domingo, maio 22, 2022

Domingo, 22.

Cá estou conforme o prometido para falar da exposição Julião Sarmento – Abstracto, Branco, Tóxico e Volátil. Não me admiraria que tivesse sido o artista a fixar o título desta amostra, pois é sabido que o artista multifacetado, poucos meses antes de falecer, montou o decore dos espaços que acolheriam telas e esculturas, um filme e instalações. “Penso que não seria capaz de fazer o que fiz sem a memória da minha vida – dizia o pintor -, para acrescentar: na realidade vejo o meu trabalho como um amontoado de informações diferentes. Sempre foi assim. Aquilo que faço hoje em dia é parte daquilo que fiz ontem, do que fiz há 20 anos atrás e daquilo que virei a fazer amanhã.” É isso. A obra de Sarmento não é mais que uma espécie de diário onde os cruzamentos vivenciais, a troca de olhares, de cama, de corpos, acontecem no fervor de noites contaminadas pela obsessão da beleza e a sensualidade dos corpos abandonados ao desejo, à luxúria, à solidão. A mulher (a sua?) está sempre presente, contamina-nos com a delicadeza das suas formas onde parece ter morrido para a eternidade uma certa inocência, um certo mistério erótico, por vezes sexual, sem margem para complexas formas e fórmulas de expressão que o anseio não contém e a vivência não explica totalmente. Como se o artista não resistisse ao objecto amado sob pena de se anular enquanto ser humano e a arte, toda a arte, fosse uma inutilidade que não expressa a natureza humana ou dela não possui consciência. A significação e o significado de cada tela, de cada Polaroid, de cada frase, têm ali plena existência e levantam alto a bandeira da liberdade. Julião Sarmento não foi talhado para um país que não ama a cultura nem os seus obreiros, insignificante, complexado e cheio de preconceitos e olhares esquivos sobre tudo e todos os que se diferenciam e vivem, todavia, abertos à modernidade, indiferentes à ligeireza da argumentação religiosa-política que os cataloga com perversas linguagens, tratados como marginais, sem normas sociais nem pertença partidária. Sarmento encarou tudo isso e prosseguiu o seu luminoso caminho, criando composições e texturas que só conhecemos aos grandes pintores, aos foras-da-lei, aos que trouxeram à contemporaneidade um laivo de luz, uma revelação, um não sei quê de ímpar que fecha num sortilégio a obra admirável ali exposta. Tanto o atraía os pequenos nadas, como as montagens, a fotografia acrescentada da frase que esclarece o olhar desatento da memória, do visitante, nos trilhos do mundo desequilibrado que foi o seu, e que ele registou no diário intemporal  de cada tela, cada pequeno-nada, porque ao artista como ao escritor, o vislumbre da frase, da forma, da silhueta ou da sombra, é minuciosamente retido para  mais tarde incorporar a plasticidade da matéria, do texto ou da mancha misteriosa que amplia diante dos nossos olhos incrédulos e pasmados o acontecimento maior da arte. Julião Sarmento, à medida que foi envelhecendo, parece-me a mim que pôs de parte o abstracto para se concentrar no mistério, na ambivalência de que é exemplo as chamadas Pinturas Brancas. De algum modo, transferiu para o apreciador das sua extraordinária obra, a identificação que se esconde na complexidade das superfícies transparentes, no traço aberto como uma ferida, na simbologia da memória anotada com rasgos fortes sobre a tela abandonada à força criadora do artista ou simplesmente ao poema que ali aporta por via da frase que fecha a delicadeza do todo. Cada quadro intersere uma história, deixando contudo uma janela aberta para o mundo duo, onde os corpos são a essência que não cabe no espaço da tela. Eles estão lá, mas cabe a nós descobrir o que o artista não ousou dizer-nos, sendo certo que toda a sua grande produção tem no corpo feminino a expressão mais nobre, sublime, carnal e poética na tradição dos pintores franceses e ingleses entre as duas grandes guerras. A forma como Julião Sarmento soube traduzi-la, a originalidade, a liberdade e concepção artística, a par da cor e dos diferentes planos, do traço e das texturas, marcam o acontecimento maior na História da Arte Portuguesa. Aconselho vivamente aos meus leitores uma ida ao Museu Berardo.