Quarta, 16.
O serão de ontem, preenchi-o com o dvd
Jules Roy que trouxe de Paris. Conheço uma substancial parte da obra do
escritor pied-noir que desde cedo me
atraiu devido à frontalidade manifesta em todos os seus livros: romances,
diários, ensaios ou memórias. A grande entrevista pertence à série de programas
feitos por Bernard Pivot, Apostrophes.
O entrevistador, criou um modelo que assenta no envolvimento, na insinuação e
numa encenação que não difere muito de programa para programa, de autor para
autor. Normalmente, Pivot serve-se dos diários, das memórias e daí abre
horizontes para o trabalho criativo embora seja nítido que prefere o faits divers que constitui a base de
toda a conversa com o seu convidado. Traçado o percurso da infância numa
Argélia pobre mas feliz, o seminário por onde passou, depois o envolvimento em
torno da figura de Petain, piloto da R.A.F. em operações de bombardeamento na
Segunda Guerra Mundial, de seguida na Indochina, e por fim a guerra na Argélia
vai dar-lhe uma consciência moral e política que o tornará num fervoroso
anticolonialista. Por via das suas origens, ligar-se-á a Albert Camus por quem
tem uma admiração sem limites, não obstou porém ter acontecido entre os dois
escaramuças ideológicas terríveis. O autor de A Peste foi um filósofo do desespero onde a esperança se insinuava
e alguém que nunca percebeu porque razão os mais próximos se ligavam a
honrarias e a riquezas. A vanidade não cabia no seu mundo e, por isso, dela
fugia com audácia. Pelo contrário, o autor de Mémoires barbares procurou durante o seu longo período parisiense,
a efemeridade dos encontros que podiam trazer-lhe o proveito e a fama, tais
como reuniões literárias-mundanas levadas a cabo pela ricaça americana Florence
Jay-Gould, a obsessão pela entrada na Academia Francesa, uma certa fanfarrice
que cuidava ser apanágio do artista que cirandava por aqui por acolá, entre
iguais, decepções e panegíricos à mistura, todos os que contaram num século
cheio de cérebros de todos os quadrantes: Sartre, Malraux (il servait qui pouvait le servir, diz ele no livro de Memórias, pág.
591, Poche), Gallimard, Saint-Exupèry, Montherlant, Robert Kanters, Julien
Green, Jouhandeau, De Gaulle, Mitterrant e passo, e passo. Até que um dia, perfeitamente
por acaso, encontra Vézelay “terra de eleição” e Maria Madalena e a dois passos
da catedral, uma casa com jardim que adquire sem vacilar. Estive lá há três
anos e ainda não arranjei coragem para responder ao convite da direcção para nela
residir por tempo criativo que me foi proposto. Homem de fé, profundamente
ligado a Maria Madalena, todos os dias subia à igreja para orar ou simplesmente
falar com a pecadora que Jesus Cristo mais amou. Foi lá, naquele interior
sereno, convidativo à reflexão e ao silêncio, que escreveu o seu último livro: Lettre à Dieu. Um testemunho
impressionante de um homem que se aproxima do fim e naufraga na dor e no
espanto, entre a vida e a morte, não lhe restando fôlego senão para estas
derradeiras palavras: Ayer pitié, mon
Dieu, si vous existez, de ce vieil homme désemparé.
Eu tenho outro pedido a fazer a Deus:
Dai-me vida bastante para que possa reler estes livros e ler centenas de outros
que por aí me esperam.
- Ontem, por mero acaso, sintonizei a TVI. Encontrei no ecrã José
Sócrates e fiquei a ouvir a sua ladainha recitada em dó menor, num misto de mártir
e pecador arrependido. Não era, contudo, o mesmo ar fanfarrão de então, quando
se pavoneava por todo o lado de peito inchado, cheio da importância que os
patetas exibem para disfarçarem o que não possuem. Desliguei o aparelho cinco
minutos depois, quando comecei a sentir vómitos e a náusea tomava posse do meu
cérebro que repetia e repetia: “Mas em que mundo vive este tipo?”