Quinta, 21.
Ontem de manhã antes das oito no Chiado.
Primeiro, com a minha gestora bancária, depois com o Corregedor e amigos na
Brasileira, de seguida almoço no centro comercial, seguido de olhada aos livros
na fnac. Na Brasileira a discussão foi acesa, com o João Corregedor a estabelecer
num ritmo bravo as suas ideias, atirando-se a um “artista” que não costuma ter
pouso na catedral dos avermelhados e apareceu a desfigurar a honorabilidade do
pintor Guilherme Parente, à mistura com a política adornada do velho conceito
que aproveita a quem aproveita e quando aproveita, segundo o qual não se atacam
pessoas, mas políticas. Atirado para o lado o Público como “pasquim”, o que entrou
no combate e fez percurso ondeante, foi este e aquele escritor, este e aquele
livro, este e aquele político, numa rebaldaria de impropérios que os selou como
medianos, oportunistas, fazedores de ideias, fascistas e assim. Corregedor
conserva o ímpeto que trouxe da tarimba de muitas décadas no Parlamento e,
conhecendo por dentro as víboras, não esconde as simpatias partidárias que
sempre foram as suas e não desarma quando alguém discorda ou o ataca com teses
opostas. A dada altura toca o telefone do Gordilho, o brouhaha baixa, e eu oiço o escultor dizer: “Está aqui o A, o B, o
C, e o moço de Palmela.” Pensei naquela outra cognominação (“o príncipe de
Palmela”) e digo para os meus botões que qualquer delas me serve, posto que me
deixem tranquilo na minha toca. Dito isto, pode parecer que as discussões tomam
laivos de violência verbal, acusações primárias envelopadas de pequenos ódios.
Nada disso. Corregedor e todos os outros, nasceram depois da Segunda Grande
Guerra e são, portanto, pessoas bem nascidas, com elevada educação e princípios
puros que só as gerações que vão do pós-guerra aos anos Setenta possuem. Há,
decerto, maldade, picardia, acidez, mas não existe raiva, costas voltadas, murros
no estômago. É ao nível do cérebro, dos valores, do confronto de interesses
intelectuais que tudo decorre e é selado com uma palmada nas costas ou um handshake. Pelo meio-dia e meia hora, o
cenáculo levantou amarras. Eu desci o Chiado com o nosso deputado em cavaqueira
amena sobre o amigo comum, António Borges Coelho, que recentemente escreveu mais
um volume da sua História de Portugal, o quinto sob o domínio filipino. João
Corregedor dá-me por metade, mas nem por isso a sua figura meã deixa de sobressair
quando fala das coisas que lhe vão directas ao coração. À porta do centro
Chiado, continuámos a cavaqueira por algum tempo mais. Ele empenhou-se em que
eu publique O Rés-do-Chão de Madame Juju
numa pequena editora como é meu desejo e nesse sentido vai reunir-se com o
editor. Houve, contudo, naquilo que perpassou do que trocámos, alguma nostalgia
de um tempo que não volta – e isso foi o menos agradável das horas que passámos
juntos.
- Porém, das minhas incursões ao mundo invejoso, da má-língua,
depreciativo dos valores de cada um, eivado de sisudas importâncias e
convencimentos lorpas, fica-me sempre o sabor grandiloquente da solidão, da
torre do vento tangendo na corda do eremita que eu sou. Não tenho nenhuma
espécie de ambição além de escrever, pensar, ser independente mesmo que isso me
aparte de tanta coisa que enfeita o intelectual dos nossos dias. Se me
perguntassem: entre seres publicado e perderes a independência, o que preferirias.
Não vacilaria em afirmar a independência para mim mais sagrada. Não tenho a
vanidade de me ver exposto nas montras das livrarias, ser comentado nos
jornais, admirado na televisão, lido nas universidades. Todo esse mundo é-me
estranho e sei por experiências precoces quanto esse cheiro nauseabundo a supérfluo,
a subserviente, a coisa admirada pela rama, me é desagradável e me coloca ao
nível da vulgaridade da vedeta dos concursos de TV que a marrequinha força a
cenas de sexo ao vivo. Escrever é um acto sagrado que dispensa as línguas viperinas,
a palmada nas costas, o elogio falso, a passarela que retalha em mil bocados
toda a interioridade, o secretismo e expõe à concupiscência aquilo que o
escritor pela sua essência guarda de mais precioso – as largas sombras e o grande
silêncio.
- À mesa do café no Rossio, duas mulheres conversavam. Uma dizia e
repetia à outra: “A velhota está dimensiada.” É o dialeto hotentote dos políticos.
- Mais um drama no Mediterrâneo. Um barco naufragou perto de Kalamata
nas ilhas gregas. Morreram 500 migrantes, 48 escaparam. Eram egípcios, somalis,
etíopes. Nada disto recompõe a humanidade aos barões de Bruxelas.