sábado, outubro 29, 2016

Sábado, 29.
Outro dia, em Halles, entrei num restaurante que servia comida biológica a peso. Normalmente desconfio destes “especialistas” que nos querem com saúde. Escolhi dois bocados de galinha, três pequenas gramas de diferentes legumes, e no final despachei 13 euros. Quando apresentei o meu cartão para pagar a magra refeição, a rapariga voltou-me: “Ah! É português! Como fala tão bem o francês, estava longe de supor!” Ficámos a conversar por largos instantes. Contou-me que estudava biologia na universidade de Aveiro, pagava de propinas mil euros, ganhava no emprego seiscentos, a mãe trabalhava de sol a sol, e há dois anos suprimiram-lhe a bolsa. Resultado: teve que emigrar. Aqui, explicou-me, pode prosseguir os estudos porque o Estado tem um acordo com as empresas. “Não ganho muito, mas ao menos sempre estou melhor que no meu país.” Como ela era muito bela, elegante de corpo, esbelta de entontecer os sentidos, aconselhei-a a tentar a publicidade. Riu-se. Mas é lamentável que os portugueses tenham de emigrar para sobreviver, enquanto os franceses o fazem para gozar do clima e das benesses que o Estado lhes oferece.

         - Em Paris tenho-me regalado a ouvir o duo Fréro Delavega que faz uma música belíssima, tão bela como eles próprios e a cumplicidade que existe nas suas actuações ao vivo. Reconheço na sua juventude aquela que foi a minha: empolgante, a arte d´abord, trabalhadora, simples, desarrumada qb, de algum modo uma espécie de anamnese do que fui.

         - Há dias a televisão daqui falou de Portugal, mas para ridicularizar o Governo socialista que pretende instituir um imposto sobre o sol. Tem sido uma rigolada a tal propósito. Todos acham a medida grotesca e uma forma de empobrecer ainda mais os portugueses já que o sol é a única coisa gratuita de que usufruem e não é propriedade de nenhum partido ou governo. Depois admiram-se que haja cada vez mais extremistas.

         - Tudo o que encontro sobre ou dos irmãos Mann, adquiro. Estou a ler o livro de Erika Mann, Quand les lumières s´éteignent. Trata-se de um documento denunciador do regime hitleriano que obrigou milhares a deixar a Alemanha. É igualmente a imagem de uma geração de intelectuais insubmissos que tiveram de fugir aos horrores da guerra. Neste aspecto, os irmãos Erika e Klaus foram pioneiros na antecipação da barbárie. Nem o pai Thomas Mann, nem Stefan Zweig tiveram o discernimento de ver o que se preparava para a Europa. Thomas Mann, era um instalado, um burguês e a sua obra reflecte isso mesmo. O filho é um ser delicado, brutal, incapaz de aceitar a ordem estabelecida, imaginativo e cativante. Do meu ponto de vista, superior ao pai.


         - A seguir ao excelente jantar vietnamiano que a mulher do Lionel nos preparou, passámos ao salão para apreciar a virtuosidade da filha de Mai-Hong ao piano. A rapariga promete e os avanços relativamente ao ano passado são nítidos. Nesta casa o silêncio só se instala a partir da meia-noite. Até quando posso isolo-me no meu quarto para trabalhar. Como estou dependente de alguém que me leve ao centro de Strasbourg onde poderei escrever com tranquilidade num café, disfarço o problema com um sorriso de orelha a orelha. Ainda por cima, o Nam, seis anos, não larga a consola onde o tiroteio é ensurdecedor.