sexta-feira, março 18, 2016

Sexta, 18.
O homem civilizado nunca está concluído. E quer-me parecer que nos tempos presentes, não obstante aquilo a que os políticos chamam os “avanços tecnológicos e qualidade de vida”, estamos a regredir ao tempo das cavernas e do salve-se-quem-puder. Postos de parte os elementos culturais e religiosos, o inteligência e a fraternidade, os monstros que hoje habitam o Planeta são capazes dos crimes mais horrendos contra o seu semelhante. A divindade omnipresente é o dinheiro. É dele que parte tudo com que compram o efémero das coisas supérfluas e vendem a dignidade e a honra. Vem isto a propósito da cena filmada anteontem numa praça de Madrid quando uns quantos boçais do futebol, sentados nas bancadas, atiravam moedas a um grupo de migrantes famintos que rabiavam em busca das peças perante a gargalhada alarve dos espectadores.

         - Fui ao médico para o ouvir dizer que a dor lombar obtida pela minha obstinação em trazer o jardim e tudo por aqui com a dignidade que a Natureza na sua condição nobre dispensa, não passava de uma simples dor muscular que um qualquer anti-inflamatório desempena. Estando na Estrela, desci a penates a Infante Santo, olhando extasiado prédios e paisagem outrora outra, quando por ali veraneava em desvairos amorosos para ir à Embaixada da Áustria quase a chegar ao rio. As reminiscências nunca me largaram: o prédio onde viveu Fernando Namora, o jardim da Estrela hoje bem cuidado e onde esperei com Saramago numa noite fria a Isabel que tinha ido velar o corpo do pai falecido naquele dia, a esplanada do próprio jardim cuja agitação nocturna se irmanava no desassossego em que andava nessa altura o meu espírito, José Saramago já apartado da minha amiga e de mim, que lobriguei numa manhã, absorto, enquanto lhe engraxavam os sapatos, a Basílica onde esteve exposto o corpo do meu colega Fernando Balsinha, o hospital da CUF onde fui fazer companhia tantas vezes ao Augusto Tejo antes de morrer no Pulido Valente com trinta e três primaveras, as tardes felizes com o Alberto na Dione... enfim, todo um mundo que foi o meu e que os anos não olvidam e às vezes sadicamente desbravando o tempo se impõe com uma tal nitidez que é como se hoje voltasse aos meus bravos vinte anos.        

         - Almocei na velha Trindade. De seguida entrei na fnac do Chiado hoje sem pivete a bufas, deambulei pela floresta de livros, tomei café acompanhado com Strudel e fui ao encontro do Simão e da Conceição. Por lá me quedei até ao fim da tarde em consórcio com um velho poeta conhecido das lides literárias de língua afiada. Pensando eu que havia suspendido as memórias de antanho, eis que mergulho ainda nelas pela mão do visitante. À tona vieram os meus tempos de jornalista, os primeiros passos na escrita, os relacionamentos sociais, políticos e artísticos, Maria Ondina Braga que achava os meus livros filosóficos, tudo contado com a gargalhada desbragada que nos atingiu aos quatro. Não ouve propriamente má-língua. Antes sururu de anedotas de que o meio intelectual é farto e de que os intelos não escapam por via de uma sacrossanta razão de nobilitar pelo anedotário a vidinha lacrada de certas figuras e figurões. O “príncipe de Palmela” (como eles me chamam) ausentou-se pelas seis da tarde rumo ao vaporetto que o remeteu aos seus domínios...     


         - Entrei há minutos da “nadação” (para falar como Madame Juju). Ou antes do Retiro Azul onde fui comer uma sopa de “glumes” (definitivamente Madame de Juju não me larga) cozinhada à moda antiga que me soube como se tivesse ingerido num desses restaurantes ditos gourmet uma iguaria triturada, amassada, batida, desossada que a ciência das cozinhas a preto e branco, sem esquecer o avental traçado ao peito e o chapéu alto dos chefes manipuladores dos alimentos e exaustores (estamos na cozinha, não é?) de somas astronómicas para coisa nenhuma, mas aonde aportam os saloios endinheirados que a democracia fabricou à pressa ou saídos do concurso da farinha Amparo que não sei se ainda existe.  Seja como for, a grande malga que me aqueceu o estômago e o bife com ovo a cavalo, tudo coisa de outros tempos quando a alimentação era primorosa e saudável, restabeleceu as energias gastas na parlapatice do sujeito a correr idiotamente a toda a presa durante meia-hora de uma ponta à outra do tanque.