terça-feira, março 10, 2020

Terça, 10.
Hotel ruiu na China. Servia de quarentena a uma centena de doentes com Covid-19. No desastre morreram pelo menos dez pessoas e dezenas ficaram feridas. O país parece acossado pelos demónios amantes da democracia.  

         - A prova da vulnerabilidade do capitalismo, reside no facto de um simples vírus o reduzir à pobreza. Onde está a solidez destas economias ditas florescentes?! Dá que pensar toda esta fantasia que promete segurança, conforto e perenidade. Os especuladores das bolsas choram, o petróleo está em quebra, só o Planeta sorri dos gananciosos atacados de loucura e desespero, nesta terra que não lhes pertence como não pertence a ninguém. Apenas temos um lugar, e mesmo assim sem ser nosso - o rectângulo onde seremos enterrados. Mas isso, varridos de sofreguidão, eles nem se dão conta, pobres coitados. Vieram ao mundo para ganhar dinheiro e aqui vão ter que o deixar para os vindouros esbanjarem a tripa-forra, o riso escancarado do esforço dos defuntos aforradores.

         - Ontem estive com o clube da Brasileira. Saí com o João que insistia fosse à TAP pedir a devolução do dinheiro pago pelas viagens de e para a Hungria que não efectuei. Disse-lhe que era inútil, conhecendo a avidez da companhia pelo lucro, a forma como ela lida com ele, o desprezo que tem pelos passageiros, sabendo de ginjeira quem é o Presidente de Conselho da TAP, um tal Miguel Frasquinho, “além que ainda posso apanhar a Civid-19” acrescentei. João teimava em me querer acompanhar. Fomos. No aeroporto estava, com efeito, apenas um punhado de gente. Dirigindo-me aos balcões da companhia que fora portuguesa, depressa obtive a resposta às minhas certezas: para poder viajar mais tarde, tinha de pagar e o preço era mais elevado do aquele que havia desembolsado. Corregedor não cabia de revolta. Apaziguei-o: “Meu caro, uma coisa é trabalhar (como foi o seu caso) na criação e feitura de leis; outra é a vida prática, o desajuste e desemparo dos cidadãos ante a máquina infernal, a distância entre o poder executivo e o cidadão confrontado com a sua aplicação." É na vida corrente, com as leis que saem do Parlamento, que a democracia se estabelece, se engrandece e se ajusta ao elemento último para o qual toda a actividade política devia convergir e raramente converge - o povo.

         - Daí seguimos para o Bairro de Alvalade onde João é frequentador de um restaurante à moda antiga, espécie de tasca estreita onde se arrumam umas quantas mesas, não muito longe do mercado. Devido ao adiantado da hora, o arroz de cabidela ficou-se por uma miragem e tivemos de nos contentar com pratos comuns por um preço módico. Longa conversa como é de uso neste conversador amante de política. Levantámos amarras já passava das quatro da tarde e fomos descendo as ruas minhas conhecidas onde em casas de outrora, construídas à sombra da política de habitação do Dr. Salazar, figuras e figurões, residiram ou residem. Eu ia citando nomes, mas o que me absorvia a atenção era aquele sol aberto, quente, que avivava os espaços urbanos e aproximava de mim todo um passado sem paralelo com o presente, como se eu fosse o que estava a mais na encruzilhada de ruas e memórias. Separámo-nos na Avenida de Roma, ele que por ali mora, de regresso a casa; eu com passeio mais adiante onde apanhei o comboio de retorno ao campo de onde não saí nem para chegar ao portão.

         - Porque, hoje, manhã cedo, um rancho de mulheres e alguns homens, como pássaros coloridos, curvadas sobre as cepas cheias de braços e olhos de infância mal abertos, anunciavam a aurora da vida. Vida como a de qualquer criança tem de ser orientada, com músculos fortes e beleza de formas. Pois este bando de mulheres, que passaram todo o dia no primeiro trabalho de poda, quando eu intimamente lhes suplicava que cantassem uma velha canção como as suas congéneres do passado, mais não fizeram que falar da vida alheia tal como é vivida no Facebook.

         - Todavia, impulsionado pelo seu labor e presença, por duas horas apliquei a bordalesa nos damasqueiros e amendoeiras. O que fica a faltar é quase nada: uma figueira aqui outra acolá, uma velhíssima ameixieira próxima da casa e pouco mais.

         - Ontem, num café, escutei a conversa de dois médicos na reforma. Falavam do e-mail que tinham recebido para darem o seu contributo aos hospitais a rebentar pelas costuras devido ao coronavírus. Ambos não tinham intento de o fazer e um disparou: “Possa, já me chegou a guerra colonial!” 


         - No Fertagus cheio como sacos de babata, uma mulher sentou-se no degrau da plataforma. Chegados a Sete Rios, a multidão precipitou-se para a saída e a criatura mantinha-se, impávida, nas tintas para a aflição daqueles que queriam deixar a locomotiva. Então uma outra, farta de peitos, vestida com um casaco que parecia ter saído do baú de uma actriz de cinema dos Anos Vinte, disparou: “Ó mulher, levante-se! Não é preciso ir a Coimbra para perceber que está a estorvar meio mundo, a quarta classe basta.”