para fotografar de forma a mandarem fazer um molde em cera para levar à Virgem de Fátima. Para meu espanto, nenhuma dor. E porquê? Porque o chão em torno do tanque, está atapetado de escalracho fofo que amortizou o desastre. Foi até um prazer ter experimentado tal deleite que, estou certo, é o mesmo que os patetas do futebol vivem ao esborracharem-se no relvado - a par, talvez, de outras intimidades... Cala-te, moço. 

         - Pois é. Agora que tenho a água cristalina e quente de todo o Inverno ali armazenada (eu só mudo a água de cinco em cinco anos), PH e cloro no ponto, um desejo de mergulhar para poder oferecer aos rapazes e raparigas as mais belas fotos dos membros inferiores, é que os cómicos da meteorologia nos anunciam chuva para os próximos cinco dias. É preciso ter azar! 


domingo, maio 29, 2022

Domingo, 29.

José Milhazes, não obstante ter frequentado o seminário e ter, inclusive (segundo declarou à SIC) ouvido a voz de Deus aconselhando-o a desistir da carreira eclesiástica, diz ter perdido a fé em qualquer espécie de paraíso mesmo o da religião cristã. Há, todavia, nas suas palavras um logro que eu compreendo e vem da sua ruína à entrega ao marxismo-leninismo: confundir a doutrina de Jesus Cristo com o “paraíso” que foi procurar nos anos que passou na URSS e de onde voltou descrente de toda verdade única. Ele e todos nós somos livres porque Deus assim nos fez, enquanto que a doutrina marxista é ditatorial, opressiva, hedionda, porque não deixa ao indivíduo nenhuma porta aberta para a liberdade e o ser único que cada um de nós somos, criados um a um, e não colectivamente, por Deus.  

         - Estou com Volodymyr Zelensky quando afirma que Kissinger “não está em 2022, mas em 1938”, a propósito da guerra levada a cabo por Putin. Diz o homem que conduziu a diplomacia americana durante quase dez anos e tem hoje 99 de idade: ser “necessário  à Ucrânia fazer concessões a Moscovo (entenda-se perder território) para pôr fim à guerra”. Henry Kissinger foi o homem da Guerra Fria e tem tendência enquanto americano a achar que o mundo e os povos devem servir de joguete às estratégias geopolíticas das grandes superpotências, pondo de parte as ambições dos povos, o seu direito à liberdade, e à condução do seu destino. 

         - A este propósito, cito o filósofo José Gil em artigo no Público de hoje: “Qualquer coisa está a acontecer naquele país (a Ucrânia). Qualquer coisa só comparável aos campos de extermínio nazis. (...) Qualquer coisa de monstruoso apareceu, dentro da monstruosidade que é a guerra.” E mais adiante: “O que nós vemos e adivinhamos nas imagens (...) é que, para cada um, por baixo da dor, transparece o medo e a ansiedade de ter sido arrancado ao chão, atirado ao ar, e ter ficado a flutuar, perdido, sem as referências e os laços afectivos que o uniam ao mundo – sem casa, sem terra, sem amigos, sem o lar, sem a cidade, sem o tempo dos gestos e ritos que fazem uma vida. O espaço vivo da casa ou da cidade, e o tempo pulsado do trabalho e do lazer desapareceram para os ucranianos.” 

         - Comecei e terminei a longa tarefa de aspirar manualmente o chão da piscina. De seguida acordei a água do sono do Inverno, com os produtos que operam a magia. Três horas com os skimers a funcionar e o PH e o coloro ficaram no ponto. Seguiu-se a complicação de acertar as quatro horas nocturnas diárias de tratamento da água (Sr. Xi nem mais uma hora!), porque me esqueci como devia proceder e tive de ir à Internet (gloriosa rede) tirar a posologia. 


sábado, maio 28, 2022

Sábado, 28.

Os fins-de-semana aqui são a costumeira talega de trabalho. Não me queixo. Pelo contrário sempre fui um homem de trabalho, sempre amei o que fazia ou fui fazendo ao longo dos anos. Por isso, não compreendo a velhada desocupada que vive nos tabuleiros chiques ou remediados das cidades, a existência a rastejar nos centros comerciais por insuportáveis horas nos apartamentos, levantando desta para aquela cadeira, a espreitar quem passa na rua, a olhar o declínio do dia e a formação da Lua lá longe, muito longe da monotonia que lhes sufoca os dias e as maratonas de noites em blasfémias. Assim,  comecei o dia a regar seguido de ida aos pequenos agricultores do Pinhal Novo, sem que antes tivesse atestado a máquina da roupa da semana e quando voltei a pusesse a secar ao sol e de seguida a apanhasse para a arrumar no sítio costumeiro onde a Piedade a recolherá para a passar a ferro. Depois fiz dois pratos para arquivo, o almoço, e enquanto ouvia o José Milhazes fui descascando, partindo em múltiplos pedaços a única abóbora que este ano consegui produzir, para fazer a respectiva compota em horas ao lume de onde saíram cinco frascos. Felicidade suprema: ainda me sentei à secretaria e enchi as páginas 64 e 65 do romance. Instantes destes, compensam todo o percurso de vida que foi o meu e mimoseiam o espírito do maior e mais íntimo estado de graça. 

         - O meu amigo e atento leitor deste blogue, Filipe, volta que não volta, incentiva-me a entrar nisto e naquilo porque entende que eu não devo estar fechado em casa e sou mal empregado mantido na escuridão. Vai daí, mandou-me desta feita (noutras alturas envia-me nomes de editores e editoras) um pequeno filme onde se vê Rui Reininho, amigo do pintor Fernando Gaspar, à conversa com o artista no seu atelier. “Acho que seria interessante para o Hélder (ele põe o acento) fazer um podcast deste para os seus leitores.” Respondi dizendo: “Prezo a minha privacidade e defendo os meus amigos, depois estou tão absorvido pelo meu trabalho... mas os filmes são interessantes e o Reininho é uma personagem.”   Bom, Filipe, bom Filipe! 


sexta-feira, maio 27, 2022

Sexta, 27.

Como é meu hábito, nunca arrumo um livro que me absorveu semanas, dias, anos a ler. Tenho-o como amigo e um amigo não se abandona ou se descarta como um lenço de papel. É o caso do Aperto Libro – 1991-1994 de Eugénio Lisboa. A páginas 275, releio o meu sublinhado: “Mao foi um monstro – e era sacrilégio dizê-lo, nos anos 60 e 70. Se, de alguma coisa me orgulho, é de não ter precisado de chegar aos anos 70 para abominar toda esta cambada de marxistas leninistas e mais a puta que os pariu a todos. Chamar-se a esta merda ciência é de fazer um Newton dar uma volta no túmulo. Socialismo científico... Valha-nos os deuses todos do Olimpo!” Meu caro inconformista Eugénio Lisboa, aponho a minha assinatura por baixo. 

         - Ontem insisti em tirar a tensão à Piedade. Para isso fi-la sentar-se no cadeirão inglês, cheio de flores, de modo a que ficasse confortável. A seguir, ante a tensão de menina bem comportada (a africana foi, enfim, posta fora de casa pelo neto que se cansou do bem-bom noturno e o resultado está à vista), ela deixou-se ficar, os olhos muito abertos como se admirasse o salão pela primeira vez, e desabafou:  “Esta casa é muito bonita! Está-se aqui muito bem e o senhor tem muito gosto. O que diria a minha filha se a visse (a filha faleceu num acidente de trânsito e em vida tinha o hábito de vir com a mãe limpar a pequena construção original porque achava que nela se respirava paz). “Mas como vê aqui não há nada de luxo, só livros.” “Pois, é essa a sua vida. Não sei como tem cabeça para tanto.”

