terça-feira, maio 31, 2022

Terça, 31.

Ontem, passei um dia de verdadeiro papa-açorda. Arrastei-me sem sair de casa, molengão como aqueles africanos gordos ou aqueles sacerdotes cobertos de pais-nossos. Não fiz literalmente nada, levantando daqui para me sentar acolá, um livro entre as mãos que não ousava ler, um marasmo doentio a travar qualquer iniciativa, duas tentativas falhadas de entrar no romance. Não desejo ao meu pior inimigo. 

         - La nuit vient, noir pirate aux cieux d´or débarquant. Rimbaud.  

         - Há tantas formas de interpretar a actvidade do diarista, como os dias do ano. Ao contrário do vulgarmente admitido, um diário não é só instrumento de trabalho dos escritores, é também registo de um imenso número de pessoas que nada têm a ver com a escrita de ensaios, poesia ou romances. Lembro-me que há vinte anos fui aos Açores e encontrei na Fajã de Baixo da ilha de S. Jorge, um casal muito pobre que nos convidou a entrar no seu humilde lar, a mim, Annie e Robert. Era um espaço térreo, com apenas duas divisões, um quarto e a cozinha onde o quotidiano se desenrolava de porta aberta para a leira bem tratada. A mulher já de provecta idade, sempre sorridente, a dada altura sem que nenhum de nós se tivesse identificado, foi ao quarto e trouxe um caderno onde anotava o seu dia-a-dia. Annie olhou-me e eu retribui-lhe um olhar de maravilha, surpresa e espanto. Pedi-lhe que me emprestasse o manuscrito e prometi-lhe que lho devolveria por correio. Assim se fez juntado eu um exemplar de A Ruptura. Aqui em casa, não foi precisa uma hora para perceber que as folhas escritas numa caligrafia de principiante, narrando os dias onde verdadeiramente nada se passava, reverberados ad nauseam, falando da horta e do mau tempo, do filho ausente e das preces imploradas em horas de tempestade, depressa esgotaram a minha curiosidade e a vida inteira daquele casal solitário e pobre no fundo vulcão que os ameaçava em silêncio. No extremo, Julien Green: Un journal est une longue lettre que l´auteur s´écrit à lui même, et les plus étonnant de l´histoire est qu´il se donne à lui-même de ses propres nouvelles. Já Gide, no seu diário, mostra-se frio, seco de sentimentos, compondo a personagem que ele queria deixar para a posteridade. Dos autores alemães, dou muita importância ao diário de Klaus Mann e Ernst Junger, sem esquecer no plano inglês Virginia Wolf e katherine Mansfield (na forma de cartas ao marido). Nós, falo dos portugueses, não somos dados a um trabalho que exige persistência. Vejamos alguns. Torga é interessante, mas não fala dele, podendo dizer-se que não compõe propriamente um diário, antes um registo de factos, de acontecimentos. Vergílio Ferreira é uma máquina pensante, que transportou para o diário o discurso ensaísta onde deposita as suas obsessões. Marcello Mathias está ente Torga e Ferreira, com ligeiras entradas pessoais sem expressão que traduza o silêncio interior. Mais fascinante é José Régio, que contorna o mistério e o silêncio como elemento de dignificação do homem, prevenindo-nos (p, 67, Ed. Imprensa Nacional): “Sou, cada vez mais, um homem capaz de amar profundamente os homens, mas incapaz de os tratar sem franqueza rude e sem espírito crítico.” Ou ainda (p. 45, idem): “Estou cansado de fingir e de mentir, e sinto-me incapaz de me desmascarar..” E ultimamente conheci o trabalho neste domínio de Eugénio Lisboa que não ousa despir-se, mas é ferramenta de traumatismos, de ataques frontais, de língua solta, de alguém que põe os pontos nos ii – e nesse sentido muito curioso e marcando uma época. E tu pobre homem? Que pretendes tu com a lengalenga diária? Tudo até esconder-me atrás das palavras sem nunca aspirar a mais do que o silêncio – esse grande manto que nos desnuda incomplacente. Vanitas, vanitatum et omnia vanitas. 

         - Sob tempo  moche fui a Lisboa. Nas minhas deambulações, encontro algo que me sensibilizou de tal modo que tive de suster os sentimentos que afloraram num ápice à tona de mim, e não resisti a fotografar a pura poesia que se levanta do chão em glória da Ucrânia.