quarta-feira, dezembro 30, 2015

Quarta, 30.
Portugal é uma anedota. Pobre, iletrado, humilde, subserviente, ingénuo, sem espírito crítico, indo aonde vai o colectivo, rende-se a quem lhe surge ao caminho montado na impostura e na grandeza. O futebol é um maná porque o português não questiona aquilo que vive com paixão e porque o futebol não exige esforço mental e cada português julga-se um técnico na matéria. Vem isto a propósito dos contratos milionários entre os três principais clubes e as empresas de telecomunicações. No espaço de uma semana, circulam por aí qualquer coisa como 1.350 milhões de euros! De onde vem tanto dinheiro assim de repente para entregar ao futebol onde a corrupção e os oportunistas imperam? Ninguém quer saber. Aquilo é um outro planeta, com leis próprias e escravos de luxo às ordens. Numa altura em que até a Arábia Saudita impõe austeridade, entre nós é a fanfarra, a festa, a disputa entre gangsters pelo melhor e mais valioso negócio. Invejamos tudo do vizinho, menos a miséria.

         - À pergunta, contudo, respondo eu. O dinheiro vem do abuso das empresas de comunicações que cobram aos pobres mais do que as suas congéneres europeias levam aos ricos. O Robert diz-me quanto paga por um pacote abrangente de comunicações e não tem nada a ver com o que eu ouço dizer obtêm aqui. Mais: segundo ele um acordo é um acordo e ninguém se atreve a mudá-lo com preços de novo ano. O mesmo se passa com o escândalo das televisões. Por cá é uma selva. As Meo, as Vodafones e as Nós fazem autênticos assaltos à carteira do espectador. Ganham fortunas por infantilidades e ainda por cima sem coberturas capazes. Enganam todo o mundo e ninguém discute e o Estado finge ignorar a aldrabice. Preparem-se os adeptos do futebol para o que aí vem. Vão pagar com língua de fora o seu gosto por uma modalidade que é um verdadeiro atentado à sua pobreza e dignidade.

         - Bem faço eu. Não possuo senão os canais ditos generalistas e o satélite que a Meo tornou obsoleto. E digo-vos com toda a franqueza, não sinto precisão de mais. Quando vejo a imbecilidade de programas, as apresentadoras e apresentadores, a praga do futebol e dos seus agentes que mal soletram uma letra, os comentadores e analistas que debitam asneiras e banalidades de todos conhecidas, os actores chamados cómicos, mas que não me fazem rir, os noticiários verdadeiros atentados à inteligência, sinto que estou no bom caminho. Não totalmente, porém. Melhor estão a Conceição, o João, o Simão, o Ricardo e tantos outros que pura e simplesmente se recusam a ter em casa a caixa que dizem mudou o mundo... para pior. Eles são mais sábios do que eu, estão mais resguardados das agressões psicológicas e publicitárias, políticas e económicas. À parte o arcebispo que durante dez anos pregou e promoveu-se a si e às ideias do seu partido e amigalhaços, não sei de quem mais tivesse tido proveito directo. Sim. Claro. A classe dos ambiciosos políticos, que usam primeiro a televisão para construir a dimensão do boneco que depois aproveitam, transformando-o em primeiro-ministro, secretário de Estado, presidente da República e personagens mais liliputianas.

         - Mas a razia alienante agrupa em torno da televisão aquilo a que eles chamam o gosto popular. Agora, cá como por essa Europa fora, as vedetas são os chefes e a cozinha de autor. Toda a droga que entope artérias, leva ao corpo gorduras e açúcares, causa carcinomas e desarranjos físicos, enriquece as farmacêuticas, os supermercados, as multinacionais dos pratos confeccionados é oferecida como bijutaria fina. Aquilo sabe a tudo menos aos vegetais, peixe e carne que é suposto encontrarmos no prato. Ainda por cima, não podemos reclamar das doses anãs e dos preços proibitivos que não saciam a fome. Comprámos uma joia e não um prato de lentilhas.


         - Os amigos apareceram. Um deles tem o fascínio da fotografia e anda sempre por assim dizer a reboque da máquina fotográfica. Sendo a primeira vez que cá vinha a casa, andou por aí encantado com tudo o que via. Depois, tomando-me por modelo, fotografou-me em todas as divisões, incluindo a cozinha. Ensinou-me que eu próprio podia fazer o meu auto-retracto e logo pensei em Green que tinha esse hábito e deixou um álbum fotografias de si mesmo ao longo dos anos de que é testemunho o Album Pléiade. Eu fiquei-me por esta a ver se daqui a vinte primaveras encontro os traços deste homem aparentemente paisible sentado à sua mesa de trabalho.