         - Logo de manhã cedo, antes de a brasa descer sobre a terra, estive com a roçadora a destruir o capim do jardim, deixando, enfim, o espaço limpo. Uma olhada às árvores, deixou-me feliz: as figueiras exibem já alguns figos com certa dimensão, os damasqueiros estão a tomar cor, as amendoeiras têm ramos derreados de amêndoa, as ameixieiras idem, idem... Assim começa a melhor época do ano, com diversidade de frutos. No domingo vou começar a preparar a piscina, esperando mergulhar no início do próximo mês. Mas se a conta da luz for excessiva como nos prometem os gananciosos (o sector, segundo o relatório da Oxfam, teve 20 milhões de dólares por dia de lucro nos dois últimos anos), fecho a torneira aos gulosos que, desumanos e indiferentes às tragédias de milhões, obstinam-se na riqueza como elemento de identidade e supremacia sobre os de mais. 


quinta-feira, maio 26, 2022

Quinta, 26.

Mais uma cena  hedionda passada nos EUA, Texas. Um adolescente de 18 anos, abre fogo numa escola primária e mata de uma rajada 20 crianças e duas professoras. As crianças tinham entre oito e dez anos. Os motivos desconhecem-se, sabendo que momentos antes havia maltratado a avó. Todos os rapazes e raparigas mortos, eram de origem hispânica. O delinquente foi abatido pela policia. Seguiu-se uma onda de indignação e revolta por toda a América, mas o Governo e o Senado não logram acabar com actos como este. A lei norte-americana protege as grande indústria de armamento e não denega a venda de armas a menores, mas proíbe a venda de álcool aos mesmos. Uma contradição impossível de compreender na Europa.  

         - Ontem, entrada por saída na fnac. Pura tentação. Não consegui sair sem comprar pelo menos um livro desta feita o de Jean d´Ormesson – Je dirai malgré tout que cette vie fut belle. Ando cansado de literatura densa, vasta (nunca com menos de 500 páginas) e esta que logo comecei a ler no Fertagus, é ligeira, bela, de alguém que passou por esta vida aspergindo os dias dos aromas eternos da juventude.

         - José Sócrates, com a lata que todos lhe reconhecem, diz que está no Brasil a tirar cursos disto e daquilo; são com certeza diplomas como os que a damas desocupadas fazem em oito dias para pedicure ou então licenciaturas como a de engenheiro passada ao domingo... E é ele “um socialista de ouro”!

         - Como se previa e à boa maneira portuguesa, mal distribuídos os milhões que chegaram de Bruxelas, já 3 milhões foram surripiados para alimentar a luxúria e a saloiice de certos “empresários”. Os fundos ditos resilientes, entraram na corrente da corrupção e do enriquecimento ilícito, disseminados por este e por aquele, no subterrâneo onde se esconde o público e o privado e onde todos comem alarvemente do mesmo. Pelo menos 37 arguidos estão constituídos. É obra tendo em conta que o dinheiro nem tempo teve para aquecer nos cofres do Banco de Portugal. 

         - Pobres homossexuais! Agora como no tempo da sida, acusam-nos de serem os disseminadores da varíola dos macacos. Este vitupério vem dos macacões que, sendo casados e segundo a teoria “bem casados e felizes”, vivem contaminados pela frustração e a falta de coragem em assumirem a liberdade e o prazer que os homos exibem (por vezes) com excessiva alegria. São os chamados hetero, quiçá os mais perigosos assassinos dos homossexuais, quando estes têm a infelicidade de se envolverem com eles. Todo o ser humano que vive no desengano, só pode mostrar um dia, de uma forma ou outra, a violência contra aquele que vive nos antípodas da sua escolha.  


terça-feira, maio 24, 2022

Terça, 24.

Terminei a leitura do volume 2 do Diário de Eugénio Lisboa. As 340 páginas estão repletas de mimos à esquerda e à direita. É impressionante como a classe dos fazedores de cultura se estima entre si, a inveja que a devora, a intriga que os arrasa. Todos se reconhecem génios, candidatos ao Nobel, com obra imortal. A humildade e o transitório não habita neles. Um exemplo. “Os Cadernos de Lançarote que se parecem muito com a sala de troféus do Benfica...” diz Vergílio Ferreira em carta a Eugénio Lisboa, e a resposta deste: “O Nobel não tem importância – e o Saramago ainda menos. E quase desejava – para o Saramago – (estamos em Junho ‘ 94) o rebuçado envenenado que é o galardão sueco. Que espantoso revelador o prémio não seria – para os que ainda precisam de que o autor do Memorial se revele como é: um provinciano de cérebro pequenino. (p. 245)”   

         - Precisava de esclarecimentos sobre o IRS e, depois de tentar aqui em Palmela, fui a Lisboa à minha antiga repartição de Finanças. Encontrei outro horror! Que triste é ter nascido neste país! O cidadão está, pura e simplesmente, abandonado à sua sorte. A funcionária disse-me que só por marcação ou então que aparecesse pelas cinco da manhã como fazem outros para marcar vez!!! 

         - O poder ofusca esta gente. Depois admiram-se que os cidadãos clamem por um ditador qualquer que ele seja. Veja-se o caso da sexta vaga de covid-19. Parece que o Governo, este que se sucedeu, não aprendeu nada com o modo e maneira de tratar o assunto. Eu até podia perceber a avareza da ministra da Saúde quanto aos testes se os serviços de retaguarda funcionassem bem. Mas os quase 800 mil funcionários públicos são lengões, não estão ali para ser importunados, e os protestos são tantos que não há justiça que os julgue. Quando digo que a nossa classe política é medíocre, penso na forma como governa, no desajuste entre a realidade e a fantasia, entre a propaganda e o martírio de milhões de portugueses.  

         - Um vento doido cirandou aí todo o santo dia. Pouco fiz lá fora, atacado da moleza que paralisa. E também aqui dentro se algo de jeito fiz, ficou traduzido nestas linhas. 


segunda-feira, maio 23, 2022

Segunda, 23.

Pouco trabalho no romance na última semana. A dispersão é inimiga deste género literário. É por isso que protelo, acumulo ideias, notas, disfarço, encho o tempo, digo que sou uma nulidade, desprezo-me e só então em desespero me atiro ao projecto. Depois entro noutra espécie de tortura, cozido de remorsos, a continua e obsessiva ideia de me entregar de alma e coração às personagens que me questionam a qualquer hora, em todos os locais, noites e dias, trocando-me as voltas e fazendo dos meus dias sucessivos tombos no inferno. Flaubert, já no século dezanove, vivia idênticos e tristes flagelos. Pudesse eu encher uma página por dia e não pediria mais nada à vida, à riqueza, à saúde – só solidão, solidão, bendita e amável solidão! 

         - Nestes últimos oito dias, medi a tensão para ver como se comporta este coração constantemente desnorteado e ensandecido por infinidade de preocupações. A sistólica andou entre 13, 1 e 13,7, a diastólica nos 6,4 e 7,5. Bravo! 

         - A Sexta Sinfonia de Beethoven que ouvi ontem no habitual programa de música clássica da ARTE, acompanhou-me ao longo da vida em momentos difíceis: na Rua do Salitre, S. Marçal e aqui. Socorro-me do compositor quando tudo desmorona e com ele me reergo sabendo que o tenho por perto em qualquer altura. 

