sexta-feira, agosto 20, 2021

Sexta, 20.

Não sei porquê, mas sinto-me desde há duas semanas em plena forma. Deve ser passageiro este tempo abençoado, porque comigo é por revoadas que passeio nas nuvens ou desço a queimar-me nas chamas do inferno. Pelo meio, tenho choques de cintilações de uma felicidade indiscritível. São pequenos instantes, fagulhas de segundos, que me levam para mundos que ficam para lá de eternidades desconhecidas. É um bem estar quedo, beatifico, atravessado de sonhos, fantasias, recordações encantatórias ou beliscadas de memórias enérgicas de sensualidade. Todos os corpos que tateei ao centímetro quadrado, desaguam no meu regaço, ficam ali por minutos, trazendo-me a loucura que os imortalizou. Chego a ouvir os soluços, a respiração arfante, os gemidos celestiais que são a fonte não só da inspiração como da própria vida. Este tempo acorda-me para a presença da natureza que me rodeia, e sinto arrepios de vontades, admiro o espaço pousando o olhar que arrasta a alegria do fundo dos dias de desespero, e perco-me em passeios meditabundos, revivendo cada minuto dos anos aqui enclausurado, com o sentimento que nada fiz para os merecer. Impulsionado pelo estado de graça em que me encontro, contemplo cada árvore, viajo no voo dos pássaros, finto os raios do sol na densa ramagem que circunda a casa, encho o coração da beleza dos campos verdejantes decorados de cachos de uvas pretas e brancas refulgindo ao sol do meio-dia. Estou que não posso de bem-aventurança. Chego mesmo a paralisar, impedido pelo silêncio profundo de gritar, de agradecer ao Criador tão ufana e bela paisagem, que recebo como uma bênção no meu coração, a fim de nele nidificar a maior aventura que me foi dado conhecer -  a da vida turbulenta e excelsa que é a minha. 

         - Almocei no Corte Inglês com a Alzira recém-chegada do Algarve e cheia de lamúrias. A dada altura desliguei e passei a acompanhar a conversa da mesa do lado. Duas senhoras de bom porte e tom de voz civilizado, quero dizer, baixo falavam deixando escapar desolação. Uma diz para a outra: “Mataram-no na flor da vida. E dizem que também era bonito por dentro.” Que mundo de súbito se me abriu! Quem era o infeliz? Que idade tinha? Por que o assassinaram? Naquela expressão de compaixão e dor, está inteiro todo o valor e fragilidade da nossa passagem por esta terra. 

         - Posso afirmar que o Black é macho. Aconteceu esta manhã quando vi aproximar-se outro gatesco da porta onde ele comia. Logo abriu a boca num esgar de raiva pondo em fuga do desgraçado. Parecia o Drácula na forma felina, com aqueles dois dentes de cima que avançam um pouco sobre os de mais, pontiagudos. Se o outro fosse outra, ele, como o pai, não o expulsava irado.