quarta-feira, abril 25, 2018

Quarta, 25.
Terminei o in-te-re-ssan-te livro de Pierre Loti Vers Ispahan. Loti é um viajante incurável, um contador de histórias iluminado, um homem para quem os espaços terrestres são cópias do céu imenso. Ele vai fazer – pelo menos em parte –  o caminho da fantástica expedição de Alexandre o Grande. Deixa a Índia em 1900 para se dirigir a Ispahan (eu vou adoptar o nome para português de Isfahan, embora haja quem diga Esfahan e até Ispaão). Vai atravessar a Pérsia (actual Irão), utilizando a caravana puxada a mulas ou cavalos, recortando pessoal indígena que se reveza à chegada às  principais cidades por onde passa até Isfahan ou mais exactamente até Teerão para o acompanhar e, sobretudo, para o defender dos ataques da gatunagem que exerce toda a sorte de violência ao longo das montanhas e vales profundos. Entra no país de barco à vela pelo Golfe Pérsico vindo da Índia e a primeira paragem, à entrada do deserto, é Bender-Bouchir (mantenho os nomes em francês que não divergem muito daqueles que utilizamos). Estamos a 17 de Março e a partir daquele dia é o deserto que vai ter que vencer, viver como pode, experimentar os primeiros revezes de uma viagem absolutamente esgotante, muitas vezes sem ter onde dormir, de atalaia constante aos perigos das noites cálidas e das picadas dos mosquitos. Contorna Boradjoune a grande cidade de oásis, para chegar a Daliki o deserto decorado de palmeiras onde a magnificência começa por lhe travar a respiração. Dorme e no dia seguinte, a 19 de Abril, está em Konor-Takté, para prosseguir até Konoridjé, Kazeroun, Bouchir, e a 25 chega a Chiraz atravessando as três muralhas que guardam a cidade de 60 mil habitantes. Aqui vai ficar por uns dias. A fundação da cidade remonta a 695 da nossa Era, é referida como uma das mais belas, onde o poeta Saadi (1194) está sepultado, assim como Hafiz dois séculos depois, cidade das rosas, da mesquita de Kerim-Khan, de minaretes, das orações ao longo do dia “Alá! Alá!”, de vizires, de príncipes, de palácios das Mil e uma Noites, de ruínas datadas dos Aqueménidas, fundadores do primeiro Império Persa por alturas de 556-330 av. J.C. que haveriam de chegar próximo da Ásia Menor, ao Afeganistão, Paquistão actual, Líbia, Iraque, e pela Síria ao Egipto, Arábia Saudita, Jordânia, Israel, Líbano e por aí fora. Todo este mundo vai render-se ao jugo de Alexandre em 330 av. J.C. Em 2 de Maio, deixa a bela e perfumada Chiraz e entra na “rota de Isfahan” para passar a noite em Zargoun. Na zona não dispensa a visita aos palácios de Dario e Xerxes, reis aqueménidas, pai e filho, do séc. XV av. J.C. que o exército macedónio haveria, dois mil anos depois, revelado a existência ao Ocidente, depois de ter incendiado tudo na fúria da conquista. (Pierre Loti, diz que viu fragmentos de cedros decorativos do Líbano queimados por Alexandre.) Detém-se a admirar os baixos relevos, as estátuas, as pedras que guardam antigos segredos. A 5 de Maio retoma a marcha por montanhas agrestes onde jazem ao sol apodrecidos os cadáveres dos animais mortos de fadiga. Chega a Abas-Abad e encontra na habitual zona reservada aos caravanistas em viagem, lugar para ele e para a sua trupe de viajantes. No dia seguinte, muito cedo, como é hábito para escapar à torreira das tardes, está em Dehbid, a seguir Abadeh, Makandbey, Koumichah, campos vasto de ópio na forma de pequenas flores brancas, destinadas “aos homens dos olhos minúsculos do Império Celeste”. As caravanas precisam de 55 dias para chegar a Teerão. Ele, porém, tem como objectivo Isfahan onde acaba por chegar ao nascer do dia 12 de Maio. Aqui vai demorar-se não só porque tem objectivos concretos, ainda porque uma série de peripécias vão retardá-lo contra sua vontade. A cidade do Xá Abas, grande e iluminado governante, onde quase tudo o que existe a ele se deve, deixou-o de boca aberta. Nela a cultura muçulmana conheceu o seu expoente máximo, com a universidade construída há pelo menos três séculos, por ela passaram pensadores e poetas, na tradição e linhagem árabe que se conhece. Luxo e arte andam de par, os palácios são bijus de prata e ouro, tapetes de seda estão por todo o lado, santuários e minaretes misturam-se, sublimes, na paisagem urbana, as flores enchem casas e departamentos públicos, as pessoas oferecem umas às outras rosas, a arquitectura com seus tectos e abóbadas em estalactite, extasia quem os observa, Naqsh-e-Jahn é a segunda maior praça do mundo, tudo o que a sultana Zodaia, esposa do califa Haroun-al-Raschid, contou tem aqui a marca do seu cunho. O resto da viagem, deixo aos meus leitores o prazer de a descobrirem neste extraordinário livro, que o autor, não dando muitos elementos históricos, descreve às mil maravilhas os lugares e as pessoas, as religiões e os acontecimentos no dia-a-dia, as paisagens, a flora e fauna, as noites e os fins de tarde onde a magia perdura pelo adiantado das noites...

         - Se me posso exprimir, tudo o que Loti descreve e esteve sob o comando do Macedónio, aonde hoje decerto subsistem certas formas de cultura e civilização do mundo dito helénico, na forma refinada da cultura grega, que com Alexandre se encontraram e de algum modo ele, apesar de um certo respeito pelos povos conquistados, ignorou. Mas a riqueza cultural, artística, política no modo como o cidadão podia exercer a religião, no respeito da palavra do Profeta, o mundo islâmico soube preservar e foi a alavanca para chegar inteiro aos nossos dias. Eles, os árabes, sob diversos aspectos, durante séculos, viveram sob civilizações muitíssimo mais avançadas do que a nossa de todos os pontos de vista: arquitectura, na relação com o mundo, no gosto refinado (veja-se Alhambra), na arte, nos costumes. Se Alexandre o Grande nos deu a conhecer esta civilização maravilhosa, também enquanto conquistador destruiu valiosíssimos tesouros que milénios antes dele haviam construído.

         - Esta manhã estando eu com a máquina a roçar as ervas do caminho que confina com a entrada da quinta, vejo vir ao meu encontro um casal do género bon chic bon genre. Ela loira, alta, branca; ele austero, sóbrio, com ar de professor catedrático. Param para me falar, dizem que gostam da casa, que o tempo está magnífico para trabalhos como este que estou a fazer, que passam por aqui às vezes no seu passeio matinal. Não quis ser indiscreto e não fiz perguntas. Depois eles prosseguiram o passeio, a inevitável garrafinha com água, um olhar deslumbrado a pousar na paisagem que nesta altura do ano merece não só ser admirada como louvada.


         - Ontem esteve aí o Brejnev. A dois fizemos muito trabalho. Consegui, enfim, transplantar para a terra uma cica e uma figueira que estiveram anos envasadas à entrada da casa. Depois, numa série de árvores de fruto, limpámos o escalracho, estrumámos e cortámos os ramos mortos. Eu com a roçadora, cortei o autêntico mato que cercava a piscina. Tanto trabalho sob um calor tórrido, mas no final, vendo as transformações, detive-me a olhar deslumbrado a beleza reposta do espaço.