terça-feira, outubro 30, 2018

Domingo, 1 de Julho.
Marília, João, Guilherme vieram cá almoçar a casa. Montei a mesa lá fora, debaixo do guarda-sol que na ocasião teve a função de guarda-chuva porque durante o consenso gastronómico choveu para gáudio do Corregedor adorador de dias pardacentos. Marília e João, pareciam o pai-natal a abarrotar de camarão, vinhos e doces. No final, despachámos mais de duas horas em ameno e divertido convívio, onde quase não se  abordou política, antes uma soma de temas uns mais pícaros que outros. Ficou, contudo, por analisar a questão de João Corregedor que é também a minha porque nela penso muitas vezes: que destino vai conhecer a democracia!

         - Pelas cinco da tarde, rumámos no carro do Guilherme que se parte ao meio para deixar entrar os passageiros que se instalam na rectaguarda, a Quinta do Anjo. Na adega Venâncio ocorria a vernissage de mais uma mostra da pintura de Sebastião Fortuna. Forma de falar. Porque o Mestre, obcecado como é, não desiste de atrair às suas exposições o Presidente da Câmara de forma a convencê-lo da utilidade em adquirir um monte abandonado em Cabanas para refazer o projecto que perdeu há muito para a mesma edilidade. Anda nisto há quase dez anos e não há ninguém que o convença que a câmara não está voltada para a cultura.  Evidentemente o Presidente não compareceu.   

         - Regressámos apressados a casa. Eu ignorava que João e Guilherme eram simpatizantes de futebol. Logo que nos instalámos no salão, percebi que os dois amigos tinham pela frente um resto de tarde sofredor. Portugal jogava contra o Uruguai. Eu para não fazer a desfeita aos meus convidados, vi intermitentemente a partida, sempre advogando o final da sarna que me obrigava coçar-me sem descanso. Tenho a impressão que foi a primeira vez na minha vida que presenciei um jogo de futebol mais de cinco minutos. Pelo que ia vendo, Portugal era inferior ao Uruguai. O “maior jogador do mundo” estava reduzido a um peão de brega, o resto da camarilha mal se aguentava nas canetas, aquilo metia dó. No final houve 2-1 a favor dos uruguaios. Uma injustiça, gritarão nas próximas semanas os comentadores, os portugueses, a imprensa e a televisão. E têm razão. A “selecção de todos nós” merecia ganhar. Com um ou mais seleccionador em casa de cada português, o Presidente da República arregimentando os sentimentos, não se percebe, é uma autêntica injustiça, não pode ser, é bárbaro, que os “nossos jogadores” tivessem deitado a perder tanto entusiasmo e conhecimento. Resta a consolação de cá em casa ter havido um empate: Marília eu contra João e Guilherme. Ufa! Aqueles pobre coitados, estafadinhos, coitadinhos, vão poder, enfim, partir para as ilhas Maurícias a gozar quatro anos de merecidas férias, enquanto nós descansamos de tanta overdose festivaleira. O Sporting que ocupe agora a cena. A minha previsão (terça-feira, 26) cumpriu-se.

         - José Manuel Tengarrinha faleceu anteontem. Tinha 87 anos. Fomos colegas nos jornais e na Latina. Era um homem discreto, apaixonado ma non troppo, militante de esquerda, elegante e perturbadoramente snob que contradizia o seu estatuto político. Comigo foi sempre impecável.

         - Folgo com a eleição de António Vitorino para a direcção das Nações Unidas para as Migrações (IMO). É o homem ideal para ocupar o cargo nesta altura, tendo em conta as relações de Trump com o resto do mundo dos aflitos. Ainda porque ele destronou, pela primeira vez, os Estados Unidos do cargo.
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Segunda, 2.
Às vezes dá-me para remexer aqui e acolá, gavetas e estantes, armários e pilhas de papel que estão por todo o lado. Esta tarde, na biblioteca de cima, procurando uma citação, esbarrei na obra de Hector Bianciotti que me recordo ter lido, perdão, devorado com ardor. Todavia, tendo debaixo dos olhos o título Le Pas si Lent de l´amour questionei-me se o havia lido ou não. Folheando-o, observei que ele foi assaz sublinhado e anotado – prova que os meus olhos e a minha mente tinham-se cruzado com o autor. Ainda há quem ache que um livro enriquecido com marca do leitor, é um livro sem valor! Só os vendedores de papel ao quilo podem pensar deste modo!

         - De igual modo, outro dia arrumando uma gaveta, deparei com uma quantidade de coisas do meu tempo de Coimbra: fotos, uma pasta com as fitas amarelas da Faculdade de Medicina e respectivos poemas autografados pelos meus camaradas, o símbolo da cidade que era usual pregar na capa, um pequeno livro de poemas fotocopiado como então se fazia a stencil com dedicatória, recortes de jornal onde eu sou citado e fotografado... De igual modo, encontro duas séries de postais ainda em muito bom estado, que contam a história de Mao Tsetoung, que julgo comprei na Maspero, no Bairro Latino, quando jovem ali estive, e ofereci ao João Corregedor que se regalou com a oferta. Dei, igualmente, com dois pequenos livros de capas vermelhas como convém, do ditador chinês (que não obsequiei o João): La Grande Revolution Culturelle Proletarienne e Citations du President Mao Tse-Toung, rotulados por “documents importants”, editados em Pequim, em 1970. 

         - Sou por temperamento alguém que sofre por antecipação. Uma parvoeira, eu sei. As provas vivo-as eu a cada passo. Nestes últimos dias andei preocupadíssimo com a ameaça que o nosso Governo me fez na forma de uma carta registada. Sempre que recebo qualquer correspondência de organismos do Estado ou autárquicos, arrefeço. Penso: “lá vem uma sacanice na forma de uma coima ou centenas de euros para pagar”. Porque este esquema de privar com o cidadão, que hoje se pensa ser democrático, aprendeu e tem a sua génese na conduta fascista que tanto pavor causava ao cidadão de então. Ante o caso, quase sempre sem importância ou pelo menos sem a importância que me deu para sofrer, peço a Deus protecção. No fundo rogo ao Criador que desmanche o que fez. Porque todos nós somos o que Deus fez de nós e muitas vezes o que somos não temos capacidade para carregar. Daí pedir-Lhe que altere a raiz ou natureza do que sou, esta fragilidade patológica que tanto me inquieta.

