segunda-feira, março 23, 2020

Segunda, 23.
Em boa verdade comecei a quarentena antes da imposição do Presidente dos afectos e das selfies, agora reduzido a estimar-se a si próprio em solidão, sem o palco das ruas. Como fazia hoje duas semanas que me confinei a casa e às idas breves ao supermercado - em verdade devo falar em três semanas dado que já antes tinha estado em Lisboa uma única vez -, pensei que seria curioso ir visitar a cidade que me viu nascer, mais enquanto repórter que afinal nunca deixei de ser e que estas páginas, para quem estiver atento, certificarão que o jornalista nunca me abandonou. Mas depois, ao ver na TV5Monde o que vai por Espanha, Itália e França para não falar doutros país, reflecti e desisti. Talvez a nostalgia das ruas desertas, das praças abandonadas ao passante apressado, dos cafés fechados ou vazios, me levasse aos meus tempos de adolescente quando endiabrado calcorreava os sítios mais incríveis em busca do que o meu corpo desassossegado precisava. Nesse tempo a Baixa era um sítio para se estar, com as esplanadas pacificamente expostas a uma certa clientela burguesa, que não dispensava o chá na Benard ou na Suíça, como a tia Dália que todos os dias não faltava a essa cerimónia civilizada e absolutamente indispensável. A vida desse tempo era calma, conformada, medíocre, mas afável, solidária, secreta. Não havia a diversidade de coisas e coisinhas que hoje alimenta o rústico citadino. O que tínhamos à mão era um punhado de ideias, uma flor de laranjeira que nos perfumava os dias, uma sintonia com o silêncio que fazia de cada ser um possível informador da PIDE e depois da PIDE-DGS. Era esse clima rasteiro onde a liberdade não circulava que nos tolhia, nos obrigava a cadenciar os dias num fio de equilíbrio para muitos insustentável. A vida verdadeira andava no subsolo da cidade, fazia-se de pequenas cumplicidades, de jantares bichanados, de encontros nas sombras das palavras sussurradas, do medo e da paralisação e quantas vezes da bajulação mais incrível que expõe o ser humano à abjeção. O curioso porém, é que sabendo-nos pobres e isolados, o organismo psíquico e social, inventava todos os dias o rigor luminoso da sobrevivência. Não tínhamos importância nenhuma, mas éramos heróis enquanto desesperados sonolentos que apesar da desgraça encontrava nervos, seiva, força para ir quotidianamente mais além e ultrapassar a paralisação e fazer dela o húmus que engrossa a raiva e levanta o moral do mais inflexível defensor da liberdade. Movíamo-nos por ideais, por filosofias, pelo conhecimento enquanto prancha que surfa as ondas do imobilismo, do analfabetismo, do poder limitado à subsistência primária, ao espectáculo dos ricos e poderosos, que nos tinham em sentinela na rectaguarda da autoridade que rentabiliza a miséria e a escravidão. Reteve-me em casa, hoje, a exposição da dor e do sofrimento, a sensação que estou saudável e não devo desrespeitar a aflição daqueles que jazem abandonados dos seus covardes familiares, entregues à ternura, à coragem, à humanidade de médicos, enfermeiros e outros seres humanos de uma generosidade imaculada que, tendo medo da morte, nela não pensam para dar a sua própria vida pelos seus pacientes. Que as ruas e avenidas de Lisboa sejam por este tempo aterrador, o lugar onde o vento circule desvairado, levando para o fundo da terra ou para os abismos do mar, a peçonha habilmente construída para destruir a humanidade - obra maravilhosa e transcendente de Deus. 


         - Comecei a leitura do segundo volume do Diário (1927-1941) de Virginia Woolf. Outro calhamaço de 600 páginas.

         - Com o sol voltaram as vindimeiras do Zuckerberg. Por aqui a vida exibe o seu sorriso quotidiano. Acordei pelas sete e logo entrou no meu quarto as vozes das mulheres no trabalho vindimeiro. Falam pelos cotovelos da vida alheia em vez dos cantares folclóricos de antanho. Antiquado duma figa, moderniza-te.


         - Amigos telefonam-me a dizer que estão a cair na depressão por não poderem fazer a vida de antes da praga. Tento ajudá-los como posso, passando horas ao telefone. Eu que até estou satisfeito por ter mais tempo para consagrar aos trabalhos lá fora. Como hoje que avancei sobremaneira no corte do relvado que vai das traseiras da casa à piscina, na confecção de um bolo de limão, um nada nos arrumos dos livros, duas horas de leitura, um pouco de ménage porque disse à Piedade que não viesse e assim. Com o romance encalhado, com o estado da vida actual, tento combater o desânimo aplicando-me no que a subsistência (é disto que se trata com a nossa existência encalhada?) me impulsiona. Há, todavia, amigos e ex-amigos com quem não falo há anos que gostaria agora de o fazer, não se desse o caso de ter perdido os seus contactos quando da fase atribulada dos telemóveis há dois anos.