domingo, julho 31, 2016

Domingo, 31.
Na noite em que o Couto veio sibilar aos meus ouvidos o número 35 mil e que eu não consegui decifrar ao acordar que queria dizer, mas tinha ficado no meu pensamento, recebi um postal dele e da Zitó de férias no Algarve. É um texto que me fez pensar nos tempos das férias grandes como então se dizia, e nos permitia passar três meses na ociosidade total, entre Albufeira, Lisboa e Foz do Douro. 

        “Helder neste cantinho da costa algarvia (Praia do Cabeço) vão-se passando belos dias juntos a um mar quente e longo areal, por onde fazemos algumas caminhadas, para descontrair. Os fins de tarde são muito bons e acabamos por nos deliciar lendo e conversando.
        
         Espero também que esses mergulhos na piscina sirvam para atenuar este Verão quente...” 

         Era assim que os amigos e as pessoas educadas transmitiam os seus estados d´alma e com um simples postal assinalavam a lembrança do amigo que está distante, tudo antes dos sms, dos mails e da alienação comunicacional que remeteu para o fosso do vulgar o terno momento da escrita enluvada do pensamento sincero.

         - De facto, meu caro Couto, tenho-me deliciado com braçadas enérgicas e o júbilo da água cristalina, enfim, na sequência de uma semana que não consegui trazer o PH para níveis compatíveis. Acresce que como em torno da piscina existem várias figueiras, tenho enquanto mergulho o perfume das árvores e a beleza dos figos a engrossar e a incensar o ar do seu aroma milenar. Praia do Cabeço qual carapuça!...


         - A propósito de sonhos. Adianto que não aprecio ver a sua descrição à sorrelfa ou a martelo nos diários dos escritores. Green abusou, Junger idem, Jaccottet é obsessivo e passo. Contudo, como este rememora os meus tempos de Coimbra, sou tentado a trazê-lo aqui, porque ele me devolveu por uma noite, intactos, os meus tempos de juventude. Era Verão. As noites cálidas atiravam para as ruas os estudantes e as famílias. A televisão com os seus horrores e compreendendo a marrequinha a incitar os saloios excitados pela fama a fazer sexo diante das câmaras que os vigiam noite e dia, as telenovelas, os concursos a dar esmolas na forma de prémios pagos pelos espectadores em chamadas telefónicas, e toda essa caldeirada de espectáculos que entretêm o vácuo, ainda não existiam. Os exames decorriam no Liceu D. João III, no Penedo da Saudade. A Avenida D. Afonso Henriques onde o liceu tinha morada, era nessa altura uma avenida coberta de árvores frondosas que iam desde o Carmelo de Santa Teresa à frontaria do edifício escolar, e uma espécie de varanda sobre a cidade lá em baixo onde não faltavam ao longo do passeio uns banquinhos para nos sentarmos. No Verão toneladas de gente passeava depois do jantar, de trás para a frente, em conversa amena, plácida, onde todos se conheciam e cumprimentavam, os rapazes catrapiscavam as raparigas, e os serões assim passados pareciam tirados dos livros de Júlio Dinis. Não se pense porém, que era a monotonia e o vazio que os habitava. Pelo contrário, a multidão de peripatéticos exibiam um ar feliz, distendido, e os passeios permitiam até um bom sono. Nós saímos do Colégio Camões que não distava dali dez minutos a pé, em rebanho. Antes, parávamos no café Madeira para um jogo de bilhar e a reunião de outros camaradas que, não fazendo parte do colégio, estavam hospedados em casas particulares ou em Repúblicas. Eu ia quase sempre com o Rui Cardoso e o irmão e lá juntava-me aos colegas do lar. O “miudame” como lhe chamávamos, fervia de risinhos e olhinhos às escondidas dos papás. Alguns Lentes cruzavam-se connosco de braço dado com as respectivas consortes, muito importantes, de nariz empinado, achando que a cidade e todos os estudantes lhe deviam vénia. Dias havia que quase não se podia circular - tal a chusma de veraneantes. Terminados os exames, recrudescia o número e com ele o ruído das vozes, dos passos raspando o asfalto. Então ouvia-se nitidamente o eléctrico que vinha do Largo da Portagem e passava na rua de cima para o Tovim. No ar pairava um ligeiro perfume de tília. Nós só tínhamos permissão de ficar até às onze horas. Alguns não respeitavam o horário e era um ver-se-te-avias no silêncio da noite a abrir as janelas do rés-do-chão por onde entravam os fraldiqueiros noctívagos. Um sonho nostálgico que me iluminou o dia da leve sensação de que a juventude é eterna.