Domingo, 20.
As linhas encomiásticas ao meu sucesso
com o Kugelhopf são para esquecer. Então não é que me esqueci de pôr os
duzentos gramas de açúcar da receita! Isto só eu! Sou tão apaixonado, ponho
tanto no que faço, desfraldo hossanas enquanto me atiro aos projectos que me
proponho levar a cabo, que no meio de todo o alvoroço sobra sempre qualquer
coisa a estragar a aventura. O bolo está uma delícia, tem boa consistência, boa
pinta, é saboroso, mas... falta aquilo que define qualquer doce – o adoçante.
Logo à memória me veio os jantares na Rua de S. Marçal, e aquele convidado,
cozinheiro de boa têmpera, a quem no final perguntei se tinha gostado: “Bom
está, mas não sabe a nada.” Catrapus
pum-pum.
- Depois do almoço com a minha velha amiga que ocorreu no restaurante do
Corte Inglês, dei um salto à Gulbenkian e passeei com o vagar dos domingueiros
no jardim. Nesta altura os acantos estão soberbos, cheios do cio que os torna
mais verdes, já com o tronco-flor a salientar-se do emaranhado de folhas largas
e fortes no meio de um tapete de era que os sustenta em humidade e luxúria. Os
meus daqui, embora não estejam lascivos como os da Fundação, exibem folhas
largas conquanto os falos teimem em não levantar arraiais de excitação... Seja
como for, a hora que passei na Gulbenkian, encheu-me de júbilo e prazer a par
dos ensinamentos que sempre colho quando por lá vou.
- De resto, o regozijo começou muito antes, quando pelas dez e meia
entrei no estabelecimento, comprei o Lire
e o Público e me sentei comodamente num daqueles espaços pequenos e simpáticos
que regurgitam com poucos clientes nos andares superiores. Aí, diante de uma
chávena de café, afastado o barulho dos “desportistas” da eléctrica chinesa (já
lá vou), pude viajar pelos horrores que hoje conquistam o mundo. Começa a ser
uma espécie de sadismo ler a imprensa, ver televisão ou escutar a rádio. Todos
falam em uníssono da morte, da estupidez humana, da loucura colectiva, da
guerra, das crianças abandonadas, dos velhos deixados no Mediterrâneo, dos milhões
de povos e raças que se arrastam pelos países ditos civilizados, que os querem
ver pelas costas afogados nas águas que cercam o continente europeu, da
corrupção que a democracia fabrica como pão quente (o jornal traz 14! páginas
com os nomes dos gananciosos e das suas negociatas labirínticas) e dessa caritativa
instituição secreta que é o futebol. Quando falo do sentimento em que mergulhei
às primeiras horas de uma manhã de domingo, quero dizer do abalo que
intimamente vivi, acoitado em mim, alheio ao que à minha volta ocorria,
viajando pelo mundo sem sair da cadeira e do espaço aquecido, quando lá fora
chovia e a abóbada de chumbo que cobria o céu ameaçava rebentar. É desta emoção
íntima que eu sou, desta florescência que só eu carrego, deste carrefour onde
se cruzam os rios que nunca atravessarei ou atravessando me deixo ir por oceanos
de graça e plenitude.
- Quando cheguei à estação, vi a gare com centenas de passageiros
fardados com o logo da eléctrica dos olhos de arroz nos fatos de treino. À
medida que o trajecto prosseguia, foram entrando mais e mais. A dada altura apareceram
dois casais fardados a rigor, autênticos cilindros eles, verdadeiros alguidares
de banha elas, perfumados a tabaco e a sovaquinho que se sentaram na minha
frente. Melhor: espapaçaram-se, cansados, nos bancos, uma perna para cada lado,
o olhar vítreo perdido na paisagem, o corpo murcho desenhado no fato de lycra. A
meio do percurso, a algazarra era medonha, todos falavam e ninguém se ouvia.
Abandonei a leitura e pus-me a observar. Como a observação é casada com o
pensamento, larguei a compreender o que levara aquelas almas a um exercício
cansativo, decerto nada apropriado para eles, quando o fundamental está a
montante, quero dizer, nos hábitos alimentares e de conduta. Tudo aquilo tinha
o mesmo espírito de uma romaria ao Senhor dos Aflitos. O pagode medonho que
abandonou o trem no Pragal para se juntar às filas extensas que subiam a
encosta que decerto terminava nas portagens para iniciar a travessia da ponte
Salazar, perdão, 25 de Abril, era compacto e de todas as idades. Chineses não
vi nem um. O que conclui foi que somos como somos: criaturas singulares,
analfabetas, entusiastas, sem correspondência com coisa nenhuma, nem hábitos de
coerência. Muita daquela gentinha, ao meio-dia, deve ter afinfado um rotundo
cozido à portuguesa e depois ficado pela tarde fora a arrotar satisfeita. Enfim,
uns pobres coitados.