         - A verdade é esta: este executivo como todos os anteriores, no que pensa é em arruinar o cidadão. Este como os precedentes nunca se interessou em formar, educar, informar e prevenir. Daí muitas leis serem feitas no segredo dos gabinetes e Assembleia da República, e quase sempre n´importe comment. Mesmo aquelas leis que são publicitadas, trazem à nascença logo agarradas multas, condenações, expropriações, penhoras. Na base está a fascizante desconfiança no cidadão. Salazar continua a andar por aí.
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Terça, 3.
Uma grande editora que eu julgava morta e enterrada, escreveu-me interessada em ler O Pesadelo dos Dias Felizes mas... em papel. Há anos que não fazia cópia de nenhum original, porque os despachava por PDF. Fui, pois, hoje depois do almoço no Príncipe com o Carlos e tutti quanti, imprimir as 300 páginas numa pequena loja perto do Cais do Sodré que ele conhecia. De regresso a casa li o primeiro capitulo e, surpresa!, não detectei nenhuma gralha ou erro gramatical. Pelo contrário acho aquele início... (suspende, não fales do que achas, deixa ao leitor ser ele a dizer-te o que achou).

         - Fui ao Chiado encontrar-me com os do costume. Fui de comboio do Pinhal Novo ao Barreiro onde tomei o barco e desci no Terreiro do Paço. Durante todo o percurso até aos barcos, um homem baixo e calvo, esteve ao telefone. Quem era? Um actor do teatro de Setúbal com responsabilidades de ordem vária. A conversa era com um actor a quem a companhia tinha pago o salário com uma letra descontada directamente no banco. Seguiu-se um longo monólogo explicativo, denotando o pouco agrado do interlocutor e também daquele que escutávamos pondo, preto no branco, que aquele modo de pagamento era excepcional. Preveniu-o que tinha de se habituar à vida atribulada de um actor onde o dinheiro falta sempre. O diálogo prosseguiu e a ele chegaram informações que dizem como até no teatro o malabarismo financeiro e os estados de alma são muitos. Soube que os subsídios para o teatro foram fortemente reduzidos no Porto e em Lisboa, mas que em Setúbal “eles ainda não tiveram o arrojo de tocar”; falou da censura contra personas non gratas que a Câmara impunha para continuar a ajudar a companhia e outras misérias que se assemelham em tudo com o ambiente vivido no Estado Novo.
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Quarta, 4.
Enquanto os nossos inteligentes e bárbaros políticos discutem do destino dos imigrantes, estes vão sendo sepultados no mar. Só desde sexta-feira morreram no Mediterrâneo mais de 200 pessoas. É aterrador pensar como a vida humana não têm valor absolutamente nenhum. Regressámos a um tempo de antes da vinda de Jesus Cristo, quando a vida humana não tinha dignificação alguma. O mundo afunda-se nas trevas de novo.

         - O coveiro de tantos trabalhadores e empresas, especialista em despedir e salvar firmas, carregando no botão da insensibilidade que permite olhar para tudo disposto em cifrões e números, actualmente a dirigir a Caixa Geral de Depósitos, a mesma que serviu de corrupção nos mandatos de tantos administradores, que a levaram à falência não fosse ela pública, e cujos devedores o actual presidente encobre do conhecimento dos portugueses que a estão a pagar com os seus impostos, para além de serem todos seus funcionários quando as dependências os fazem esperar hora e meia para ser atendidos e mesmo assim sem resposta cabal, como foi o meu caso há dias. Esta má criação, este desinteresse pelos utentes, pelo seu precioso tempo, é a marca de um homem obsessivo que dispensa a moral e o respeito devido aos clientes para atingir objectivos que nada têm a ver com a conveniência das populações.
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Sexta, 6.
O Planeta, o nosso querido e amado Planeta, dá para todos os desgostos e tormentos, suporta todas as mentiras e arrogâncias, sofre por destinado todas as loucuras humanas e encolhe-se ante o cinismo e a hipocrisia da Indústria e do Comércio, da avidez do consumo e da loucura do lucro. Que seria do Planeta sem Barack Obama que o defende com unhas e dentes, palestrando a meio milhão de euros à hora! Milhão por milhão, acabo por preferir Cristiano Ronaldo que esse ao menos é mais verdadeiro.

         - Eu sei, eu sei. Este blogue que ninguém lê (à parte os 41 mil leitores), acaba por me barrar a passagem ao mundo dos candidatos ao Prémio Nobel. Mas aqui estarei, íntegro, sem chafurdar na literatura que hoje alimenta todos os delírios e vaidades, mas que não passa de um lodaçal de coisa nenhuma. Ser livre é aceitar a condição de presidiário, sem as correntes que permitem voar nas asas da liberdade criadora com a voz que nos distingue dos demais.
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Sábado, 7.
Há quinze dias que 13 jovens tailandeses permanecem numa gruta atulhada de água e impossibilitados de sair. O alerta foi dado ao fim de uns dias sem notícias dos rapazes que tinham partido com um guia budista de 25 anos a explorar uma montanha rochosa no Norte do país. Gerou-se, entretanto, uma onda de solidariedade a nível mundial e técnicos da área e outros, acorreram para salvar os jovens. É uma corrida contra o tempo, dado que se esperam chuvas diluvianas das monções presentes nesta altura do ano e, também, porque o oxigénio está a baixar aflitivamente. O grupo tem entre 12 e dezasseis anos e, embora estivesse há uma semana sem comer – apenas bebiam água que corrida das rochas -, aparentam bem-estar e até esboçam um sorriso terno. A parafernália de equipamentos é tanta que impressiona. Os cientistas estudam, ensaiam, forçam, mas para acudir aos infelizes têm de percorrer seis quilómetros debaixo da terra para lá e outros tantos de regresso à superfície Um dia inteiro de viagem! Um mais afoito, morreu anteontem com falta de oxigénio. Deu a vida pelos adolescentes tal como Jesus Cristo a deu por todos nós. O mundo, contrariamente ao que eu tenho tendência em afirmar, não está tão mau e decadente como o quotidiano das nossas vidas nos faz supor. Quando menos se espera, abre-se uma ilha de luz do interior dos negrumes.
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Terça, 10.
Pequeno frisson com o João ontem ao almoço no Adega da Mó, onde nos reunimos Carlos, Paulo Santos, eu e ele. Corregedor anda - como eu e talvez mais uns quantos -, preocupado com o destino da democracia. Mas para o nosso deputado, o que o inquieta é a política, enquanto a mim são os políticos. Aqui divergimos. Para mim a política não é uma abstracção, nem tão-pouco o sujeito que omite o alvo. A política não existe sem os cidadãos e devia ser feita para eles e não o alçapão onde os políticos se escondem para traficar influências, praticar corrupção, trabalharem para os partidos e, bem lá no fundo das suas preocupações, pensarem nos povos. As ditaduras de direita ou de esquerda, surgem das carambolas dos políticos e não da passividade e quase sempre ignorância da plebe. Swift dizia que podemos adivinhar o que Deus pensa da política, bastando olhar para as caras dos políticos. São, com efeito, todas muito feias.  

