Sexta,
23.
Precisava
de passar um dia inteiro fechado no meu quarto de hotel a pôr em dia todos os
instantes desta viagem. Trago a cabeça a ferver, pronta a explodir de tal modo
os temas, as imagens, os lugares, as sensações, o tumulto interior que o mínimo
sentimento transforma numa ponta de fogo pronta a tocar o alvo invisível e
incerto do meu leitor. Tu que começas por estar dentro de mim, ou algures num
sítio iluminado pelo espírito de partilha na consagração da liberdade de te
dizer o que trago aqui travado, golfadas de riso, de pranto, fúrias perdidas no
mar imenso de permutas por que passei nestes últimos tempos. Às vezes quase
nada. Um sorriso, um olhar sobre a neve imaculada, uma ideia perdida entre um
assomo de cansaço e um impulso de forças ao dobrar do dia, quando as luzes da
natividade ainda não brilham nos corações de tanto infeliz acolhido nas ruas
por estas noites polares, decoradas por flocos de neve caindo suavemente, ao
ritmo das badaladas de uma igreja fria, fechada sobre os anjos e os arcanjos,
solitários e infelizes, ante a crueza da verdade encerrada na felicidade
egoísta de tantos de nós. O tempo, o tempo não me falta. Carece-me a destreza
intelectual, o brilho da escrita feita na solidão das horas sombrias quando a realidade
se ilumina da presença divina que transforma o texto em matéria sensível de
essência humana. Ficção e realidade reclamam do artista não só tempo, como
disponibilidade para separar uma da outra e deste modo fazer a unidade da
matriz intemporal de cada ser humano.
Passeio num parque aqui perto |
- Todo o dia caiu uma neve ora
espessa, ora ligeira. As ruas nem por isso deixaram de ser batidas pelo caudal
de vianenses e estrangeiros. Não vi ninguém tombar devido à neve que de manhã
se tornou numa camada de gelo perigosa, nem este que aqui escreve no seu
caminhar cai-que-não-cai caiu. Isto porque, os lojistas são obrigados a zelar
pela segurança dos visitantes e para tal estão sempre a derramar nos passeios
uma espécie de gravilha que nos sustem equilibrados. Apesar disso, não é agradável
ficar muito tempo fora de casa, sobretudo em dias como estes que tenho apanhado
aqui, porque o vento, a neve e o frio cortam-nos ao meio. Embora as casas e os
sítios públicos estejam bem aquecidos, o viajante não vem para ficar entre
muros. Pelo menos este que se assina, não tem parado um minuto. Hoje, por
exemplo, nem uma refeição digna desse nome entrou cá dentro, porque o dia foi
tão preenchido que não deu tempo para o estômago.
Um dia de frio em face à catedral de Viena |
Aqui não é preciso criar o Natal, ele produz-se por si próprio |
- Quando andamos neste frenesim manso,
damo-nos conta da vida que palpita, da organização da cidade, dos hábitos dos
residentes, do ambiente que Viena expõe de um modo reservado, diria natural,
como é apanágio das grandes civilizações e das pessoas cultas. Não tem muito
tempo que a campanha eleitoral terminou e já não se vê um único cartaz de
Norbert Hofer do partido da extrema-direita FPO, nostálgico do III Reich, e
contra os imigrantes, nem de Van der Bellen que com ele disputou a presidência
e ganhou. A ordem e a limpeza, a rapidez dos transportes, o rigor nos horários,
a educação e gentileza, o modo como se nos dirigem, mesmo falando o dialeto
austríaco ou o inglês cruzado, o alemão ou outra qualquer língua, a cultura que
paira no ar e sente-se numa certa forma de estar, com as livrarias cheias, os
teatros, como se ainda adejasse no ar um leve fumo da Casa dos Habsburgo,
transformando-a num assomo de delicadeza, de ordem, de segurança, de aprumo
musical que entontece, extasia, penetra e aprofunda o melhor que há em nós. Eu
que detesto o inglês e tudo faço para o ignorar, porque não gosto de uma língua
que se impôs por via dos negócios, que nos oprime, ditou a globalização, veio
do lado de lá do Atlântico nas asas do imperialismo, é falada por eurodeputados
mal e porcamente, possui uns quantos suportes de sintaxe e daí cresce a morfologia
de novo-rico, desde que aqui cheguei parece que tudo o que eu julgava perdido, recrudesce,
impõe-se, dialoga, intende e faz-se compreender, contra a minha vontade e
prazer. Clemenceau dizia que o inglês não é mais que o francês mal pronunciado.
A Karntner Strasse, a rua dos sapatos de defunto |
- Ainda Julien Green. Como os leitores
deverão ter notado, está escrito na pedra tumular “Julian” ao invés de Julien –
porque aquele era o modo que sua mãe tinha para o chamar: Julian! Também na
parede está uma lápida onde foi gravada uma página do Diário: em francês e em
alemão.
Julian Green no salão da Rue Vaneau |
- Ainda Klagenfurt. Nos poucos minutos
que me restavam antes de embarcar, entrei num restaurante perto da gare. Quando
a empregada me estendeu o menu do dia, li que estava no Café Robert Musil. “Estranho!”
disse. Depois, pensando um pouco,
lembro-me de ter lido algures que a cidade fora o seu berço de nascimento e
também dos seus primeiros empregos, antes ou em simultâneo com a escrita. E
logo me veio à ideia o seu longo romance O
Homem sem Qualidade que eu começara a ler à saída da adolescência e
rapidamente pusera de parte porque me perdia naquele labirinto literário. Musil,
deixou a Áustria quando do Anschluss para a Suíça onde veio a morrer na completa
miséria.
- Quando ia a caminho do número
dezanove da Berggasse, não resisti a entrar na igreja Votiva ou do Divino Voto que
encontrei do meu lado esquerdo. Vista de fora, no maranhado dos fios de neve e
de electricidade, assemelha-se a uma catedral perdida na neblina de uma tarde
esquecida nos antípodas da cristandade. Lá dentro, impressiona. No estilo
neogótico, foi mandada construir no tempo de Imperador Francisco José pelo seu irmão
Maximiliano em agradecimento por o Kaiser ter escapado a um atentado em 1879. A
nave central longa e imponente e toda a estrutura principal está resumida ao
altar-mor de talha dourada de um equilíbrio artístico que comove quando
comparada com o resto do templo. E contudo, este irmão do talvez mais
importante imperador da Casa dos Habsburgo, tudo fez para prejudicar o governo de
Francisco José (1830-1916), ambicioso como era, sonhava ser como Napoleão III. Em
consequência conheça-se a história e perceba-se que a ambição leva-nos quase
sempre à tragédia. No seu caso, depois do México e da loucura da imperatriz
Carolina com quem casou em 1827, este infeliz que queria destituir o imperador
seu irmão, acabou assassinado com seis balas e rejeitado por Napoleão. A mulher
refugia-se no Estado do Vaticano, tresloucada, com a obsessão de que todos a
querem envenenar. Só quando Pio IX molhava um biscoito na taça de chocolate ao
pequeno-almoço, ela se decidia a comer. E gritando: “Morro de fome! Não posso
tocar em nada! Está tudo envenenado! As pessoas que me servem são exortadas por
Napoleão que deseja a minha morte!” Faleceu a 19 de Janeiro 1927 no castelo de
Bouchout. Durante a noite cantava sozinha o hino mexicano, salmodiando estas
palavras que resumem bem a sua triste vida: “Um grande casamento... e depois a
loucura.”
A igreja Votiva |