sexta-feira, abril 29, 2016

Sexta, 29.
Todo o dia de ontem não larguei a roçadora. A Piedade que esteve cá em casa, foi alertar-me para o esforço de andar horas, sob sol já escaldante, a roçar o mato que as chuvas contínuas trouxeram. Hoje, mais calmo, alagado das palavras e dos sentimentos que me acudiam à memória plasmados nas páginas de Matmatu que estou a rever e só o Simão conhece, dediquei a manhã ao corte e costura. Não sei o que dirão os editores. Uma coisa é certa: a três anos da sua conclusão, o que leio parece-me muito bom. O romance é complexo, denso, obriga o leitor a grande atenção, mas penso que as suas páginas são tocadas pela magia da escrita. Deixo-vos este fragmento do final do capítulo em que o protagonista, o médico de Medicina Interna, Peter de Santa Clara, recorda o amor perdido.  


Do lugar que acolheu o meu corpo fatigado, acordei vastas vezes com o barulho dos passos dos guardas na sua ronda nocturna. Numa das vezes vieram acomodar-se nas cadeiras ao lado do canapé, fumando e falando sobre as suas experiências sexuais. Um deles, pelo que percebi, era casado, o outro casava e descasava conforme as oportunidades. Não tenho coragem de contar o que escutei e ainda agora coro só de recordar o que os meus ouvidos retiveram sem querer. Uma coisa devo adiantar: nenhuma das situações descritas, foi tocada pela luz do amor. Aqueles seres de porte impressionante e arrogância física, eram afinal dois escravos dos desejos firmados na dependência obsessiva que trazia a marca da solidão instalada no corpo e alastrada à alma. Quem ama é prudente, reservado, vive de algum modo suspenso de um perpétuo movimento ascendente, paira lá longe nas colinas dos murmúrios, confunde o tempo, multiplica os espelhos de água, arde no timbre do silêncio, sofre na alegria. Pessoalmente, depois de tantos dias de calvário, sinto que desprezando-te me encontro mais próximo de ti. Não gostava de morrer e deixar interrompido um amor que não encontra paralelo senão em duas vidas que se separaram e apartando-se se unem para a eternidade. Os seres que amei antes de ti, estão estigmatizados em mim através de ti. Tenho saudades de todos por teu intermédio.
"O moço de Palmela" cortou o cabelo