         - Um amigo explicava-me há dias que os hostels que proliferam por todo o lado, têm uma dupla utilização: de tarde as camas acodem aos aflitos em queca urgente, à noite aos turistas para deitarem a cabeça. Para ambos os casos, passa para cá 40 euros. Percebe-se. Os colchões têm uma vida efémera.

         - Entreguei na editora o manuscrito de O Pesadelo dos Dias Felizes em papel para apreciação. Por outro lado, ousei contactar a Quetzal para o mesmo efeito. Digo “ousei” porque ando a hesitar há ano e meio.
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Quarta, 11.
Os últimos rapazes e o seu instrutor que estiveram retidos na gruta de Chiang Rai 17 dias, foram ontem resgatados sãos e salvos. O Planeta acompanhou a par e passo toda a engenharia que permitiu um tal milagre, assim como a angústia, a generosidade e a técnica dos que acorreram gratuitamente de todo o mundo. Se o feito me surpreende, mais admiro a contenção informativa, a protecção dos jovens, a sensibilidade dos dirigentes que não permitiram o espectáculo caro aos jornalistas. Os rapazes ficam de quarentena antes de regressarem ao carinho dos familiares.

         - Comprei no Corte Inglês o romance de Saul Bellow, As Aventuras de Augie March. Num dos andares, encontrei um rapaz-escravo, que a pretexto de ser estagiário por três meses, não só trabalha à borda, como não lhe dão ajuda para transportes e refeições. Já aqui me referi, revoltado, a situações como esta, no tempo do PSD no governo.  Agora está lá o PS. Se julgam que há políticas (o João Corregedor diz como Sartre que a política está em tudo) diferentes entre um partido e outro, tire daí o sentido. O que há é leis ou seja políticas.  

         - Não conheço a obra de Saul Bellow. Se assim me exprimo, não é porque desconheça o autor, mas o que dele li foi muito pouco. O livro que tenho em leitura neste momento (Cartas e Recordações), através de um pequeno texto ( p. 129, Quetzal), deu-me numas quantas linhas a força do romancista. O grande escritor, revela-se às vezes numa frase. Por exemplo, esta saída do romance acima citado que irei ler com interesse antecipado: “E fazemos isto tudo sozinhos. Onde é que está toda a gente? Dentro do nosso peito e da nossa pele, o elenco inteiro.”

         - Eu bem me esforcei, mas cheguei à conclusão que o esforço era vão. Falo do matagal que tomou por inteiro a quinta. Andou, sábado, aí um homem a gradar a terra. No final, não tendo gostado do trabalho, pediu-me menos 30 euros em relação ao preço combinado. Foi o primeiro Caramelo honesto que conheci em quase 40 anos de vida aqui. Hoje anda aí o Brejnev: recolha do resto da lenha, rachar os troncos maiores, organizar o local para a proteger do inverno.

         - O calor aperta, mas é ainda suave deixando na pele o prazer da sua sensualidade. Todavia, quem me quiser encontrar, pode-me procurar às sete da manhã regando o jardim e as árvores.

         - Às vezes penso que perco imensa gente boa e culta que me procura para “amigo” numa ou outra rede social. Nestes últimos dias, dois professores universitários, um dirigente do PSD... Curioso como sou, tento saber mais e logo esbarro na patetice destes encontros onde vejo alguém que conheço de ginjeira a procurar companhia virtual que o prestigie. Ocorre-me o ditado: diz-me com quem andas... Recolho à toca e roo a minha cenoura como bicho estimado que sou.     
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Quinta, 12.
País sui generis o nosso! Está tudo a rebentar pelas costuras, mas o Mágico envolto num sorriso maléfico, diz-nos que somos os melhores da Europa, com PIBs, desemprego, aumentos salariais e das reformas, modernidade e avanços tecnológicos de muita ordem como não sei há quantos anos acontecia. É uma visão socialista, mas podia ser social democrática ou de direita, para o caso vem ao mesmo. As greves multiplicam-se e até os juízes se juntam a elas, mas não se passa nada; os comboios estão podres, mas continuam a circular; os médicos renunciam aso seus postos nos hospitais, mas o ministro diz que é normal; espera-se anos por uma operação, mas os doentes não estão a morrer; os exames estão aos soluços, mas os alunos vão passar por inteligentes e cultos...

