Terça, 3.
A minha velha amiga Alzira que parou
aqui no domingo vinda do Algarve e com quem fiz um lanche ajantarado, admira-se
do trabalho que eu levo a cabo. Varre-me de perguntas: se não me canso, se não
me magoam as costas, como arranjo paciência para tanto. Respondi que isto, pelo contrario, dá-me saúde,
realiza-me numa vertente tão importante como a escrita, a leitura, a
contemplação. Se residisse numa padiola em Lisboa, já estava morto ou roído de
reumatismo, neurastenia, poluição e à mercê dos impostos que o actual
Presidente da Câmara aplica aos lisboetas como se eles fossem a banca onde vai
sacar os milhões todos os meses. Riu-se. “Tu não mudas.”
- Ontem, o sector dos comboios imitando o seu congénere francês, fez
greve. Felizmente não arredei pé
daqui, a tarde sem chuva consagrada a roçar a erva daninha junto à casa.
Aguentei para cima de uma hora de máquina em punho. Depois esperei pelas dores
lombares, mas estas recusaram instalar-se e eu suspirei de jubilação.
- Dia de discussões inflamadas, há alturas assim. Fui ao encontro do João
Corregedor que me esperava na Brasileira. Aí encontrei o Gordilho e o meu amigo
economista X com quem simpatizo sobremaneira. Discussão acesa com o artista de
joias. Para ele que se tem na mais alta importância, só é verdadeiramente
alguém quem aparece referenciado em revistas nacionais e estrageiras como é,
naturalmente, o seu caso. Todos os que não possuem o seu nome nessas revistas,
jornais, prospectos e mais não sei o quê, não existem. Tentei arrefecer-lhe o
ego, mas ele atirou-me: “Tu nunca concordas com ninguém, estás sempre do
contra.” A verdade é esta: quem poderá saber quantos dos artistas em todas as
áreas, dos hoje muito louvados, aos obscuros que paulatinamente realizam as
suas obras, ficará na história, será lido, admirado, estudado daqui a
cinquenta, cem anos? Nos tempos modernos, eu não ignoro que um nome, qualquer
que ele seja, é fruto de propaganda e esta fruto de amigos, relações políticas,
de grupo, etc. Todos estão nos jornais e revistas, vão às televisões, aparecem
nas recepções, são vedetas inchadas de vaidade e orgulho. Mas serão eles os
verdadeiros artistas, aqueles que o tempo não deixará esquecer? Serão as suas
obras suficientemente importantes, profundas, inovadoras, inquietantes, que
atravessarão o tempo para encontrar novos leitores, interessar outros olhares,
sensibilidades e ouvidos para as obras sinfónicas? Veja-se o caso dos prémios
Nobel. Quantos são os que hoje lemos? Em paralelo quantos dos que não obtiveram
o galardão continuam a esgotar edições e a serem estudados e lidos com paixão! Para
o fim, o Gordilho saiu-se com esta que me encheu de satisfação: “O que vale é
que tu dizes tudo com um grande sorriso, e nunca te chateias com ninguém!”
Assim é, com efeito. Quanto ao mais que diabo! Não quero pensar como toda a
gente, desejo pensar pela minha própria cabeça. E se não o faço coincidindo com
a maioria, é mérito meu ou demérito dos outros?
- O dia, como disse, estava tocado do desvario. No Príncipe para onde
nos deslocámos, encontrámos o Carlos. Abancam os do costume: João, Mário,
Paulo, eu, no topo da enfiada da mesa mais dois desconhecidos. Carlos começou a
beber como é seu hábito. Marcharam dois copos cheios pelo empregado, veio mais
um tanto do copo do João, depois de uma garrafa perdida e assim por diante. Eu
que estava na frente do meu amigo, alertei-o. Em pouco tempo o seu rosto estava
rubro, a voz muitos decibéis acima do normal, os temas baralhados, a confusão
instalada. Ele irrita-se comigo, porque não gostou que eu tivesse dito que estava ébrio. A coisa foi de tal violência que eu e o Paulo abandonámos a mesa. Irmão
insistia que não estava bêbado, pela razão simples que nenhum alcoólico o
reconhece. Como ele não tombou e fazia o 4, estava, naturalmente, sóbrio.