Sábado, 2.
Por aqui o dia corre azafamo. Trago aí um
excelente homem que com o seu labor traduz em beleza o espaço. Como os meus leitores
sabem, sou desse lado nem sempre traduzível onde a arte pousa e ao pousar
transforma não só o exterior das coisas como o seu interior em algo diáfano. São
pequenas alterações, um corte de árvore envelhecida ali, a extração de um
tronco maluco mais adiante, alinhamento dos arbustos rente ao terreno do
vizinho... Ontem estive duas horas sem parar agarrado à roçadora que enfim
trabalhou. As urtigas e ervas venenosas que cercavam toda a frente da casa,
foram cortadas e o chão é hoje um tapete verde onde só faltam as florinhas
campestres que tanto atraíam os pintores do século XIX. Já passeei não sei
quantas vezes sobre ele a admirar a beleza que o conjunto forma com as
laranjeiras a desenhar uma copa larga de sombra no chão oferecendo à vista
nuances de verde. Numa pequena área o homem depositou a lenha que me há-de
servir no próximo inverno. Da porta da cozinha, fico longos momentos a olhá-la
sem a ver. O que observo e enche o meu cérebro, é o Inverno que chegará na
estação própria. Convoco nesses instantes os serões diante do crepitar do fogo,
o seu íntimo sussurro, o abandono dos sentidos tarde na noite, as leituras
aconchegantes antes de adormecer, o fio de música vinda do alto do firmamento
cheio de estrelas que em diálogo comigo me convidam a decifrar o seu enigma. Por
agora porém, através da janela baixa onde escrevo, tenho as pereiras, as
macieiras, os damascos na sua candura nua, talvez um pouco excessiva, enquanto
as amendoeiras e ameixieiras soltam exuberantes vestes brancas que o sol
envergonhado resplandece. Há na tarde que começa, uma pacatez, um ressalvo de
luz, um silêncio deslavado que afaga tudo à volta. Depois esse silêncio fez-se puro,
afagando a terra, enquanto corria lá no alto um bando de nuvens escuras pressagiando
para a noite chuva. Alagado do deslumbre do que aqui se anuncia, recolho-me a
admirar quem em sombras atravessa o horizonte acobreado. Do que vi me calo; do
que pressagiei me desobrigo de revelar. A mudez é apanágio dos loucos ou
sabedoria dos prudentes.