domingo, dezembro 20, 2015

Domingo, 20.
Ontem levei o carro porque ia à igreja de S. Domingos assistir ao concerto das 21,30. Bom. O que eu não imaginava, era a confusão que reinava por toda a cidade, acabando por abandonar o automóvel de perna alçada no Campo Pequeno. As voltas que se seguiram foram feitas de metro: ida ao Corte Inglês almoçar e fazer uma aquisição, ao Chiado encontrar-me com a Conceição, ao Massimo Dutti  comprar uns sapatos, ao comércio dos Restauradores ver como se faz o mercado de Natal e comer qualquer coisa antes do espectáculo. Por todo o lado, uma multidão de bichos de seda rastejando de rua em rua, atropelando-se e pasmando-se ante as decorações natalícias de um primarismo ridículo. Visto de fora, aquele povo parecia viver na mais suprema abastança, habitar uma capital do Norte da Europa endinheirada, equilibrado e cultíssimo, para quem a vida deve ser vivida de dentro para fora. Observando melhor porém, assistimos à presença da exuberância do faz-de-conta tão característico do português. Poucos ou nenhuns dos veraneantes, devem ter consciência do papel do mercado nas suas vidas, da influência daquelas mulheres e homenzitos que invadiram as televisões com um aceno piedoso de uma falsidade repugnante, propondo a caridade e lançando chamas solidárias de bem-fazer. Nivelados pelo chinelo que nelas é um sapato de salto alto e neles uns ténis à Ronaldo, o povo entra naquele divino jogo e fica sentado às manjedouras ensopado do saber patati patata noites inteiras. Despejados nas ruas como embaixadores de marcas que lhes conhecem as fraquezas, ei-los satisfeitos e felizes por um mês, alheados do seguinte que sabem ser de fome e trancas na porta porque o canalha do Passos Coelho lhes suprimiu o salário em favor da troika e das Lagardes deste mundo injusto. Entretanto, pergunta-se, que tem a ver com todo aquele espectáculo o nascimento de Jesus Cristo.

         - Eu não sei que imagem dou de mim. O que sei é que sou frequentes vezes desafiado na consciência cívica e honestidade que me habita. Deu-se o caso ontem, estando na gare de Campo Pequeno, apareceu um homem ainda jovem, de aspecto indiano, falando o português elementar, que me pediu ajuda para carregar o cartão onde havia a fotografia de uma mulher também dessa parte do mundo. Comecei por lhe dizer que não conhecia o sistema posto que não possuía aquele título de transporte. Mas ele respondeu-me que era “por trinta dias, só metro”. Dito isto, passa-me para as mãos uma maço de notas de vinte euros, o cartão a carregar e desaparece. Desenvencilhei-me bem, seguindo as instruções da máquina. Quando termino, olho em volta e não vejo o sujeito. Ao todo as viagens custaram trinta e cinco euros e uns cêntimos mais. Tenho, portanto, comigo não sei quantas notas azuis e um cartão de viagens para um mês. Procuro-o por todo o lado, vou de um lado ao outro da escadaria e nada. Penso: com a foto da mulher e o número do cartão, talvez seja fácil entrar em contacto com ela. Estou nisto, surpreendido e cheio de pressa, no hall da gare, quando o vejo aparecer jovial para receber o cartão e as notas. Não as conta e com um sorriso de orelha a orelha, desaparece. Bah!

         - Isto leva-me nas ondas da recordação à minha adolescência endiabrada. Eu explico-me. Sendo um rapaz bonito e apessoado, tinha sempre muita gente apaixonada que me rondava em círculos libidinosos estonteantes não obstante ser tranqueladanças, coitadinho. Discernia mais tarde, quando as paixões descaíam para uma amizade doce onde a cumplicidade imperava, que o que atraía tanto povo a mim, era o meu ar desamparado, meigo e sonhador, que “apetecia proteger e acariciar” como me diziam. Talvez. Contudo, também houve – e bastantes – amores que desprotegidos de si próprios, incapazes de se fazerem à vida no rebulício interior que sustem o brilho do perigo e trava a loucura do imprevisto, encontravam em mim a liberdade que se liberta por assim dizer das amarras do interdito e do que paralisa o singular que há em todo o ser humano. Havia em cada encontro, a certeza da sua realização em pleno e o afastamento do perigo de eu sacar a faca ou o revolver escondido na liga das meias... Dito isto ou à conta disto, conheci o que de melhor existia na paisagem humana, corpos de uma beleza perfeita, talhados em dias benditos, que vieram ao meu encontro mercê do mistério que não cessa de crescer em torno dos dias vadios plasmados nas horas desesperadas onde o amor espreita nas dobras dos afectos.  


         - O mundo artístico é uma jaula onde todos se devoram, sorridentes, uns aos outros. Outro dia, na Brasileira animada como quase nunca a vejo, apareceu meio mundo de pintores, jornalistas, escultores. O Mourato que não via há mais de um ano também se juntou ao grupo. Virou Brahms com aquela figura imponente, o cabelo branco penteado para trás da nuca, o ventre saliente, a língua afiada como uma naifa de capar vampiros. Sempre o conheci excessivo e destravado de impropérios. Indiferente a quem o escutava, ele e, de resto, todos os outros, graças a Deus, abriram o dicionário dos palavrões, e foi ver quem melhor compunha a frase brejeira que atingia o parceiro do lado. Todos se têm em grande referência. Antes deles não houve ninguém melhor e depois deles estatela-se a escuridão. Uns dizem que ganham bem a vida, que possuem milhares nos bancos, que vendem como pão quente. Mourato fez um calhamaço de um livro sobre Fernando Pessoa e puxou-me para o ir ver à Bertrand. Os outros não gostaram e quiseram travar-me o passo, mas Mourato diz-lhes alto e bom som: “Eu vou ali a um quarto fazer sexo com o Helder e não demoramos muito.” Risota geral, incluindo empregadas e empregados. Na livraria ele queria que eu comprasse o calhamaço por 40 euros, respondi-lhe que não tinha dinheiro para tudo e acrescentei: “a menos que pagues o quartinho.” Descemos o Chiado e no percurso foi despejando o saco - nenhum dos presentes no café escapou. É ou não verdade que eu sou superior a eles? É, Mourato, és o maior.