         - Êxtase absoluto ante os jacarandás em flor no Rossio. Todos os anos encho o coração do seu tom arroxeado, da sua beleza magnífica e simples. A praça é um jardim suspenso de outros momentos vividos na adolescência, quando descia à pastelaria Suíça ao encontro da tia Dália e das suas amigas que ali tomam a cup of tea. 

         - Tenho de realçar o trabalho notável de dois jornalistas da SIC: Iryna Chev e Nuno Pereira. Tarefa difícil, ante as ruínas de cidades inteiras, vilas e aldeias, o sofrimento humano no limite da vida, a vida suspensa no fim do nada. Como conseguem eles travar as emoções, as dores contadas como se aquilo que narram lhes fosse indiferente e não consente sequer uma furtiva lágrima. É preciso ser-se muito profissional para resistir semanas no inferno e sair dele sem ser chamuscado. 

         - Boris Bondarev diplomata da delegação da Rússia na ONU apresentou a demissão, alegando que nunca teve tanta vergonha do seu país como no dia da invasão da Ucrânia. “Não posso simplesmente continuar a participar nesta ignomínia sangrenta, idiota e absolutamente inútil”. Bravo. Pensava que era só eu a achar idiota à guerra levada a cabo por Putin, fico satisfeito por o ter comigo, ilustre senhor Boris Bondarev. Se me permite um conselho: não regresse a Moscovo - comem-no vivo.

         - Há uma cómica psicóloga que escreve no Público dizendo que este é o mês da masturbação feminina. Vai daí lança o desafio às mulheres: “Vamos aproveitar este mês para nos dar prazer, já que ele está mesmo ao alcance das nossas mãos.” Seja como for, estas modernices, são galvanizadoras e atrevo-me a aconselhar também os homens feitos porque os rapazes já o fazem por todo o lado até nos wc públicos. Não sou de intrigas, juro!  

         - Comecei o dia a tratar do relvado à frente do salão. Comecei e acabei alagado de transpiração porque isto do novo “brinquedo” não é pêra doce. A propósito. Sábado comprei a uma velhota simpática no mercado do Pinhal Novo dois abacates com a forma de pêras e eu disse-lhe que usava o fruto nas saladas, resposta: “Pois. Os ricos misturam-nos nas saladas; os pobres comem-nos com açúcar.” Mais uma definição de classes. 


domingo, maio 22, 2022

Domingo, 22.

Cá estou conforme o prometido para falar da exposição Julião Sarmento – Abstracto, Branco, Tóxico e Volátil. Não me admiraria que tivesse sido o artista a fixar o título desta amostra, pois é sabido que o artista multifacetado, poucos meses antes de falecer, montou o decore dos espaços que acolheriam telas e esculturas, um filme e instalações. “Penso que não seria capaz de fazer o que fiz sem a memória da minha vida – dizia o pintor -, para acrescentar: na realidade vejo o meu trabalho como um amontoado de informações diferentes. Sempre foi assim. Aquilo que faço hoje em dia é parte daquilo que fiz ontem, do que fiz há 20 anos atrás e daquilo que virei a fazer amanhã.” É isso. A obra de Sarmento não é mais que uma espécie de diário onde os cruzamentos vivenciais, a troca de olhares, de cama, de corpos, acontecem no fervor de noites contaminadas pela obsessão da beleza e a sensualidade dos corpos abandonados ao desejo, à luxúria, à solidão. A mulher (a sua?) está sempre presente, contamina-nos com a delicadeza das suas formas onde parece ter morrido para a eternidade uma certa inocência, um certo mistério erótico, por vezes sexual, sem margem para complexas formas e fórmulas de expressão que o anseio não contém e a vivência não explica totalmente. Como se o artista não resistisse ao objecto amado sob pena de se anular enquanto ser humano e a arte, toda a arte, fosse uma inutilidade que não expressa a natureza humana ou dela não possui consciência. A significação e o significado de cada tela, de cada Polaroid, de cada frase, têm ali plena existência e levantam alto a bandeira da liberdade. Julião Sarmento não foi talhado para um país que não ama a cultura nem os seus obreiros, insignificante, complexado e cheio de preconceitos e olhares esquivos sobre tudo e todos os que se diferenciam e vivem, todavia, abertos à modernidade, indiferentes à ligeireza da argumentação religiosa-política que os cataloga com perversas linguagens, tratados como marginais, sem normas sociais nem pertença partidária. Sarmento encarou tudo isso e prosseguiu o seu luminoso caminho, criando composições e texturas que só conhecemos aos grandes pintores, aos foras-da-lei, aos que trouxeram à contemporaneidade um laivo de luz, uma revelação, um não sei quê de ímpar que fecha num sortilégio a obra admirável ali exposta. Tanto o atraía os pequenos nadas, como as montagens, a fotografia acrescentada da frase que esclarece o olhar desatento da memória, do visitante, nos trilhos do mundo desequilibrado que foi o seu, e que ele registou no diário intemporal  de cada tela, cada pequeno-nada, porque ao artista como ao escritor, o vislumbre da frase, da forma, da silhueta ou da sombra, é minuciosamente retido para  mais tarde incorporar a plasticidade da matéria, do texto ou da mancha misteriosa que amplia diante dos nossos olhos incrédulos e pasmados o acontecimento maior da arte. Julião Sarmento, à medida que foi envelhecendo, parece-me a mim que pôs de parte o abstracto para se concentrar no mistério, na ambivalência de que é exemplo as chamadas Pinturas Brancas. De algum modo, transferiu para o apreciador das sua extraordinária obra, a identificação que se esconde na complexidade das superfícies transparentes, no traço aberto como uma ferida, na simbologia da memória anotada com rasgos fortes sobre a tela abandonada à força criadora do artista ou simplesmente ao poema que ali aporta por via da frase que fecha a delicadeza do todo. Cada quadro intersere uma história, deixando contudo uma janela aberta para o mundo duo, onde os corpos são a essência que não cabe no espaço da tela. Eles estão lá, mas cabe a nós descobrir o que o artista não ousou dizer-nos, sendo certo que toda a sua grande produção tem no corpo feminino a expressão mais nobre, sublime, carnal e poética na tradição dos pintores franceses e ingleses entre as duas grandes guerras. A forma como Julião Sarmento soube traduzi-la, a originalidade, a liberdade e concepção artística, a par da cor e dos diferentes planos, do traço e das texturas, marcam o acontecimento maior na História da Arte Portuguesa. Aconselho vivamente aos meus leitores uma ida ao Museu Berardo. 







sábado, maio 21, 2022

Sábado, 21.

Vejo obliquamente a passagem de Marcelo R. de Sousa por Timor. Mas quem me atrai a atenção, é o ministro dos Negócios Estrangeiros que o segue com cara de condenado à morte. E a coisa não é para menos, depois do que Marcelo disse dele. Costa nem se dá conta do martírio a que o seguidismo partidário obriga. Dir-me-ão que Gomes Cravinho podia ter declinado o cargo. É verdade mas para isso o condenado à humilhação tinha que renunciar ao gosto do poder e a tudo de bom que ele envolve. O poder é mais forte que a dignidade, a honra e o amor próprio. É no limite uma forma de escravidão assustadora. 

