Sexta, 1 de Abril.
Anteontem entrei na Brasileira para
satisfazer os meus amigos artistas que reclamavam já há uns dias a minha
presença. Cheguei a Lisboa por barco, atravessei a Praça do Comércio sem
sombras nem esqueletos, subi o Chiado vazio, e só então me dei conta como estou
desfasado da vida lisboeta. A começar pelo horário de abertura das lojas.
Antes, se não estou em erro, todas franqueavam portas às nove da manhã. Hoje é
às dez. Todavia, foi com grande prazer que veraneei pela Baixa despovoada.
Transitava no ar um leve aroma a aldeia e ia jurar que respirei até o perfume
de uma lareira acesa algures, num desses andares lúgubres, hoje transformados
em hostel que pululam como pragas pela zona pombalina. As velhas lojas de um
charme encantador já faleceram, os cafés-catedrais de convívio e tertúlia
política foram eclipsados por coisas frágeis de gosto, banais, the same, iguais aos que se vêem em
Paris ou Madrid, liofilizados a um ponto que temos medo de apanhar uma pulga ou
percevejo vingativo, tão descaracterizados que não assentamos arraiais senão
por minutos. Não é tanto que deseje a todo o custo as velhas carcaças que sustentam
a vida agradável desaparecida, mas o que veio depois são monstruosidades rústicas,
a imitar qualquer coisa que chega de longe, a uniformizar a paisagem urbana, onde
respiramos os mesmos odores, comemos a mesma comida mandibulada, sentimos a mesma
atmosfera sob o fundo recolhido da pobreza armada para nos alcandorar a alturas
de metrópole europeia. Todos diferentes, todos iguais. E nesse cavado são
despejadas as características de um povo, a sua personalidade, originalidade, a
maneira descontraída de viver. Querem-nos formatados, globalizados. São os
ricos que ganham com isso, porque eles esgueiram-se para os lugares originais,
construídos como peças únicas, onde a turbamulta não tem acesso.
- Eu faço parte do número de amigos que trouxe o Roman de volta a
Portugal. Fui visitá-lo ontem a casa do Fortuna que o acolheu. Está com cancro
no estômago em estado adiantado e o exército ucraniano queria obrigá-lo a batalhar
na sua fragilidade. Vai ser operado no IPO brevemente. Não gostei nada da cor
que tem, mas incitei-o a combater o mal. Disse-me que tem dores horríveis. Um
homem potente, forte, cheio de força, está reduzido a uma alface delicada. Contudo,
da máscara de sofrimento, arranquei-lhe por momentos o seu precioso e caro
sorriso.