         - Neste país maravilhoso, até aquele que se governou em cheio chegando a Presidente da Comissão Europeia, com o seu sorriso macaco exposto em todas as circunstâncias, chegado do limbo que o reteve por algum tempo à espera que a antiga memória se apagasse, recomeça a pouco e pouco como um fantasma vindo do Hades tenebroso, a emitir pareceres que o povo atónito não imaginava mais escutar. Não tarda está Presidente da República. Se sua excelência me permite um alvitre: atalhe caminho e arranje um programa televisivo, é mais fácil e ainda por cima enriquece-o um pouco mais. Porque anafado já está como o vi nos ecrãs. E até lhe fica bem assim parecido com aqueles valentes homens do Norte, amantes do bom vinho e das carnes barrosãs.
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Sexta, 12.
Protestar faz bem. Eu sou um grande protestante e nunca me arrependo. Muitas vezes dá trabalho, obriga a abrir frentes de confronto, é preciso recalcitrar, não desistir. Outro dia, nestas páginas, barafustei contra o meu sono de outrora que parecia querer abandonar-me. Pois bem. Desde então e já lá vai um mês, reencontrei o meu velho e saudoso sono da adolescência. De uma rajada, durmo sete horas seguidas.

         - Faleceu a actriz Laura Soveral. Fui dar uma palavra de conforto ao Mário seu filho. Fomos vizinhos anos a fio e sempre senti muita amizade por eles. O Mário que enche páginas do meu Diário de anos para trás foi, é, um terno amigo que não esqueço. A mãe doou o corpo à ciência.

         - O grande Mário que é leitor regular deste Diário, dizia-me hoje no Príncipe: “Tu és um sábio.” Bom. Uns dizem que eu sou “especial”, agora veio esta que sou “sábio”! Acautela-te, rapaz. Não tarda santificam-te.
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Sábado, 14.
Deambulando um pouco pelo meu antigo bairro, o que encontro é a pacatez de um tempo passado morto e enterrado. Por todo o lado, florescem os restaurantes, os famosos hostels, um desassossego enervante, uma vida falsificada. Os bares famosos de então, onde a vida marginal era uma festa, substituíram os nomes, foram decorados à maneira dos irmãos de Palma de Maiorca, toda a zona é um estaleiro a céu aberto. Inclusivamente na casa onde viveu José Maria Caetano e Laura Soveral com os filhos, os actuais proprietários, transformaram-na num cofre forte com a porta e as janelas chapeadas a aço. A Travessa do Jasmim morreu há uns anos quando a actriz a deixou para ir terminar os seus dias na Casa do Artista. Um horror! Que o actual Presidente da Câmara, de beiço decaído de admiração e subserviência a tudo quanto cheire a dinheiro, permite.

         - É sempre um delírio o encontro de Donald Trump com os seus parceiros da Europa. O homem é um negociante e não está ali para perder tempo com ideologias, palmadinhas nas costas e sorrisos macacos. Aquela personalidade de construtor civil, os iluminados da União Europeia, habituados a ronceira temática onde ninguém desafina, desconcerta-os, deixa-os a olhar uns para os outros, mudos. Antes estavam sempre de joelhos diante dos americanos, só eles eram iluminados, poderosos, agora sentem-se órfãos do seu apoio incondicional. Replicam de uma forma pelintra invocando apoios à América em situações de crise. Seja como for, o Presidente dos Estados Unidos, tem razão. De facto, andam todos a servirem-se do escudo americano à borla.

         - A Presidente da Croácia pagou do seu bolso a viagem à Rússia, a entrada no estádio, o alojamento na capital do Campeonato Mundial de Futebol. Comparando com os nossos sovinas políticos – ministros, secretários de Estado, deputados - que aproveitam todas as benesses que o poder lhes concede e ainda deitam mão aos corruptos gestores das grandes empresas, a Senhora faz figura de extraterrestre e qualquer dia é presa por... honesta.  

         - No Japão grandes tempestades mataram 200 pessoas. A capital ficou irreconhecível.
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Domingo, 15.
Outro dia a SIC apresentou um programa que certificou como somos bananas às mãos dos poderosos da EDP hoje eléctrica chinesa. O poder político rendeu-se ao capitalismo selvagem, e não só se subordinou como se divorciou de controlar os seus actos déspotas sobre cada um de nós, deixando-nos à mercê das sacanagens co-realizadas com os governos do CDS-PSD e PS. Exemplo disso, o preço que pagamos pela energia. O seu custo, consertado sob um esquema deliberadamente confuso, complexo, com uma série infinda de taxas, saídas do manicómio financeiro onde ninguém se entende, faz com que os portugueses paguem a electricidade a um preço incompatível com o seu nível de vida bastante baixo. Há, contudo, muita gente a enriquecer à sua custa: gestores, ministros, altos responsáveis políticos, e ainda os parasitas que se calam para não denunciar os roubos infligidos há anos aos consumidores.

         - A semana que findou não existiu. Foi erradicada do mapa dos dias, por ter deixado de lado o profícuo trabalhado no romance.
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Segunda, 16.
Ouço que quem ganhou o Campeonato Mundial de Futebol foi a França. Que pena! Os franceses são demasiado arrogantes e convencidos para meu gosto. Quem devia ter conquistado a coisa, era a Croácia.

         - Em Israel a vida vai de mal a pior. Netanyahu estica a corda e pretende até instalar comunidades, perdão, guetos exclusivamente de judeus no país. Quer dizer: uma só nacionalidade ou etnia. O Presidente, Reuven Rivlin,  está contra, mas quem decide é o Knesset que ainda por cima não se rege por nenhuma Constituição. No fundo do que se trata é de impor e fortalecer aquilo a que ele chama o carácter judaico, porque diz que “há um desequilíbrio entre os direitos individuais e os direitos nacionais”. Por outras palavras, só terá direito a viver em Israel quem for judeu. Imagina-se o que um fundamento destes vai trazer ao reconhecimento dos judeus no mundo. Não tarda, outros países, correm com eles baseados nos mesmos princípios. O Primeiro-Ministro abre assim a caixa de Pandora de inimagináveis consequências.

         - Trump, sempre ele. Depois de ter baralhado completamente o protocolo real e desestabilizado o Executivo, aconselhou a senhora Theresa May a processar a União Europeia a propósito do Brexit. O homem é, de facto, original.