         - Telefonei ao João Corregedor a perguntar como podia chegar ao CCB partindo da Avenida de Roma. Logo ele me solicita se me pode acompanhar no meu interesse por ver a exposição Julião Sarmento. Ante a afirmativa, assim que o comboio pára na estação, lá está ele à minha espera na gare. Digo-lhe: “Que honra ter alguém a receber-me à saída do comboio como outrora quando famílias inteiras vinham esperar os entes queridos que desciam de avião, de comboio ou camioneta! Nesse tempo os encontros eram uma festa.” Riu-se. Instantes depois, estávamos sentados no 727 para viagem de uma hora até Belém. Fazia calor e a dada altura a condutora, uma mulher feia como o trovões, de cabelos negros e pernas curtas, moustache negro, ligou o ar condicionado. Atravessámos Lisboa indo pelos bairros sossegados que noutros tempos eu calcorreei, Rato, Alcântara, Santos, nunca entrando na zona ribeirinha, vencendo ruas e becos, passeios estreitos atapetados de esplanadas, com turistas por todo o lado, sardaniscas ao sol, naquela confusão que o turismo introduz quando toma de assalto cidades e aldeias. Depois de um tão longo e confuso itinerário, assim que nos apeámos em frente ao mosteiro de Santa Maria de Belém, disparámos para o último café do murete que dá acesso ao Jardim Tropical que o meu acompanhante não conhecia, para uma bica e pastel de nata à maneira, evitando as filas incríveis para a fábrica dos ditos cujos. De ali fomos ao Museu Berardo para nos demorarmos para cima de uma hora, pela minha parte extasiado ante a força, a ousadia, a sensualidade e até a sexualidade do pintor que eu conheci e de quem se contavam histórias deliciosas acerca da sua conduta com mulheres de vários gostos e tendências. Reservo para amanhã uma análise mais assertiva do que vi, porque daqui a nada vou almoçar e de seguida ao Corte Inglês liquidar a conta do mês passado (o último dia é amanhã).  

         - Eu não sou de ouvir mal, oiço um mosquito a metros de distância e, por isso, distingui nitidamente o que diziam na TSF da existência de um clube de futebol com o nome de Aitraque. Será que escutei bem? Ou a maluqueira invade-me sem eu dar conta. Se é verdade, Deus me livre de assistir a um jogo daqueles jogadores... sem máscara. Possa! 


quinta-feira, maio 19, 2022

Quinta, 19.

O Público, assim que abro a Internet, atira para dentro do meu computador as notícias frescas que são o retrato do mundo de hoje: guerras, doenças, epidemias, assaltos, políticos corruptos, incêndios, divórcios, indigência, cagança dos ricos, carpe dos pobres, e até varíola dos macacos (só nos faltava mais esta!) que se está a instalar como se tivéssemos símios em cada janela. Tenhamos, todavia, esperança. Nem tudo é mau: José Sócrates viajou para o Brasil para... “estudar”. Já tinha estado em Paris a aprender francês e a tocar piano; agora em terras de Vera Cruz vai aprender a falar brasileiro e a roubar sem que alguém dê por isso. Olarilas! O Bolsonaro poderá ser o seu mestre ou o Lula – é tudo boa gente e... camarada. 

         - Transcrevo do mesmo jornal: “Portugal tem uma média de 2,29 mortes por covid-19 nos últimos sete dias, apenas ultrapassado a nível mundial pela Nova Zelândia. Apesar disso, o número de óbitos é inferior a Janeiro de 2021, quando a média era de 28,61 mortes diárias.”

         - O Ministério dos Negócios Estrangeiros da Rússia vai expulsar cinco diplomatas portugueses em retaliação pela expulsão dos dez diplomatas russos em Portugal (estamos a ganhar 10 a 5). Que pena! O PCP vai bater palmas e a malta cá de baixo, “o povo unido jamais será vencido”, gritar solidariedade ao “povo irmão” e apoio a Putin. Resta saber que tipo de interesses pode Portugal manter com a Federação Russa e com o dito cujo presidente, que é tão mutável como os cata-ventos que ornam os sinos das igrejas. 

         - Definitivamente não me entendo com maquinaria. Este corta-relva que no dizer da Piedade parece um brinquedo, é um cavalo de corrida. Se não me precautelo leva-me consigo tal a força que possui. O anterior era eu com denodo esforço que o empurrava, este se não o seguro bem, chego ao castelo de Palmela em cinco minutos. Assim, cheio de temor, como quem ensaia cada gesto, comecei e terminei de cortar a relva em torno da piscina. Amanhã irei a Lisboa, mas sábado cortarei o relvado entre o natatório e o salão. 

         - Só acredito quando acontecer. A TAP, a nossa estimada bandeira nacional socialista, ao fim de vários meses de e-mails sem resposta, retorquiu, enfim, pedindo-me o número de IBAN para depositar o valor da viagem de ida e volta a Budapeste que não pude realizar há dois anos em virtude do SARS-COV2. A Hungria, que eles dizem ser fascista e autoritária, no espaço de poucos meses, retornou-me o montante do valor do hotel que não cheguei a conhecer. 


quarta-feira, maio 18, 2022

Quarta, 18. 

Há uma data de anos que não comungo, embora vá à missa com frequência. Comungar significa estar puro de ofensas a Deus e para tal só a confissão, o arrependimento e o perdão nos preparam para receber o corpo de Cristo. Acontece que ao padre onde o homem se assenta e neste aquele se ausenta, reside as minhas suspeitas e confiança. Podia receber a comunhão pedindo perdão dos meus pecados a Deus como, de resto, nos ensina a Bíblia. Tenho, contudo, de trabalhar antes nesse sentido, procurar a união com o Senhor, pedir-Lhe que me ajude a vencer o que nos separa. Aliás, (Act 11-27-28-29), Paulo é claro: “Assim: aquele que comer o pão ou beber o cálice do Senhor indignamente, será culpado do corpo e do sangue do Senhor. Examine-se (cá está) cada pessoa a si própria e assim coma deste pão e beba deste cálice. Pois quem come e bebe, come e bebe a própria condenação ao não distinguir o corpo.” Nesta Carta aos Coríntios refere-se o Apóstolo à comunidade enquanto corpo de Cristo, como observa Frederico Lourenço em nota de rodapé. Os primitivos cristãos “confessavam-se” directamente a Deus pedindo-Lhe misericórdia e perdão pelos seus pecados.  

         - Apenas oito votos contra adesão da Finlândia à NATO. O Parlamento do país aprovou assim, terça-feira, por larga maioria a entrada do país na NATO. Não houve uma só abstenção. Hoje a Finlândia e a Suécia entregaram a candidatura que marca o fim de oito décadas de não-alinhamento. 

         - Nunca me entendi bem com o dinheiro; a sorte é que, sendo poupado, ele vai esticando quando penso que mingua. 

         - Novos doentes por covid, nesta semana, atingiram 20 mil diários. Como sempre aconteceu, o governo hesita, multiplica-se em argumentação, mas a doença entretanto vai galopando. Eu mantenho os mesmos hábitos: máscara, distanciamento (sobretudo), lavagem de mãos, duas laranjas diárias. 

         - Há dias falei dos tormentos que Julien Green passava quando descia às ruas e deparava com pernas jeitosas de rapaz esbelto. Pois, ontem ao serão, não tendo ainda subido o Diário Toute Ma Vie para arrumar da biblioteca de cima, folheei o terceiro volume e deparei com esta entrada: 8 de Julho de 1946: “Tranquille aujourd´hui parce que je suis peu sorti et que j´ai vu peu de belles jambes.” 

