sábado, abril 02, 2016

Sábado, 2.

Por aqui o dia corre azafamo. Trago aí um excelente homem que com o seu labor traduz em beleza o espaço. Como os meus leitores sabem, sou desse lado nem sempre traduzível onde a arte pousa e ao pousar transforma não só o exterior das coisas como o seu interior em algo diáfano. São pequenas alterações, um corte de árvore envelhecida ali, a extração de um tronco maluco mais adiante, alinhamento dos arbustos rente ao terreno do vizinho... Ontem estive duas horas sem parar agarrado à roçadora que enfim trabalhou. As urtigas e ervas venenosas que cercavam toda a frente da casa, foram cortadas e o chão é hoje um tapete verde onde só faltam as florinhas campestres que tanto atraíam os pintores do século XIX. Já passeei não sei quantas vezes sobre ele a admirar a beleza que o conjunto forma com as laranjeiras a desenhar uma copa larga de sombra no chão oferecendo à vista nuances de verde. Numa pequena área o homem depositou a lenha que me há-de servir no próximo inverno. Da porta da cozinha, fico longos momentos a olhá-la sem a ver. O que observo e enche o meu cérebro, é o Inverno que chegará na estação própria. Convoco nesses instantes os serões diante do crepitar do fogo, o seu íntimo sussurro, o abandono dos sentidos tarde na noite, as leituras aconchegantes antes de adormecer, o fio de música vinda do alto do firmamento cheio de estrelas que em diálogo comigo me convidam a decifrar o seu enigma. Por agora porém, através da janela baixa onde escrevo, tenho as pereiras, as macieiras, os damascos na sua candura nua, talvez um pouco excessiva, enquanto as amendoeiras e ameixieiras soltam exuberantes vestes brancas que o sol envergonhado resplandece. Há na tarde que começa, uma pacatez, um ressalvo de luz, um silêncio deslavado que afaga tudo à volta. Depois esse silêncio fez-se puro, afagando a terra, enquanto corria lá no alto um bando de nuvens escuras pressagiando para a noite chuva. Alagado do deslumbre do que aqui se anuncia, recolho-me a admirar quem em sombras atravessa o horizonte acobreado. Do que vi me calo; do que pressagiei me desobrigo de revelar. A mudez é apanágio dos loucos ou sabedoria dos prudentes.