         - As cartas de Saul Bellow, sendo curiosas, não carregam a importância de outras missivas. Estou a lembrar-me das quase 2000 cartas de Yourcenar (2 volumes), Maritan, Julien Green, a correspondência de Marthe Bibesco com o padre Mugnier (3 volumes), François Mauriac e até Frederico Nietzsche. Estas levam em cada página a natureza profunda do seu remetente, transmitem-nos a sua visão do mundo nos mais variados ângulos, embrulham-nos no modo concreto do quotidiano artístico de cada um, mas pelo lado íntimo, secreto, profundo. Aquelas são escritas à vol d´oiseau, na urgência de uma vida sem espaço para esmiuçar o que persentimos nela, traduzem o momento, a preocupação, mas não aprofundam o conteúdo. Dito isto, estou inclinado a chamar a Bellow meu primo, pelo muito de comum que temos. Vou ler com toda a atenção o volumoso romance As Aventuras de Augie March.

         - Há dias, enquanto esperava pelo comboio que me levasse a Lisboa, comecei a fantasiar e de repente senti qualquer coisa a reagir no meu corpo. Por decência, mudei a mochila das costas para a frente. “A ton âge já devias ter juízo”, murmurei.
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Terça, 17.
Eu devo ser o único português que tem a sorte de não perceber nada de futebol. Mas sofro as suas consequências, pago para o sustentar e tenho de o gramar. Entopem-me os ouvidos com o seu português de sapatilha, embrutecem-me quando ouço a gente que dele vive a falar aquele português de chinelo, o urrar de fanáticos impondo uma moral de relvado, exibem a mediocridade como um valor, a violência, a corrupção, os comportamentos de sargeta. E não me canso de avisar que um dia vamos pagar muito caro esta devoção, que digo eu, esta dependência a um planeta que não tem regras nem olha a meios para atingir os fins. A inteligência, a sensibilidade e a cultura dos portugueses fugiu toda para o futebol. O saldo da festa foi impressionante: dois mortos, crianças feridas, dezenas de outros festivaleiros levados para o hospital, lojas dos Campos Elísios saqueadas. O costume. Nem tanto assim. Na Rússia onde o pagode é controlado como deve ser, durante o mês que durou a choldra, não houve uma única insubordinação, morte ou ferido. Благодарю, Senhor Putine!

         - Falando da sarna. A mim quer-me parecer que a ida do “maior jogador do mundo” para Itália, vai ser a morte do ídolo. Há qualquer coisa de trágico naquela contratação, um ambiente de fim de festa, com o drama a aflorar na ambição que quer agarrar os derradeiros foguetes que se perdem no ar.
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Quinta, 19.
Ontem desci o Chiado com a Teresa Magalhães e o João Corregedor. Antes, na Brasileira, conversa intercalada com dose homeopática de política. Mais uma vez não estive de acordo com o nosso amigo e não me encolho de discordar e argumentar, apesar da dificuldade em o fazer parar de contender. Falou-se das célebres taxas da eléctrica chinesa. Todos andam a sugar na “vaca leiteira” como lhe chamou o que é suspeito de ganhar de dois senhores fortunas fabulosas quando esteve no governo Sócrates. O que não nos dizem com suficiente sonoridade, é que o principal larápio ou salteador, é o Estado. Aqui como por todo o lado, com particular avidez no IMI.

         - Um sonho estranho. Por duas vezes acordei murmurando: “É à miséria que retornámos.” Parecia o título de um livro que eu escrevia enquanto dormia. À segunda vez que soletrei a frase, anotei-a no bloco que tenho à cabeceira. De seguida mergulhei num sono profundo para acordar às sete da manhã.

         - Morreu o meu saudoso amigo Fernando Fernandes. A ele devo todos os trabalhos de carpintaria, soalhos, tratamento da madeira. Era um grande artista que, apesar do seu problema de saúde grave, fez um trabalho notável que perdura sem um desajuste após vinte anos e causa admiração a todos quantos aqui vêm. Que ano este! Tantas ausências luminosas nesta terra húmida da ganância e da efemeridade de tudo o que aqui se ergue. Há três dias também nos deixou João Semedo, outro homem honrado que nos abriu caminho com lucidez e um sorriso reservado no assomo encantador da sua existência.

         - Ontem, na fnac do Chiado, reuniram-se três ex-jornalistas. Forma de falar. Em verdade quem molhou o bico naquela loucura de trabalho, jamais deixa de o ser. Conversa franca e solta, sobre uma actividade que alguns apontam como estando a expirar. X do semanário Expresso por quem se tem logo uma empatia que não apetece desgrudar, estava de acordo comigo quando referi o muito que detesto no jornalismo dos nossos dias. Discordámos quanto a uma personagem de Aveiro que ele acha muito inteligente e o João diz que apesar de direita “nos obriga a pensar”, mas que a mim não me engana no furor da palavra vadia que costuma exibir.

         - Acho que se calhar tem mais sentido ser (-se) honesto, defender interesses de transparência e de integridade que às vezes não têm a ver com ser (-se) de esquerda ou direita. Há gente de esquerda que não tem princípios de integridade e transparência e há gente de direita que tem.” Maria José Morgado ao Público. Assino por baixo.   
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Sábado, 21.
Ontem estando à conversa com os ininterruptos na Brasileira, entrou o Manuel Augusto, funcionário para a cultura na Câmara de Setúbal, com uma excelente novidade: a edilidade decidiu atribuir a Vergílio Domingues a medalha da cidade. Pedi-lhe que desse imediatamente a notícia ao visado. À noite telefonei ao Vergílio a felicitá-lo. Longa conversa, encontrando-o eu praticamente restabelecido dos males por que passou.

          - Um pouco mais tarde, no Príncipe, longa e interessante conversa com o grande Mário. O início, contudo, desastroso devido a um colega seu que eu não conhecia e almoçava com ele. Seguiu-se uma discussão sobre leis e Direito com o nosso desconhecido causídico. Os meus leitores sabem o que penso dos advogados e das leis nacionais. Bom. A dada altura o simpático homem, atira:  “Não queira saber mais de Direito que eu que sou advogado.” Esta parábola à monsieur de La Palice é típica de um género para o qual não tenho nem quero ter resposta, porque a convicção encerra em si tudo o que eu poderia adiantar. Lembra-me o outro: “Nunca me engano e raramente tenho dúvidas.”  De facto, os advogados estão formatados para o precipício das certezas e conseguem esta coisa milagrosa: transformam assassinos e corruptos em homens imaculados e honrados. Pena que só consigam o milagre com os ricos...
        