         - Ontem, cheguei à noite estafadinho, depois de todo o dia andar lá fora a orientar o homem que veio limpar a quinta das ervas daninhas com mais de um metro. De seguida passámos ao corte das silvas que são uma espécie de muro contra invasores, mas que tinham avançado tanto que tomaram uns metros de terreno, impondo-se às laranjeiras, tangerineiras, figueiras. Depois, pelas sete da tarde, ele substituiu os crivos da rega automática, colocando os novos que eu havia montado à luz de uma vela. No final, tive a bela ideia de lhe propor um desconto contra a dádiva da máquina de aparar relvado, e para meu espanto ele aceitou. A meu velho corta-relva, que me tomava uma manhã para pegar, quando ele tentou, abriu logo a boca num riso cínico de despedida. Hoje de manhã, fui a Setúbal comprar uma Stihl – pega como os viciados com um beijo. Ufa! Ufa!


segunda-feira, maio 16, 2022

Segunda, 16.

O passado feliz é sempre um recurso, uma prancha de salvação que temos à disposição dentro de nós para enfrentarmos o presente. É a ele que frequentemente me agarro quando me sinto soçobrar ou quando a descrença se instala e tolda os dias de uma sombra paralisante. Estando próximo e distante desse mundo que faço presente, é ele que passa a moldar as horas transformando-as à sua imagem, com a riqueza de todos os desaparecidos se apresentam à recordação que a tristeza convocou.  A sua força é tal que tudo altera, inundando de luz os espaços interiores, trazendo à realidade o incentivo para continuarmos a olhar o horizonte rasgado de esperança. 

         - Um rapaz de 18 anos, há dois dias, avançou sobre um centro comercial, em Buffalo, EUA, e varreu 10 pessoas de rajada. Na base deste horroroso crime, está o racismo. Todos os mortos (escolhidos?) eram negros. 

         - A Coreia do Norte, dois anos depois da invasão do SARS COV-2, anuncia de súbito um milhão de pessoas infectadas com o vírus a que chama simplesmente “febre”, provavelmente para não comprometer os seus amigos do Governo chinês que são a barriga de aluguer do bicho. Nos regimes ditatoriais, tudo é permitido: chamar aos nomes científicos o que o ditador ordenar, fazer dos outros povos idiotas por não compreenderem a robustez e resistência dos escravos do senhor Kim Jong-un.  

         - Vou ter cá amanhã um homem a fresar a terra e limpá-la do mato. Por isso, ontem preparei o espaço onde plantei alfazema, cortando a erva com metro de altura, de modo a que a máquina não leve tudo na dianteira. Hoje, prossegui a roçaga no jardim. Talvez na próxima tenha este completamente limpo de erva ruim. Ontem, à parte a leitura dos jornais, nada escrevi, nada li. Apatia sinistra. 


domingo, maio 15, 2022

Domingo, 15.

Por este tempo subitamente quente, lembro-me de Julien Green. Quando anteontem fui ao encontro do João, os rapazes aqui deste “deserto”, assim como os que sendo ou não da capital exibiam pernas peludas, depiladas ou ao natural com a galhardia que só a juventude pode oferecer, foi nele que pensei. Green não podia ver pernas bem feitas porque regressava a casa abatido de excitação. Com ele não era só um belo rosto que  perturbava, era também o corpo desde que não fosse peludo. Detestava rapazes cabeludos e quando já no quarto eles se despiam e observava camadas excessivas de penugem, pagava-lhes e conduzia-os à porta. Tinha um verdadeiro horror aos corpos com cabelo por todo o lado; mas não lhe escapavam as coxas fortes e imareadas dos rapazinhos parisienses. 

         - Passou-me despercebida a recente prisão do cardeal emérito Joseph Zen, 90 anos, acusado pela China de “conluio com forças estrangeiras”. Ele e mais três ilustres membros defensores dos direitos humanos e fundadores do Fundo de Apoio Humanitário de ajuda aos participantes nos protestos democráticos de 2019. Quem realça este facto, é Teresa de Sousa no seu artigo “A China não sabe o que fazer com a guerra de Putin”. Pois é. Eu desde o seu começo que escrevi que a guerra da Ucrânia era para ser olhada com toda a atenção por Xi Jinping ping ping. A forma como a Rússia sair dela, é a resposta que Hong Kong tanto aguarda.  

         - A canção trolaró da Ucrânia, vencedora do Festival da Canção, que ouvi esta manhã na TSF é banal, e ganhou empurrada pela revolta da invasão  Rússia. É, portanto, ganhadora política como, de resto, nos aconteceu a nós no tempo do fascismo com os temas de Ary dos Santos e as vozes (magníficas) de Tordo e Paulo Carvalho. Eram muito melhores a da Espanha, Inglaterra ou até a portuguesa que fui ouvindo ao longo do dia de hoje. 

         - Assim como acho detestável que a possível doença de Putin sirva a tantos como arma de arremesso àquilo que deve ser tratado por crime e invasão irresponsável e prepotente a um Estado soberano. Putin é criminoso, mas as suas fragilidades físicas, devem ser respeitadas enquanto ser humano sofredor. De contrário, tornamo-nos tão condenáveis como ele.   

         - Por isso, considero os soldados russos perfeitos assassinos e idiotas, quando semeiam o terror à sua passagem por povoações conquistadas. A par dos ataques a civis indefesos, praticam violações em mulheres e até em homens e rapazes. Estas monstruosidades levam-me a descrer no povo russo de onde emana o Exército.  

         - A Maria José esteve no fim de semana passado num acontecimento cultural no Porto (onde não faltou também o Presidente da República), e contraiu covid-19. Vacinada duas vezes, o vírus atacou-a forte: falta de apetite, olfacto, febre e entorpecimento muscular dos membros inferiores.   


sábado, maio 14, 2022

Sábado, 14.

Ontem estive com a Teresa e o João na Brasileira e depois com este no Adega da Mó a almoçar depois de recusar a Benard para onde a Teresa me queria arrastar. Em verdade, do que eu não gosto é dos gostos gastronómicos do João para quem os enchidos, as orelhas de porco e cozido à portuguesa são gulodices de comer e chorar por mais. Daí que antes o tivesse arrastado para a Confeitaria Nacional cujos pratos, em quantidade e qualidade, são para mim satisfatórios. Não abancámos porque o menu do dia não me satisfazia e muito menos ao meu companheiro. Bom. No restaurante esteve-se bem, climatizado, os preços não aumentaram por aí além e a qualidade está no limite para o tipo de estabelecimento. Conversa variada, pouco ou nada sobre política, quando muito uma leve defesa do ex-ministro da Administração Interna atribuindo a falta ao condutor da viatura oficial e logo contestada por mim com esta simples pergunta: “Se fores a 160 km. cometes uma infracção e pões a tua e a vida dos ocupantes do carro em risco, ou não?” A ideia do João que já teve carro oficial, é que quando os governantes se deslocam, sobretudo o Chefe de Estado, têm de o fazer sempre a alta velocidade para evitar atentados. Como perdi o norte ao país onde vivo, todo o delírio é consentido... Atentados neste país são mais que muitos, não é verdade? Para o meu amigo, o resultado é só um: o empregado da autoestrada não devia ter atravessado a mesma. No outro mundo, o infeliz deve ter-se contorcido. 

