Terça,
10.
Hotel
ruiu na China. Servia de quarentena a uma centena de doentes com Covid-19. No
desastre morreram pelo menos dez pessoas e dezenas ficaram feridas. O país
parece acossado pelos demónios amantes da democracia.
- A prova da vulnerabilidade do
capitalismo, reside no facto de um simples vírus o reduzir à pobreza. Onde está
a solidez destas economias ditas florescentes?! Dá que pensar toda esta
fantasia que promete segurança, conforto e perenidade. Os especuladores das
bolsas choram, o petróleo está em quebra, só o Planeta sorri dos gananciosos
atacados de loucura e desespero, nesta terra que não lhes pertence como não
pertence a ninguém. Apenas temos um lugar, e mesmo assim sem ser nosso - o rectângulo
onde seremos enterrados. Mas isso, varridos de sofreguidão, eles nem se dão
conta, pobres coitados. Vieram ao mundo para ganhar dinheiro e aqui vão ter que
o deixar para os vindouros esbanjarem a tripa-forra, o riso escancarado do
esforço dos defuntos aforradores.
- Ontem estive com o clube da
Brasileira. Saí com o João que insistia fosse à TAP pedir a devolução do dinheiro
pago pelas viagens de e para a Hungria que não efectuei. Disse-lhe que era
inútil, conhecendo a avidez da companhia pelo lucro, a forma como ela lida com
ele, o desprezo que tem pelos passageiros, sabendo de ginjeira quem é o Presidente
de Conselho da TAP, um tal Miguel Frasquinho, “além que ainda posso apanhar a Civid-19” acrescentei. João teimava em me querer acompanhar. Fomos. No
aeroporto estava, com efeito, apenas um punhado de gente. Dirigindo-me aos
balcões da companhia que fora portuguesa, depressa obtive a resposta às minhas
certezas: para poder viajar mais tarde, tinha de pagar e o preço era mais
elevado do aquele que havia desembolsado. Corregedor não cabia de revolta.
Apaziguei-o: “Meu caro, uma coisa é trabalhar (como foi o seu caso) na criação
e feitura de leis; outra é a vida prática, o desajuste e desemparo dos cidadãos
ante a máquina infernal, a distância entre o poder executivo e o cidadão
confrontado com a sua aplicação." É na vida corrente, com as leis que saem do
Parlamento, que a democracia se estabelece, se engrandece e se ajusta ao
elemento último para o qual toda a actividade política devia convergir e
raramente converge - o povo.
- Daí seguimos para o Bairro de
Alvalade onde João é frequentador de um restaurante à moda antiga, espécie de
tasca estreita onde se arrumam umas quantas mesas, não muito longe do mercado.
Devido ao adiantado da hora, o arroz de cabidela ficou-se por uma miragem e
tivemos de nos contentar com pratos comuns por um preço módico. Longa conversa
como é de uso neste conversador amante de
política. Levantámos amarras já passava das quatro da tarde e fomos descendo as
ruas minhas conhecidas onde em casas de outrora, construídas à sombra da
política de habitação do Dr. Salazar, figuras e figurões, residiram ou residem.
Eu ia citando nomes, mas o que me absorvia a atenção era aquele sol aberto,
quente, que avivava os espaços urbanos e aproximava de mim todo um passado sem
paralelo com o presente, como se eu fosse o que estava a mais na encruzilhada
de ruas e memórias. Separámo-nos na Avenida de Roma, ele que por ali mora, de
regresso a casa; eu com passeio mais adiante onde apanhei o comboio de retorno
ao campo de onde não saí nem para chegar ao portão.
- Porque, hoje, manhã cedo, um rancho
de mulheres e alguns homens, como pássaros coloridos, curvadas sobre as cepas
cheias de braços e olhos de infância mal abertos, anunciavam a aurora da vida. Vida
como a de qualquer criança tem de ser orientada, com músculos fortes e beleza
de formas. Pois este bando de mulheres, que passaram todo o dia no primeiro
trabalho de poda, quando eu intimamente lhes suplicava que cantassem uma velha
canção como as suas congéneres do passado, mais não fizeram que falar da vida
alheia tal como é vivida no Facebook.
- Todavia, impulsionado pelo seu labor
e presença, por duas horas apliquei a bordalesa nos damasqueiros e amendoeiras.
O que fica a faltar é quase nada: uma figueira aqui outra acolá, uma velhíssima
ameixieira próxima da casa e pouco mais.
- Ontem, num café, escutei a conversa
de dois médicos na reforma. Falavam do e-mail que tinham recebido para darem o
seu contributo aos hospitais a rebentar pelas costuras devido ao coronavírus. Ambos
não tinham intento de o fazer e um disparou: “Possa, já me chegou a guerra
colonial!”
- No Fertagus cheio como sacos de
babata, uma mulher sentou-se no degrau da plataforma. Chegados a Sete Rios, a
multidão precipitou-se para a saída e a criatura mantinha-se, impávida, nas
tintas para a aflição daqueles que queriam deixar a locomotiva. Então uma
outra, farta de peitos, vestida com um casaco que parecia ter saído do baú de
uma actriz de cinema dos Anos Vinte, disparou: “Ó mulher, levante-se! Não é
preciso ir a Coimbra para perceber que está a estorvar meio mundo, a quarta
classe basta.”