         Mas falemos do maravilhoso Mário e da tarde que se prolongou muito para lá do horário de fecho do restaurante. Estivemos à conversa até à meia tarde, as portas do estabelecimento fechadas, os empregados apressados à nossa roda, rumo aos seus destinos de férias, a tertúlia encerrada por um mês. Falámos de livros, de pessoas do nosso convívio, de cenas canalhas, de coisas felizes e infelizes, conversa que se pode ter com ele, porque o Mário compreende, escuta e rebate sempre com um sorriso acolhedor, na base da qual está decerto os seus anos de seminário. Anda a ler Paul Auster. Eu torci o nariz e logo ele quis saber a razão. Expliquei, ele compreendeu. Depois perguntou-me que autores (americanos de preferência) lhe podia eu aconselhar. Falei de vários, e ele, moderno, pesquisava no smartphone, assinalando com uma cruz os títulos. Não percebi e não quis perguntar a razão por escritores norte-americanos. Percebi que Nova Iorque tinha um encanto especial na sua vida. Falámos demoradamente de literatura light como eu considero a que faz Auster. Ele contra-assinalava que esse tipo de livros lhe preenchiam os momentos de lazer. Eu dizia que não preciso de encher os meus perdendo o meu precioso tempo com coisas e coisinhas ligeiras que não me trazem nada, antes me assomam na indignação das árvores que é necessário abater.
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Domingo, 22.
O livro de Saul Bellow ainda não subiu à biblioteca de cima. De quando em vez, releio uma ou outra carta, forma de conhecer melhor o escritor e a vida que foi a sua. É muito importante a vida vivida pelo escritor. É dessa vivência que sai a obra, documentada pelos sofrimentos, alegrias e tristezas que lhe couberam na tômbola dos dias. E o autor nascido no Quebeque, judeu, filho de pais imigrados nos Estados Unidos, passou bastante para nos contar não só a sua experiência, como a daqueles que se atravessaram na sua vida difícil. Sobretudo as mulheres. Bellow casou uma série de vezes e algumas das mulheres não foram nada simpáticas para com ele. Uma arruinou-o depois de ter ganhado o Prémio Nobel, em 1976. É verdade que também o sistema jurídico americano, que costuma enfiar-se na cama dos casais, permite toda a sorte de fantasias que um ou outro dos esposos aproveita em seu exclusivo e egoísta proveito. Na realidade, o fim de vida do escritor, não foi propriamente a antecipação do Paraíso, como atestam as cartas nas pp. 359, 370 a 374 da tradução de Salvato Telles Menezes para a Quetzal.

         - Eu lamento-me todos os anos porque a realidade também não muda. O facto é que, às nove da manhã, estou já nos limites da minha energia. Para trás ficaram regas, puxar de mangueiras, deslocações, caldeiras para a água, e todo o cerimonial que é levar sustento a árvores, flores, canteiros pequenos e grandes, sebes, e passo. Mas um lamento não é uma queixa. Um lamento é uma oração mal soletrada, um desabafo murmurado, atrás do qual se esconde a alegria de viver desta forma original, neste local santificado pelo silêncio, a lastração solar, a inspiração da arte enquanto razão e dimensão de vida. Tirem-me daqui e morro sur-le-champ, aussitôt.

         - Por exemplo. Neste momento escrevo estas linhas na mesa larga do pátio. O calor já abrandou, um vento ligeiro passa por cima da casa térrea onde me encontro à porta, os pássaros menos sufocados, cantam alegremente, o Black está deitado na chaise longue qual monarca apoiado nos almofadões bordados a ouro, os repuxos que regam as laranjeiras e limoeiros, siflam um salmo que nenhum compositor consegue pôr na pauta musical, o silêncio, o meu doce companheiro de todas as horas, segreda-me ao ouvido coisas que não ouso traduzir em palavras. O que aqui está em grandeza é a paz que nenhum mausoléu consegue conservar. Podia construir uma perífrase que nem por isso fugiria à realidade.   
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Segunda, 23.
Ô vous, frères humains é a explanação de Albert Cohen sobre a sua infância, ou antes de uma criança de dez anos, nascida no seio de la bonne société. O livro não me lembro onde o comprei. O que é evidente é que ele foi pela primeira leitora (penso tratar-se de uma pessoa do sexo feminino pela letra e glosas) profusamente anotado, comentado, sublinhado até à página 35. A partir daí, silêncio. Nem uma linha a realçar até ao final das 213 páginas. Mais curioso: as anotações começam por ser feitas em francês (sem erros) e a dada altura aparecem palavras soltas em português. Registo esta ocorrência para mim misteriosa, porque traduz a colaboração e enriquecimento que o leitor traz à obra do artista. Não posso saber se esta leitora, tão entusiasta e contundente nas notas de rodapé de início desistiu da leitura, ou se pelo andamento prosseguiu sem precisão de se confrontar com o que ia lendo. Seja como for, a sua contribuição trouxe-me a mim segundo leitor, uma série de ideias que me ajudou a compreender o destino da criança e ao mesmo tempo a critica contundente de quem o leu antes de mim. Ao todo somos três os autores de uma obra de um tal Albert Cohen, nascido em 1895 e falecido em 1981.