         - Não apreciei ver a bagunça do Chiado. O turismo altera, instala a confusão, desarruma a malha citadina, contribui para uma certa alienação colectiva, varre com a sua presença as tradições, os hábitos de vida, vive da exploração dos nativos, força a desigualdade, inflaciona os preços, afasta os velhos e os novos dos centros urbanos, descolora a luz com a hegemonia e força a aceitação dos viandantes que pouco ou nada se interessam pela sua cultura, modo de viver, história e quotidianidade. 

         - Enforcou-se na cadeia onde estava preso o banqueiro João Rendeiro. Que a sua morte seja exemplo (como as dos oligarcas, há quatro dias apareceu outro morto) para a massa crescente de pacóvios que se julga alguém acenando com os milhões que ganharam com trafulhices e roubos de vária ordem. A sua arrogância, a sua ganância, não cabia na ordem humilde, honesta e simples da vida de milhões de seres humanos. Preferiu suicidar-se sem grandeza, tragicamente, humilhado e rendido à sua própria e miserável natureza, ao lado de criminosos que já haviam tentado liquidá-lo. Se na terra ninguém lhe perdoa, que Deus tenha compaixão dele. Que se conste não levou ponta de nota de 1000 euros, nem centavo de moeda. 


quinta-feira, maio 12, 2022

Quinta, 12.

Indo eu a caminho de Setúbal e a Piedade a sair depois de deixar a casa num brilho, ofereci-me para a deixar na sua morada. Ela olha-me com ar estranho e eu pergunto-lhe o que há, resposta: “Vai assim nesse preparo?” O “preparo” era a camisa coçada, as calças rotas, os sapatos das velhas tontas nas tintas para o aspecto. “A sorte é que o senhor têm bom aspecto e por isso ninguém vai reparar como está vestido”, sentencia segura do que diz. Ai, boa Piedade, boa Piedade! 

         - Putin perde em todas as frentes e surpreende-me que a nomenclatura não o tenha já liquidado ou, pelo menos, substituído. A Finlândia acaba de praticamente aderir à NATO e a Suécia segue-lhe o exemplo. Moscovo protestou ameaçando com outra grande guerra, esquecendo-se que os dois países soberanos não fazem mais que lhe seguir o exemplo: Putin invade a Ucrânia por temer pela sua segurança; os nórdicos por recearem que a Rússia os subjugue.       

         - Ontem fui ao encontro da Maria de Lurdes a um restaurante nas traseiras do Teatro Nacional. Há muito que não nos víamos e falou-se até às três da tarde dos filhos o mais novo com problemas psicológicos graves. Gosto da sua coragem, de uma certa doçura que a vida não consegue destruir e os infortúnios são atirados para trás das costas. Não deve ser fácil e foi pelo que me contou o ex-marido, que fui ao rendez-vous. Ela esteve recentemente em Paris e para a Cidade Luz nos desviámos a dada altura. O hotel onde ficou, conheço-o bem porque já lá estive e por ele passo inúmeras vezes a caminho das minhas andanças por bouquinistes e livrarias. Saint-Michel é o centro para mim da capital francesa porque nele se ergue Notre Dame e os livros são tentáculos amigos que se estendem por todo o Quartie Latin. 

         - Hora e meia de trabalho no jardim nas traseiras da casa (frente para quem entra). A má erva tinha mais de um metro de altura, tornando o jardim enquanto tal inexistente. Com duas outras sessões, penso findar a tarefa. 

         - Contudo, é-me grato afirmar, a vida aqui é excelsa. Faltam-me palavras para narrar o mistério dos dias felizes, do clima afável, do recolhimento, da beleza que se expande, do ar rarefeito, do campo sereno, dos aromas, do brilho das laranjas, do renascer do sono de todos estes seres que se levantam da terra para me conceder a cintilação de ternura e felicidade, segredos que não se contam, mas vivem-se em completa união com a natureza soberana, nas horas calmas, no remanso das leituras, na escrita das palavras, uma a uma, sofridas ou folgazãs, sempre debruçadas sobre personagens inventadas que dentro destes muros tomam vida e se agigantam como verdadeiros heróis, com existência própria, exalações profundas, seres palpáveis que vieram do fundo do tempo imemorável, para ganhar corpo e consciência e respiração e atributos credíveis que só arte sabe gerar para ruminação eterna nas folhas do calendário da vida vindoira... 


quarta-feira, maio 11, 2022

Quarta, 11.

As medidas que o Governo suprimiu, contra o parecer dos médicos, são causa de os técnicos começarem a falar da sexta vaga de covid-19. Num só dia já se atingiu a marca de 20 mil novos casos.

         - António Costa no seu melhor. Cantou vitória com a aprovação do sistema que vai reduzir o preço do gás e da electricidade em Portugal e Espanha. A Comissão da UE veio agora dizer que a coisa não foi autorizada e ainda vai levar algum tempo a percorrer as comissões disto e daquilo até que fique concluída. Que irritação este modo de governar, plantado sempre na propaganda que ele chama “fazer política”. Que necessidade tem o cavalheiro disto tendo a maioria? 

         - Que bom seria se conseguisse esvaziar o cérebro do entulho do inconformismo! Este ronda-me até as noites quando acordo revoltado com o estado do mundo, a safadeza dos que o governam, a ganância dos ricos que cospem na cara dos pobres, o abandono a que foi votada uma imensa e sombria massa humana, que vive quando vive e morre todos os dias ao tentar sobreviver. 

         - Por sobre estas dramáticas realidades, o sol brilha, o vento corre, a brisa da tarde ameniza o corpo cansado e a luz que o silêncio jorra sobre a terra, é um aceno de coragem e confiança no Senhor que todos e cada um vigia. 


terça-feira, maio 10, 2022

Terça, 10.

O mundo ficou suspenso das eruditas palavras de Putin e afinal (como diz José Milhazes) a montanha pariu um rato pequenino. Que discurso oco, vazio de ideias, de ideologia, apenas concentrado na razão e utilidade da guerra como elemento vivificador de uma nação moribunda! Ridícula aquela parada militar, que só acontece nos países onde a ditadura impera. É uma cópia da da Coreia do Norte, China e países pequenotes associados. 

         - Dos novos artistas que emergiram nas duas últimas décadas: vejo três que nunca me desiludiram: David Fonseca, Carminho e Agir. O resto é quase tudo propaganda barata. 

         - Não são só os bancos que roubam e pelos vistos à grande e à francesa, também os homens do gás que passaram a cobrar aquilo que antes era grátis – o adaptador das botijas. Para além de reduzirem o líquido de cada bilha. 

         - Ontem no metro, sentados á minha frente, estavam dois homens: um de uns quarenta anos, o outro na casa dos vinte e tal. A dada altura, o mais velho pôs-se a arranjar o toutiço que o mais novo exibia na cabeça, todo meiguices, trejeitos e sorrisos apaixonados. Depois, terminada a tarefa, ficaram seráficos, a mão apoiada na perna gorda do de mais idade, este de olhos melados fixos nos do parceiro. Em redor, os portugueses machões cuspiam ódio, mas nada diziam: apenas risinhos nervosos, olhares indignados. Eu só não me escangalhei a rir, por compaixão pelos meus patrícios. 

         - Ontem e hoje, madruguei. Pelas sete da matina já estava de roçadora em punho a cumprir o programa que me havia imposto. Deste modo, toda a grande superfície em frente da casa, ficou num estado de limpeza tal que se pode utilizar o chão para mesa de jantar. A par disto, plantei as ervas aromáticas, conclui as duas paredes da piscina, e ontem ainda dei um salto a Lisboa para almoçar (pró chic que ela fez questão de me oferecer) com a Alzira; sem que antes tivesse escrito uma página do romance que me saiu muito bem, quero dizer, encontrei o estratagema que permite qualquer coisa aconteça entre Ana e Ajustes. Se isto não é felicidade, o que é? 



domingo, maio 08, 2022

Domingo, 8.

