sexta-feira, dezembro 23, 2016


Sexta, 23.
Precisava de passar um dia inteiro fechado no meu quarto de hotel a pôr em dia todos os instantes desta viagem. Trago a cabeça a ferver, pronta a explodir de tal modo os temas, as imagens, os lugares, as sensações, o tumulto interior que o mínimo sentimento transforma numa ponta de fogo pronta a tocar o alvo invisível e incerto do meu leitor. Tu que começas por estar dentro de mim, ou algures num sítio iluminado pelo espírito de partilha na consagração da liberdade de te dizer o que trago aqui travado, golfadas de riso, de pranto, fúrias perdidas no mar imenso de permutas por que passei nestes últimos tempos. Às vezes quase nada. Um sorriso, um olhar sobre a neve imaculada, uma ideia perdida entre um assomo de cansaço e um impulso de forças ao dobrar do dia, quando as luzes da natividade ainda não brilham nos corações de tanto infeliz acolhido nas ruas por estas noites polares, decoradas por flocos de neve caindo suavemente, ao ritmo das badaladas de uma igreja fria, fechada sobre os anjos e os arcanjos, solitários e infelizes, ante a crueza da verdade encerrada na felicidade egoísta de tantos de nós. O tempo, o tempo não me falta. Carece-me a destreza intelectual, o brilho da escrita feita na solidão das horas sombrias quando a realidade se ilumina da presença divina que transforma o texto em matéria sensível de essência humana. Ficção e realidade reclamam do artista não só tempo, como disponibilidade para separar uma da outra e deste modo fazer a unidade da matriz intemporal de cada ser humano.
Passeio num parque aqui perto 
        - Todo o dia caiu uma neve ora espessa, ora ligeira. As ruas nem por isso deixaram de ser batidas pelo caudal de vianenses e estrangeiros. Não vi ninguém tombar devido à neve que de manhã se tornou numa camada de gelo perigosa, nem este que aqui escreve no seu caminhar cai-que-não-cai caiu. Isto porque, os lojistas são obrigados a zelar pela segurança dos visitantes e para tal estão sempre a derramar nos passeios uma espécie de gravilha que nos sustem equilibrados. Apesar disso, não é agradável ficar muito tempo fora de casa, sobretudo em dias como estes que tenho apanhado aqui, porque o vento, a neve e o frio cortam-nos ao meio. Embora as casas e os sítios públicos estejam bem aquecidos, o viajante não vem para ficar entre muros. Pelo menos este que se assina, não tem parado um minuto. Hoje, por exemplo, nem uma refeição digna desse nome entrou cá dentro, porque o dia foi tão preenchido que não deu tempo para o estômago.
Um dia de frio em face à catedral de Viena

Aqui não é preciso criar o Natal, ele produz-se por si próprio 

        - Quando andamos neste frenesim manso, damo-nos conta da vida que palpita, da organização da cidade, dos hábitos dos residentes, do ambiente que Viena expõe de um modo reservado, diria natural, como é apanágio das grandes civilizações e das pessoas cultas. Não tem muito tempo que a campanha eleitoral terminou e já não se vê um único cartaz de Norbert Hofer do partido da extrema-direita FPO, nostálgico do III Reich, e contra os imigrantes, nem de Van der Bellen que com ele disputou a presidência e ganhou. A ordem e a limpeza, a rapidez dos transportes, o rigor nos horários, a educação e gentileza, o modo como se nos dirigem, mesmo falando o dialeto austríaco ou o inglês cruzado, o alemão ou outra qualquer língua, a cultura que paira no ar e sente-se numa certa forma de estar, com as livrarias cheias, os teatros, como se ainda adejasse no ar um leve fumo da Casa dos Habsburgo, transformando-a num assomo de delicadeza, de ordem, de segurança, de aprumo musical que entontece, extasia, penetra e aprofunda o melhor que há em nós. Eu que detesto o inglês e tudo faço para o ignorar, porque não gosto de uma língua que se impôs por via dos negócios, que nos oprime, ditou a globalização, veio do lado de lá do Atlântico nas asas do imperialismo, é falada por eurodeputados mal e porcamente, possui uns quantos suportes de sintaxe e daí cresce a morfologia de novo-rico, desde que aqui cheguei parece que tudo o que eu julgava perdido, recrudesce, impõe-se, dialoga, intende e faz-se compreender, contra a minha vontade e prazer. Clemenceau dizia que o inglês não é mais que o francês mal pronunciado.
A Karntner Strasse, a rua dos sapatos de defunto

         - Ainda Julien Green. Como os leitores deverão ter notado, está escrito na pedra tumular “Julian” ao invés de Julien – porque aquele era o modo que sua mãe tinha para o chamar: Julian! Também na parede está uma lápida onde foi gravada uma página do Diário: em francês e em alemão.
Julian Green no salão da Rue Vaneau

         - Ainda Klagenfurt. Nos poucos minutos que me restavam antes de embarcar, entrei num restaurante perto da gare. Quando a empregada me estendeu o menu do dia, li que estava no Café Robert Musil. “Estranho!” disse.  Depois, pensando um pouco, lembro-me de ter lido algures que a cidade fora o seu berço de nascimento e também dos seus primeiros empregos, antes ou em simultâneo com a escrita. E logo me veio à ideia o seu longo romance O Homem sem Qualidade que eu começara a ler à saída da adolescência e rapidamente pusera de parte porque me perdia naquele labirinto literário. Musil, deixou a Áustria quando do Anschluss  para a Suíça onde veio a morrer na completa miséria. 


         - Quando ia a caminho do número dezanove da Berggasse, não resisti a entrar na igreja Votiva ou do Divino Voto que encontrei do meu lado esquerdo. Vista de fora, no maranhado dos fios de neve e de electricidade, assemelha-se a uma catedral perdida na neblina de uma tarde esquecida nos antípodas da cristandade. Lá dentro, impressiona. No estilo neogótico, foi mandada construir no tempo de Imperador Francisco José pelo seu irmão Maximiliano em agradecimento por o Kaiser ter escapado a um atentado em 1879. A nave central longa e imponente e toda a estrutura principal está resumida ao altar-mor de talha dourada de um equilíbrio artístico que comove quando comparada com o resto do templo. E contudo, este irmão do talvez mais importante imperador da Casa dos Habsburgo, tudo fez para prejudicar o governo de Francisco José (1830-1916), ambicioso como era, sonhava ser como Napoleão III. Em consequência conheça-se a história e perceba-se que a ambição leva-nos quase sempre à tragédia. No seu caso, depois do México e da loucura da imperatriz Carolina com quem casou em 1827, este infeliz que queria destituir o imperador seu irmão, acabou assassinado com seis balas e rejeitado por Napoleão. A mulher refugia-se no Estado do Vaticano, tresloucada, com a obsessão de que todos a querem envenenar. Só quando Pio IX molhava um biscoito na taça de chocolate ao pequeno-almoço, ela se decidia a comer. E gritando: “Morro de fome! Não posso tocar em nada! Está tudo envenenado! As pessoas que me servem são exortadas por Napoleão que deseja a minha morte!” Faleceu a 19 de Janeiro 1927 no castelo de Bouchout. Durante a noite cantava sozinha o hino mexicano, salmodiando estas palavras que resumem bem a sua triste vida: “Um grande casamento... e depois a loucura.”
A igreja Votiva