quinta-feira, maio 12, 2022

Quinta, 12.

Indo eu a caminho de Setúbal e a Piedade a sair depois de deixar a casa num brilho, ofereci-me para a deixar na sua morada. Ela olha-me com ar estranho e eu pergunto-lhe o que há, resposta: “Vai assim nesse preparo?” O “preparo” era a camisa coçada, as calças rotas, os sapatos das velhas tontas nas tintas para o aspecto. “A sorte é que o senhor têm bom aspecto e por isso ninguém vai reparar como está vestido”, sentencia segura do que diz. Ai, boa Piedade, boa Piedade! 

         - Putin perde em todas as frentes e surpreende-me que a nomenclatura não o tenha já liquidado ou, pelo menos, substituído. A Finlândia acaba de praticamente aderir à NATO e a Suécia segue-lhe o exemplo. Moscovo protestou ameaçando com outra grande guerra, esquecendo-se que os dois países soberanos não fazem mais que lhe seguir o exemplo: Putin invade a Ucrânia por temer pela sua segurança; os nórdicos por recearem que a Rússia os subjugue.       

         - Ontem fui ao encontro da Maria de Lurdes a um restaurante nas traseiras do Teatro Nacional. Há muito que não nos víamos e falou-se até às três da tarde dos filhos o mais novo com problemas psicológicos graves. Gosto da sua coragem, de uma certa doçura que a vida não consegue destruir e os infortúnios são atirados para trás das costas. Não deve ser fácil e foi pelo que me contou o ex-marido, que fui ao rendez-vous. Ela esteve recentemente em Paris e para a Cidade Luz nos desviámos a dada altura. O hotel onde ficou, conheço-o bem porque já lá estive e por ele passo inúmeras vezes a caminho das minhas andanças por bouquinistes e livrarias. Saint-Michel é o centro para mim da capital francesa porque nele se ergue Notre Dame e os livros são tentáculos amigos que se estendem por todo o Quartie Latin. 

         - Hora e meia de trabalho no jardim nas traseiras da casa (frente para quem entra). A má erva tinha mais de um metro de altura, tornando o jardim enquanto tal inexistente. Com duas outras sessões, penso findar a tarefa. 

         - Contudo, é-me grato afirmar, a vida aqui é excelsa. Faltam-me palavras para narrar o mistério dos dias felizes, do clima afável, do recolhimento, da beleza que se expande, do ar rarefeito, do campo sereno, dos aromas, do brilho das laranjas, do renascer do sono de todos estes seres que se levantam da terra para me conceder a cintilação de ternura e felicidade, segredos que não se contam, mas vivem-se em completa união com a natureza soberana, nas horas calmas, no remanso das leituras, na escrita das palavras, uma a uma, sofridas ou folgazãs, sempre debruçadas sobre personagens inventadas que dentro destes muros tomam vida e se agigantam como verdadeiros heróis, com existência própria, exalações profundas, seres palpáveis que vieram do fundo do tempo imemorável, para ganhar corpo e consciência e respiração e atributos credíveis que só arte sabe gerar para ruminação eterna nas folhas do calendário da vida vindoira...