O mundo parece estar suspenso da palavra do ditador que amanhã na praça de outros ditadores, vai botar discurso e exibir as fraquezas com que pretende destruir a Ucrânia. Em dois meses e meio de invasão, quando olho para o mapa do território invadido, sou levado a dizer que aquilo que o seu exército conquistou (apetece-me dizer pilhou) é muito pouco tendo em conta os meios de que dispõe. Mais: ele perdeu em toda a linha: diplomática, política, económica, social e pessoal. Pobre Putin! Já nem pode passear no seu barco (o maior do mundo), com pista para levantar e aterrar dois helicópteros, pela bacia mediterrânea. Só terá os saudosos comunistas a aplaudi-lo e ao armamento bélico que o homem exibe com a galhardia da fragilidade. 

         - O Público, o meu jornal!, dedica 10 páginas a falar de futebol, porque uma equipa do Norte ganhou não sei que campeonato! Triunfo que, à maneira dos povos atrasados e bárbaros, saldam a vitória com ataque a casal à facada – ela sobreviveu, ele morreu. Pela minha parte, vou reclamar metade do que paguei na compra de notícias e desgraças de que o povo português capitaliza em demérito. 

         - Este bonito final do artigo dominical de Fr. Bento Domingues. Referindo-se ao Papa João XXIII (seu ídolo) e ao Papa Francisco (seu alter-ego): “São pessoas que incarnam a misericórdia divina por todos os que se sentem perdidos nas periferias da desumanidade.”  

          - Dia  de muito trabalho. Comecei-o com uma ida ao mercado mensal do Pinhal Novo. Comprei malmequeres, alfazemas, ervas aromáticas. De volta a casa, regas e cozinha (pratos para arquivo) e depois do almoço, a dada altura da leitura, caí para o lado e mergulhei num sono divino. De seguida, sob calor atroz, comecei a escovar as paredes da piscina que intervalei com escrita e leituras. Talvez quando a soalheira amainar, vá limpar o fundo. Não quero abusar do consumo de energia e, por isso, conto abrir a época piscineira no próximo mês. Monsieur Xi Jinping ping ping não seja tão ganancioso! O almoço com os franceses ficou para as calendas. 


sábado, maio 07, 2022

Sábado, 7. 

De Stendhal que reformulo através da paixão que Eugénio Lisboa tem pelo escritor: “Il a fait comprendre aux nobles e aux riches que l´hypocrisie est le plus court chemin vers la considération.” Palavras que cabem em cheio nos dias de hoje.  

         - A covid cresce: 11 mil novos casos dia. Quando os políticos se entremetem nos conhecimentos médicos que aconselham prudência, o desastre chega em consequência. 

         - A nossa imprensa, bichanada sob interesses vários e indisfarçáveis, agarrando-se a uns quantos pecadilhos cometidos por Boris Johnson durante a pandemia, rejubila (vá-se-lá-saber porquê) com os votos que ele deixou de obter nas eleições regionais a acontecer no Reino Unido. As suas faltas não lavam os erros dos nossos puros políticos na mesma época e sob os mesmos impedimentos. Nem tudo na sua governação me encanta. Grosso modo porém, acho-o um político arrojado, diferente, expondo as suas fraquezas sem hipocrisia, defensor da liberdade, ao lado das grandes causas que por elas se bate com denodo. O que menos aprecio, é o seu plano para migrantes que requerem asilo, enxotando-os como mercadoria sem interesse para o Ruanda. Um pouco como fez a Austrália, com a ilha de Nauru, no Pacífico. Aliás, a história do país, deve a sua formação a este tipo de cadeia a céu aberto. Contudo, disto e do essencial, não falam a televisão e os jornais. 

          - Putin que pretendia reunir o império, eis senão quando, à vista de toda a gente, o divide. A trapalhada que vai pela Moldava é disso exemplo. Que acontecerá à Gagaúzia? E à Roménia? À Moldavia (que pertence à NATO)? À Transnístria? E neste contexto à Ucrânia para não falar do pseudo território na margem do mar Negro dito independente? Temos ali uma vasta rede de povos que, decerto, não vão assistir de bancada à perda de tudo o que conquistaram. Que falta de estratégia, senhor Vladimir Putin! Decidiu tudo sozinho ou foi mal aconselhado? 

         - Um dia encharcado de sol. Fui fazer pequenas compras ao mercado dos agricultores e regressei para entrar numa roda-viva de afazeres onde só faltou estímulo para o romance (escrevi meia página). Continuei a cortar a erva em frente à casa, sob calor insuportável da tarde. Nada que um duche não refizesse. Recusei o almoço de uma amiga, mas amanhã talvez aceite o dos franceses. Vai depender do avanço no livro.


quinta-feira, maio 05, 2022

Quinta, 5.

Ontem passei no Corte Inglês para comprar o jantar e de caminho trouxe meia dúzia de scones que a semana passada estavam a 55 cêntimos e agora a 70. Encontrei um amigo de longa data que ali fora abastecer-se de produtos alimentares e clamava, alto e bom som, da carestia da vida. Disse-lhe: “Tens razão. Mas diz-me: é melhor viver apertado financeiramente ou abandonar um povo que luta pela liberdade e dignidade ou sustentar uma guerra mundial?” Calou-se. 

         - O PCP indigna-se contra a foule nacional que o enfrenta, mas esquece-se da luta que alimentou contra os partidos da direita e do centro enquanto durou a “geringonça”. Tudo e todos que não eram por ele, acusava-os de fascistas, da extra-direita e quejandos.  Cá se fazem, cá se pagam. Em democracia, por cima das arruadas, impera a tolerância e o diálogo – ou devia. 

         - Telefonei à Annie e felicitá-la pelo seu aniversário. Surpreendeu-se. Ouço-a perguntar ao Robert: “Hederrrre diz que faço hoje anos, é verdade?” Robert vem ao meu ouvido e diz-me: “Aniversário! (depois de um silêncio) à sim, é verdade. Fazes hoje anos.” “Quantos?” quer saber a mulher. Robert não lhe dá resposta. Eu que ainda o escuto, digo-lhe: “Robert, esquece o dinheiro e compra um bolo para Annie.” Quelle tristesse perte la memoire et son identité! 

         - “Assim acabamos todos: o nosso nome numa praça, numa rua, num lugar, nem que seja no bairro das Telheiras. Não eu, claro: a minha condição de marginal, de ultramarino, de estrangeiro – protege-me. As oportunidades de consagração nunca se estendem até nós – os pestiférés!" Estas considerações de Eugénio Lisboa, moldadas no Diário (p. 105), levam-me a pensar que ele aspira a ficar nas paredes da cidade. Que ideia bizarra! Eu que descrevo em A Camisa de Linho (título provisório) uma cidade imaginária, dando nomes a ruas e avenidas dos meus amores e amigos. Consagro deste modo a nossa amizade na passagem por este mundo, embora, para se perceber o sentido da toponímia, terá que se conhecer o meu Diário completo. 

