quinta-feira, março 31, 2016

Quinta, 31.
Um grupo de angolanos foi condenado a vários anos de cadeia por “actos preparatórios de rebelião e associação de malfeitores” quando o que eles fizeram foi ler colectivamente um livro. Entre eles está Luaty Beirão que esteve há tempos 36 dias em greve da fome. No fundo, os activistas pelos direitos humanos, só querem a demissão de Eduardo dos Santos, no poder há quatro décadas. No poder de uma forma déspota, enriquecendo e dando a enriquecer não só a família como os oficiais do exército que o mantêm, numa espécie de democracia que não passa de uma oligarquia, onde a liberdade de expressão não tem lugar. António Costa e o Presidente da República portuguesa, não estiveram à altura ao não condenar um julgamento fantoche. As negociatas com a menina Isabel dos Santos, a ricaça que ninguém explica onde foi buscar os milhões quando ainda há poucos anos vivia pacatamente numa sanzala, são mais importantes que a democracia, a liberdade e a honra dos angolanos que lá como cá noutros tempos lutam pela democracia participativa e plural.  

         - Foram gastos 15 milhões de euros na “cidade do futebol” que hoje o prof. Marcelo inaugura. Os homens da bola dizem, orgulhosos, que o dinheiro saiu do seu bolso e que nada devem ao Estado. Mordam aqui a ver se eu deixo! É preciso serem descarados! Então e os milhões que os governos (da direita à esquerda, desculpem, ao PS) despendem para isto e para aquilo, as negociatas de terrenos, os impostos não liquidados, os ordenados dos futebolistas em atraso, a corrupção com os contratos dos jogadores, etc. etc. para não falar na exploração dos trabalhadores, no desrespeito pelos seus direitos que a Amnistia Internacional hoje denuncia. Num país miserável, com carência de tudo e mais alguma coisa, como se permite que um sector profissional seja uma espécie de povo eleito dentro de uma nação acossada pela pobreza. Boçais indiferentes à desgraçada de pelo menos dois milhões de cidadãos, que passam dificuldades e olham esgazeados a luxúria que meia dúzia de pacóvios exibe com arrogância.   


         - Almocei com Fr. Hélcio num restaurante vegetariano numa rua paralela à Avenida da Igreja. Tendo chegado cedo, percorri o bairro de Alvalade a pé, sem despegar das recordações do passado como do patrão da firma de advogados Jeremias Carrapato e Associados, Lda. e ministro das Obras Públicas, que eu narro (no Rés-do-Chão de Madame Juju) a jantar dentro do Centro Comercial com o mesmo nome. Passei defronte do prédio onde morou o Jorge Tavares Rodrigues, irmão de Urbano, e lembrei-me de uma série de amigos e conhecidos que no bairro habitavam no tempo da outra senhora com linha directa ao Vá-Vá de queridas memórias. Fr. Hélcio apareceu desengonçado devido à operação que fez à coluna, mas de língua afiada, e no final do simpático repasto fez questão que eu fosse conhecer o apartamento que comprou na Avenida do Brasil. Palmilhámos ruas e ruas em diagonal, até ao prédio construído pelos anos quarenta, com porteira sentada na espaçosa entrada, dois elevadores que funcionam mal e inquilinos (direito e esquerdo) que não se falam. O apartamento fica no último andar (o sétimo), com vista para amontoados de cimento armado de um lado e de outro que se encostam como cogumelos oferecendo uma paisagem dantesca e terrificante. O andar é espaçoso, grandes salas, duas marquises ensoleiradas, muita luz e uma atmosfera de revista de decoração à portuguesa onde parece não viver ninguém. Ficámos pela tarde a conversar na marquise do lado sul como se fôssemos o casal Cavaco Silva na sua dependência envidraçada a alumínio da Travessa do Possolo a desfiar recordações. Quando me conveio raspei-me, apanhei um autocarro e saltei em Sete Rios. Dentro do comboio que me trouxe até aqui, esbarrei com o mesmo casal jovem que tive na ida pelas oito da manhã. Duas aventesmas de se lhe tirar o chapéu. Ele, de grandes farripas escuras, o rosto toldado de maciez e olhos lassos, o físico sem corpo coberto de escuro, as calças a meio do rabo que não tinha, casaco de couro esfiapado; ela de cabelo vermelho, grandes mamas que espreitavam por uma nesga da blusa negra, ar desleixado que parecia denunciar cio retardado ou promessas não inteiramente satisfeitas. De que falavam eles? À tarde como de manhã, escutei a mesma ladainha que arrastava a mãe dela pelas ruas da amargura e ele ameaçava fazer o que fizera ao pai, isto é, agredi-la. Ele insistia com ela para procurar casa onde pudessem dar largas ao amor que cada um sentia pelo outro, sem a restinga paternal, mas já com a sarna da velhice adiantada que vestiam sem saberem.