Quarta,
28.
Por
todo o lado, só ouço falar inglês. Enfim, qualquer coisa próxima disso. Se me
insurjo contra o facto, não me refiro, evidentemente, a língua de Shakespeare
ou de Nathaniel Hawthorne e de tantos outros que a enriqueceram. Penso na
língua enchoiriçada dos negócios, aquela que não podendo impor-se pela cultura,
deu a volta e apresentou-se sedutora de maços de notas nas mãos. É a linguagem
prática, sem sustentação morfológica, com uma multiplicidade de significados
que traduzem a mescla da construção arbitrária das frases. Esta Áustria onde me
encontro, esqueceu depressa os seus grandes obreiros. No tempo Austro-Húngaro,
o francês era a língua que exprimia a cultura. Stefan Zweig fala disso em O Mundo de Ontem. E depois há o célebre
casamento entre Maria Luísa e Napoleão. É verdade que foi um casamento de
conveniência pois Bonaparte teria preferido casar com Ana, irmã do Czar russo
Alexandre, de quinze anos apenas. De conveniência, sim. Acima de tudo o que
estava em causa era a transmissão de poder. Como a estéril Josefina não conseguia
dar-lhe descendência, falhadas muitas outras hipóteses, surgiu a arquiduquesa Maria
Luísa. O arranjo foi obra do genial primeiro-ministro de Francisco I,
Metternich. Aliás o Imperador de França na sua linguagem primária para não
dizer boçal, não escondia os seus intentos, chegando a afirmar: “É um ventre
que eu escolho.” Deste modo, Maria Luísa é imperatriz de França. Virgem,
fresca, bela e inocente. (Com o tempo, diga-se em abono da verdade, tornou-se
naquilo a que hoje se chama uma ninfomaníaca.) Os laços entre os dois países
nunca foram muito concordantes, sobretudo depois da derrota de Austerlitz. Com
esta união o que havia em mente era estoirar com a aliança franco-russa. O que
se passou a seguir todos sabemos. Os planos austríacos falharam, mas o
casamento foi realizado. Napoleão Bonaparte que queria uma barriga de aluguer,
acabou apaixonado; Maria Luísa que tinha partido contra vontade ao encontro do
Imperador Bonaparte, findou de lágrima no olho quando o marido foi condenado ao
degredo na ilha de Elba. Inclusivamente, o Papa Pio VII, por imposição de
Napoleão que não tinha casado pela Igreja em 1804, foi impelido a realizar a
cerimónia e, portanto, também não sai bem de tudo isto. Que termina em tragédia
com o regresso da filha de Francisco ao país trazendo nos braços o filho de
ambos, Rei de Roma, que os austríacos nunca aceitaram e até lhe chamaram “o
ogre”. Na Capela dos Capuchinhos, deram-lhe um lugar insignificante, com
direito a citação da descendência, mas de pai incógnito. Triste, muito triste!
- Não falemos mais de coisas sombrias.
Ninguém imagina porque isso é coisa íntima e não transmissível, o prazer que
tive há instantes num café à antiga onde entrei para espreitar e acabei mais de
uma hora diante de uma bica e de um Krapfen, espécie de Bola de Berlim com
recheio de compota de alperce! Muito desta civilização absorveu-me em
pensamentos e a atmosfera de então fechou-me em fios giratórios na sensação de
outros tempos. Por isso eu digo, Viena é uma atmosfera, é um vago sentimento
civilizado que está lutando contra a frivolidade dos tempos presentes.
- Viena entrou de férias. À parte as
lojas de souvenirs que continuam a laborar, todo o outro mundo dos negócios
está de pousio. Poucos restaurantes abertos, lojas fechadas, supermercados,
enfim, a agitação normal que atrai turistas e clientes locais alterou de
repente a capital. Fui a Brunnenmarkt
cuidando que ali pelo menos havia vida. Um deserto. Estão lá a céu aberto ruas
e ruas cheias de barracas fechadas, lojas disto e daquilo, mas só vi a
funcionar o Macdonald´s e uma ou outra espelunca alimentar. É o Intendente por
uma pena. À saída da Josefstaierstrasse passei entre um corredor de gente a
drogar-se, depois do outro lado da estação, vagabundos abandonados à sua sorte.
Pouca gente numa zona que me dizem animada fora destas férias natalícias. Da
próxima vez que cá voltar, evitarei este mundo. O pior é que os museus seguiram
o exemplo: normalidade só a partir de 30.
- Há um concerto que paguei um pouco
caro, mas que valeu a pena. Refiro-me ao de Freddy Staudigl. Este artista toca
magnificamente trompete a que junta os seus dons de organista. Resultado:
Mozart, Bach, Schubert, Purcell e Johann Strauss na sua sensibilidade
agigantam-se e chegam até nós no esplendor de um artista exímio.