         - A ameaça de guerra anda há muito a pairar sobre as nossas cabeças. É tudo uma questão de nada para que ela se instale no mundo e o faça desaparecer em minutos. Hassan Rohani, Presidente do Irão, disse há dias nas Nações Unidas umas quantas verdades que Trump não gostou de ouvir. Estas, por exemplo: "O governo dos Estados Unidos deveria explicar aos seus próprios cidadãos por que, após gastar milhões de dólares (...), ao invés de contribuir para paz e a estabilidade, só trouxe guerra, miséria, pobreza e um aumento do terrorismo e do extremismo à região." Depois aconselhou Trump “a não brincar com o fogo” porque em caso de conflito este seria “a mãe de todas as guerras”. Donald Trump que governa através do Twitter, respondeu: “Nunca mais volte a ameaçar os Estados Unidos ou sofrerá consequências como as que poucos sofreram antes na história.” E assim vamos aos 23 dias andados do ano da paz frágil.
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Quarta, 25
Il n´y a pas de parti idéal. Tous sont entachés de passion du pouvoir et de gains personnels. Aucun politicien n´est désintéressé. Quel ministre ou quel député voit le bien général prendre le pas sur son ambition personnelle et particulière? Pas un seul n´a la vocation de martyr, c´est peu dire, pas un seul. Assim se exprimia Julien Green em 17 de Março de 1983. O curioso é que estamos em Julho de 2018 e eu assino de cruz esta asserção do grande escritor, que era condenado por não ter ideias politicas, ser independente e não gostar da política.

         - Não me lembro de ver alguma vez as figueiras tão carregadas de frutos como este ano. Para meu regalo que adoro o figo pingo de mel que degusto ao natural pela manhã, em compota ao longo do ano e em tartes de vez em quando.

         - Um incêndio de enormes proporções às portas de Atenas matou pelo menos setenta e quatro pessoas e deixou o caos nas estradas de acesso a uma praia próxima, com filas de automóveis calcinados e os seus proprietários dentro, casas ardidas, as que se atiraram ao mar, afogadas. Os nossos técnicos – bombeiros, polícia e autoridades na matéria – fazem comparação com o que aconteceu em Pedrógão Grande. Pretendem iludir-nos. Esquecendo-se deliberadamente das suas responsabilidades nas mortes dos nossos infelizes, conduzidos pela GNR para a morte. O povo não tem confiança no saber técnico e profissional da polícia. A prova foi um pequeno fogo aqui perto, em Pinhal Novo, há dias. Centenas de automobilistas andaram na autoestrada de acesso a Lisboa em sentido contrário, fugindo às chamas. Felizmente o seu gesto desesperado, não se traduziu em acidentes automobilísticos. Mas veio provar que ninguém tem confiança nas ordens e conhecimentos da autoridade. E dou-lhes razão.

         - Tudo é ousado para / quem nada se atreve. Estes versos de Pessoa, traduzem à sua maneira, a filosofia grega.
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Quinta, 26.
Outra grande tragédia, ocorreu no Laos. Uma barragem em construção derrocou devido a uma terrível tempestade. As águas doidas varreram vilas e aldeias, campo e casas, levando tudo na dianteira. Há um número não calculado de mortos e centenas de desaparecidos para não falar nos milhares de desalojados. Esta é uma entre tantas outras barragens que o país avidamente levanta com o intuito de exportar energia para os países vizinhos e assim erguer a economia. Os ambientalistas há muito que se inquietavam mas, como sempre, ninguém os ouvia. Em causa o impacto de uma tal estrutura na fauna e flora, e, sobretudo, na população local.   

         - Ontem veio cá almoçar o pintor António Carmo e a mulher. Convívio simpático no pátio bem regado de conversa, sob o grande guarda-sol como objecto de adereço dado que nem o astro-rei espreitou no firmamento pardacento deste Verão sui generis.  

         - Vi ontem no Jornal da Noite da 2 francesa, Macron defendendo-se e defendendo o seu guarda-costas Benalla, objecto de todas as insinuações. Emmanuel Macron contra-atacou forte, indo ao pondo de dizer que o barbudo não é o seu favorito e nunca teve nada com ele. Curvo-me de adoração pela sua coragem e frontalidade. Do nunca visto num Chefe de Estado francês ou outro. Temos homem. A menos que ele prefira as mulheres mais velhas e os homens mais novos e não esteja em posição de confessar... É possível. O meu saudoso amigo Augusto Tejo costumava dizer: “Está tudo na natureza.” Mas já agora que fosse por um homem, como direi, mais sensível que o monstro barbudo que ele escolheu para seu guarda-costas pessoal. Quanto ao mais, estou Terêncio: Homo svm hvmani nihil a me alienvm pvto!

         - Somam já mais de oitenta os mortos nos incêndios de Mati nos arredores de Atenas. Começa, entretanto, a tecer-se argumentos, a grande maioria quanto aos projectos urbanísticos na zona. Parece que os interesses dos construtores pesaram mais que a organização e urbanização de bairros pensados com segurança e ordem urbana. As imagens que nos chegam são aterradoras. Nem o mar ali tão perto foi prestável para acudir aos desesperados.
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Sexta, 27.
Exultemo-nos: Chou Chou está entre nós! Eu se não tivesse agendado um jantar hoje na Feira do Artesanato do Estoril com a Marília, o João e o Guilherme, estaria de bandeirinha portuguesa na mão esquerda e francesa na direita à passagem de sua alteza real o reizinho de França.

         - Comecei a decapar a piscina. Não aguento mais que uma hora e mesmo assim saio curvado. Só nestas alturas lamento não ser rico para poder contratar pessoal à altura do trabalho. Felizmente que este Verão leva pouca gente às praias e quase ninguém às piscinas. A propósito é para uma delas que me despacho.

         - Título do Jornal Público: “Só em Lisboa e Porto houve 4300 acções de despejo em cinco anos.” Claro, maioritariamente, velhos e pobres. Todos devem àquela substância chamada Assunção Cristas, a mãe de todas as mães, investidora no imobiliário. 