         - Justamente. A páginas 47 enfrento o obstáculo criado pelas divergências violentas entre Ana e Ajustes. Surgiram quando eu menos esperava e desejo transformar aquela animosidade em qualquer coisa de surpreendente, por exemplo, o súbito interesse amoroso da concupiscente Ana pelo seu explosivo vizinho. O antagonismo entre os dois é de tal modo inverosímil, que a minha cabeça não pára de efabular uma saída para que a união não seja tão acintosa. 


quarta-feira, maio 04, 2022

Quarta, 4.

A atiçada menina do BE que pelos vistos e apesar de o seu partido (eu disse partido? Bizarro!) ter ficado ao nível do outro do táxi, não se cala e insiste nas mesmas propostas que o povo rejeitou, mas desta feita em tempos de vacas magras. Assim como acho vergonhosa a atitude da direita, todos se estão barimbando (é Madame Juju que fala por mim) para o contexto actual. Eu não morro de amores por Costa, mas tenho dúvidas que alguém possa governar nesta altura melhor do que ele. São as circunstâncias que arrastam os factos. Como atravessamos uma época de incertezas, a filosofia pensada pelo primeiro-ministro, parece a melhor e a mais equilibrada. Quanto às razões absolutamente justificadas da pobreza, dos baixos salários e reformas, são recorrentes: estejamos a nadar em dinheiro ou a contá-lo, não passamos de miseráveis. O que me encanta acompanhar, é a viagem triunfal de António Costa com maioria absoluta e sem aqueles apêndices demagógicos que bloquearam quase sempre a sua acção. Agora ele tem de provar que é melhor sozinho e com dupla atitude: não deixar crescer a direita e afastar de vez a esquerda tranquiberneira. Não queria estar no seu lugar. 

         - Filipe, sempre atento, envia-me uma foto de Boris Johnson, onde leio estas palavras do primeiro-ministro do Reino Unido: “Os nossos filhos e netos dirão que os ucranianos ensinaram ao mundo que a força bruta nada vale contra a força moral de um povo livre.” 

         - E estas linhas que me deixaram revoltado: “Hélder estou novamente desempregado, a empresa alegou que ao fim de quatro meses “não me tinha adaptado”, e depois contratou um miúdo de 20 anos, como tinha o contrato a tempo incerto, mandaram-me para casa na hora.” Eu dirigi ao longo da minha vida profissional em diferentes situações para cima de uma centena de pessoas, nunca utilizei tais métodos. Não é uma questão de tempos modernos e de ganância empresarial, é um quesito moral e de respeito por cada ser humano independentemente de ser nosso trabalhador. No caso um excelente criativo. 


terça-feira, maio 03, 2022

Terça, 3. 

Pois é les beaux esprits se rencontrent. É o caso da manifestação no Primeiro de Maio, na Praça Vermelha, em Moscovo, em favor da “operação militar especial” contra a Ucrânia, lançada pelo fascista-tirano que governa há vinte anos a Rússia, levada acabo pelos comunistas (ou do que deles resta). É um contra-senso, uma derradeira tentativa de salvar as teorias que o marxismo não conseguiu instalar em lado de nenhum, defendendo alguém que é o contrário das ideologias que o fundamentam. Estar ao lado de um capitalista corrupto, que vive enclausurado num labirinto de betão e cimento, oprime o povo, mata quem o enfrenta, faz uma guerra idiota, vive cercado de um harém de oligarcas com imensas fortunas fora do país, nunca se preocupou com o nível de vida do seu povo, é cruel e desumano, bonifrate da tragédia humana como não se via desde Estaline e Hitler! Compreendemos melhor agora a razão pela qual os nossos comunistas agiram e agem no concernente ao apoio ao ditador, trancados no sofisma de estarem do lado da paz. Que falsidade! Que vergonha! Perderam as referências ideológicas, não têm a quem se agarrar, olham à sua volta e vêem desabar a solidez da mentira marxista, os resquícios do marxismo-leninismo que só foram instalados à força, humilhando os povos, transformando as suas vidas num cárcere hediondo. Não seria nada mau que os comunistas fizessem um brainstorming entre eles para sabermos como estão hoje,  volvido um século, as experiências cruéis do bolchevismo. Radicais, obscurecidos pelos dogmas de Marx e Engels, à deriva por não conseguirem implementar o céu na terra, só convencem as almas dos povos tristes e pobres, analfabetos e crentes no salvador que lhes promete o que nunca lhes dará: liberdade, educação, riqueza, paz e saúde. 

         - Claro que o pobre Zelensky é acusado de tudo e o mais, ele e Vitali Klitschko o bravo presidente da Câmara de Kiev. Eles e os companheiros que não eram políticos, não tinham a consciência manchada pelo conluio, pelas benesses, pela argumentação barata que os faz falar horas a fio sem dizer absolutamente nada, numa contradança sem par à altura. Esta plêiade de políticos feitos à força e pela força da guerra, surpreende e revolta essa turba de políticos de Moscovo a Pequim, dos Estados Unidos à Europa. São heróis, têm crença na democracia, na identidade, na independência, são apoiados pelo povo e pelos militares, são destemidos, enfrentam o autocrata de cabeça levantada e vão ganhar uma guerra para a qual não estavam preparados nem possuíam os meios bélicos que o invasor desbarata. 

         - Dito isto, uma palavra a favor de António Guterres. Entrou tarde ao comando da paz, mas saiu-se bem. Foi humilhado, passou vexame naquela mesa sinistra com seis metros, recebeu sobre a cabeça mísseis inesperados enquanto estava em Kiev, tive respeito pela sua humildade quando passeou pelas ruas da capital ucraniana. Graças à sua intervenção, foi possível criar as condições para que pelo menos uma centena de cativeiros de Azovstal tivessem alcançado a liberdade.  

         - Felizmente não deixei este oásis. Fiquei aqui o dia inteiro entregue aos mais diversos afazeres: revi dez páginas do romance, li vinte páginas do Rinpoche, trouxe para o terraço o lanceiro de mobiliário de Verão, avancei no livro de Eugénio Lisboa, li a excelente entrevista do meu querido amigo nonagenário Borges Coelho ao Diário de Notícias de ontem, anunciando a saída do sétimo volume da sua História de Portugal. Grande homem! Que saudades tenho eu dos nossos encontros frequentes! 


segunda-feira, maio 02, 2022

Segunda, 2 de Maio.

Ontem não parei. Depois da missa, fiz um prato para arquivar no congelador, li duas horas, fui de seguida roçar erva em frente da casa, e comecei a montar o terraço para o Verão, lixei a mesa e apliquei óleo de Linhaça, tudo isto sob calor com lampejos de Estio. Que bem se está no campo em dias assim! 

         - Falei de leituras. Pelo respeito e carinho que tenho pelos livros, antes de lhes pegar para as duas horas de leitura, lavo cuidadosamente as mãos. Detesto ver um livro manchado do suor ou sujidade. Os livros para mim são sagrados. Mesmo os escritos por small minds, small things

         - O mundo já está de pantanas e só faltava mais um vírus que ataca o fígado frágil das crianças e as leva à morte. Horror! Horror! 

         - Estou a ler o segundo volume de Aperto Libro de Eugénio Lisboa. A páginas 84 tropeço: “Continuo a não admirar o Saramago e não admiro por aí além o Lobo Antunes.” Digo in petto: “Já somos dois.” 

         - Acabo de chegar de Setúbal. Quando me dirigia ao carro, na praça de du Bocage, forte tempestade que varre o recinto e o deixa num pequeno lago. Em cerca de quinze minutos vi chover como há muitos invernos não via.