segunda-feira, maio 23, 2022

Segunda, 23.

Pouco trabalho no romance na última semana. A dispersão é inimiga deste género literário. É por isso que protelo, acumulo ideias, notas, disfarço, encho o tempo, digo que sou uma nulidade, desprezo-me e só então em desespero me atiro ao projecto. Depois entro noutra espécie de tortura, cozido de remorsos, a continua e obsessiva ideia de me entregar de alma e coração às personagens que me questionam a qualquer hora, em todos os locais, noites e dias, trocando-me as voltas e fazendo dos meus dias sucessivos tombos no inferno. Flaubert, já no século dezanove, vivia idênticos e tristes flagelos. Pudesse eu encher uma página por dia e não pediria mais nada à vida, à riqueza, à saúde – só solidão, solidão, bendita e amável solidão! 

         - Nestes últimos oito dias, medi a tensão para ver como se comporta este coração constantemente desnorteado e ensandecido por infinidade de preocupações. A sistólica andou entre 13, 1 e 13,7, a diastólica nos 6,4 e 7,5. Bravo! 

         - A Sexta Sinfonia de Beethoven que ouvi ontem no habitual programa de música clássica da ARTE, acompanhou-me ao longo da vida em momentos difíceis: na Rua do Salitre, S. Marçal e aqui. Socorro-me do compositor quando tudo desmorona e com ele me reergo sabendo que o tenho por perto em qualquer altura. 

         - Êxtase absoluto ante os jacarandás em flor no Rossio. Todos os anos encho o coração do seu tom arroxeado, da sua beleza magnífica e simples. A praça é um jardim suspenso de outros momentos vividos na adolescência, quando descia à pastelaria Suíça ao encontro da tia Dália e das suas amigas que ali tomam a cup of tea. 

         - Tenho de realçar o trabalho notável de dois jornalistas da SIC: Iryna Chev e Nuno Pereira. Tarefa difícil, ante as ruínas de cidades inteiras, vilas e aldeias, o sofrimento humano no limite da vida, a vida suspensa no fim do nada. Como conseguem eles travar as emoções, as dores contadas como se aquilo que narram lhes fosse indiferente e não consente sequer uma furtiva lágrima. É preciso ser-se muito profissional para resistir semanas no inferno e sair dele sem ser chamuscado. 

         - Boris Bondarev diplomata da delegação da Rússia na ONU apresentou a demissão, alegando que nunca teve tanta vergonha do seu país como no dia da invasão da Ucrânia. “Não posso simplesmente continuar a participar nesta ignomínia sangrenta, idiota e absolutamente inútil”. Bravo. Pensava que era só eu a achar idiota à guerra levada a cabo por Putin, fico satisfeito por o ter comigo, ilustre senhor Boris Bondarev. Se me permite um conselho: não regresse a Moscovo - comem-no vivo.

         - Há uma cómica psicóloga que escreve no Público dizendo que este é o mês da masturbação feminina. Vai daí lança o desafio às mulheres: “Vamos aproveitar este mês para nos dar prazer, já que ele está mesmo ao alcance das nossas mãos.” Seja como for, estas modernices, são galvanizadoras e atrevo-me a aconselhar também os homens feitos porque os rapazes já o fazem por todo o lado até nos wc públicos. Não sou de intrigas, juro!  

         - Comecei o dia a tratar do relvado à frente do salão. Comecei e acabei alagado de transpiração porque isto do novo “brinquedo” não é pêra doce. A propósito. Sábado comprei a uma velhota simpática no mercado do Pinhal Novo dois abacates com a forma de pêras e eu disse-lhe que usava o fruto nas saladas, resposta: “Pois. Os ricos misturam-nos nas saladas; os pobres comem-nos com açúcar.” Mais uma definição de classes.