         - A moda das grandezas pardas afundarem-se nos cacifos do Panteão Nacional, veio para ficar. Já se fala em Mário Soares e Álvaro Cunhal. Estes dois já cá não estão para recusar, mas há muitos outros em lista de espera, À cabeça “o maior jogador do mundo” com sua “famila”, naturalmente. Com uma diferença que faz toda a diferença: o PCP veio dizer que Álvaro Cunhal “dispensa honrarias”.
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Sábado, 28.
Levei o carro não até ao Estoril, mas somente a Lisboa. Como havia combinado com o Corregedor irmos de comboio, sofri toda a sorte de metamorfoses que se possa imaginar. Desde logo em lagartixa procurando um lugar para estacionar que acabei por encontrar na Av. 5 de Outubro, num espaço para coxinhos coitadinhos e mesmo assim de perna alçada; depois em toupeira chinesa debaixo da terra saltando de linha em linha até chegar ao Cais do Sodré, hoje irreconhecível para mim. Já na feira, verifiquei que o recinto se aburguesou, constituindo-se em qualquer coisa parecida com o mercado de domingo do Pinhal Novo. Despachado o que lá nos levou, com a gentileza do Guilherme que nos deixou na estação de comboios, regressámos a Lisboa. Carruagens cheias, barulho, vozearia de línguas tocadas a álcool. O espectáculo maior estava reservado para a meia-noite. Na estação do metro a noite tinha dado uma cambalhota e metamorfoseara-se em dia. A multidão era tanta que as gares estavam entupidas, gente a correr em todas as direcções, a subir e a descer escadas, como se estivessem a fugir da polícia. De onde vinha tanto pagode àquela hora? Mistério. Para ajudar à festa, dos altifalantes da gare saía uma voz anasalada que nos prevenia de atrasos nas ligações. Quando, enfim, o metro estaciona, Corregedor sacode quem está por perto e enfia-se em primeiro lá dento, obtendo lugares sentados para nós. Eles foram directos à Av. de Roma, eu tive ainda de trocar de linha três vezes. Por todo o lado, no Chiado, multidões imensas viajavam já perto da uma da madrugada. Lisboa era uma metrópole disfarçada de qualquer coisa que não conferia com o seu estatuto provinciano que tão bem lhe fica. Cheguei a casa passava das duas da madrugada. Antes de entrar, limpei os pulmões de olhos postos na lua que horas antes nos ofereceu o encanto do eclipse total – e aqui reside todo o mistério que alimenta a imaginação humana há milénios. Na terra não passamos de formigas tontas levando uma vida alienada e insignificante.  
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Domingo, 29.
Há dias, na Antena 2, uma violinista era entrevistada. A dada altura explica-se sobre uma obra Mozart (?) que tinha interpretado: “naquele momento percebi que me caiu ficha”.

         - A palavra de Deus é a palavra dos seres humanos que falam de Deus. Frei Bento Domingues no Público de hoje.

         - Anteontem, durante o jantar no Estoril, não sei a que propósito, Corregedor falou de Lenine que julgo ser a sua grande referência ideológica (por diversas conversas que já tivemos). Eu não estive de acordo, e adiantei que Lenine não passou de um ditador ou pelo menos de um absolutista. O meu amigo perguntou-me a partir de quando. Eu citei 1918. Ele calou-se. Estranhei que o fizesse, mas percebi que naquela algazarra, diante do Guilherme e da mulher que nunca vi manifestar um parecer político de qualquer natureza, o momento e o local não seriam os mais indicados para uma discussão. Ainda assim, ele adiantou: “Estaline não é Lenine”, para bom entendedor... Bom. Acontece que não sou entendido na história da Rússia, mas sei alguma coisa da dupla Lenine/Trotsky. Sei que a partir da chamada Revolução de Outubro, Lenine incha de autoridade e na razia de afastar aqueles que ele designava por sabotadores, czaristas e os milionários, vai exercer uma déspota condenação deportando-os para os campos de concentração, submetendo-os a trabalhos forçados desumanos. A este propósito, Soljenitsin diz que o sistema de prisão czarista era muito benevolente quando comparado com aquele que os bolcheviques mais tarde viriam a estabelecer. Lenine exortou ao terror das massas populares, o conhecido “Terror Vermelho”,  e à conta disso os kulaks, os sacerdotes e os Guardas Brancos e todos os duvidosos conheceram a morte, os Gulags (acrónimo de Administração Geral dos Campos) siberianos onde morreram milhares sob temperaturas de menos 50 graus. As acções do estratega da dizimação dos mencheviques, foram posteriormente branqueadas pelos historiadores, acentuando a responsabilização exclusiva de Estaline, esse monstro, é verdade, da história da humanidade moderna. E lembrar-me eu que Lenine referia-se ao sanguinário como  “o maravilhoso georgiano.” No seu governo, os direitos humanos foram espezinhados à custa da ditadura do proletariado que, evidentemente, é mais sã e humana que a outra... Talvez seja exagerado, mas para mim, Jesef Vissariónovitch Stalin nasceu da raiz que Lenine plantou.
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Terça, 31.
O senhor Robles do BE, demitiu-se do cargo de vereador na Câmara de Lisboa, devido à bronca que não sai das televisões e das páginas dos jornais, concernente a um prédio, em Alfama, que ele e a irmã compraram por pouco mais de 300 mil euros em 2014 e três anos depois puseram à venda por... 5,7 milhões. Parece que está tudo legal, não fora o facto de o pobre homem ter andado a pregar contra os especuladores imobiliários. Aliás, este é um caso típico da coerência da esquerda aqui como por todo o lado. A esquerda caviar e champanhe é incorrigível. Alinham no sistema, mas em teoria.

         - No pequeno espaço de chá do primeiro andar do Corte Inglês, uma mulher toda produzida, com aquele aspecto de dondoca tonta, estende o cartão do estabelecimento para pagar a despesa.
         - O seu cartão – diz-lhe a empregada – já esgotou o plafond.
         - Ai, como assim! Fiz compras a mais?
         - Fez, mas é isso que nós gostamos, que as clientes façam muitas compras.
         A cliente teve que pagar o consumo com o cartão Multibanco.


         - Almoçámos no Zé Varunca, Trav. Mercês, ao Bairro Alto: Vergílio, a sua vigilante, Irmão, João e eu. Não conhecia o restaurante, mas gostei da serenidade e ambiente, da comida e do circunspecto empregado que nos serviu. Conversa num tom cordato, abordando o lado simples da vida, sem a complicação da política apenas aflorada. Gosto deste grupo, umas quantas pessoas em vias de desaparecer do mapa civilizado e abordável da vida, conhecedores e participantes de um tempo fabuloso, feito de experiências colectivas, subordinado a um conceito de amizade que ainda hoje impera grandioso no centro das sombras protectoras dos ausentes.