terça-feira, janeiro 11, 2022

Terça, 11.

Mestre Acácio que veio aí hoje substituir a torneira que leva a água à piscina, é um homem divertido e do alto dos seus oitenta anos, diz-me quando lhe pergunto se aceita um café: “Eu? Não. Isso é pra velhos.” Questionado se tem filhos, respondeu: “Tenho um rapaz. Na verdade não tenho um filho, tenho um ladrão.” Ai, família! 

         - No Filipe tenho um anjo da guarda. Leitor atento deste diário, amigo de longa data, lendo o tombo que sofri, logo me envia um sms a desejar melhoras. Volta que não volta, manda-me anúncios de vivendas à venda aqui na zona. O seu sonho era viver neste refúgio encantado e sereno, que oferece qualidade de vida que não existe em Lisboa e arredores. O problema é que tudo o que vejo no telemóvel, tem a dimensão das casas apalaçadas da gente pretensiosa de Hollywood e valem em conformidade.  

         - Fui ao Corte Inglês comprar um blusão que me defenda do frio e da chuva, enfim! Este “enfim” tem uma razão: durante anos a Annie quis oferecer-me um agasalho assim e eu que nunca namorei o seu dinheiro, sempre recusei. Ainda no mês de Novembro, ela insistiu: “Robert, comment on peut faire pour acheter un blouson à Helderrre?” O marido, quando toca a dinheiro, faz ouvidos de mercador, portanto dali posso estar tranquilo. Aconteceu que ela me telefonou esta tarde e eu informei-a da compra; resposta imediata: “Então sou eu que to ofereço. Dá-me o número da tua conta bancária e manda-me uma fotografia com o blusão vestido.” Um capitalista é sempre alguém em quem não se pode confiar, e se ainda por cima for socialista, então, il y à toujours une arrière- pensée... 

         - O amor entre Julien Green e Robert de Saint-Jean é perturbador. Atravessou a vida de ambos e, passados os anos de sexo intenso, transformou-se num amor platónico que não desmerece de nenhum outro, homo ou hetero. A amizade cúmplice que se estabelece, substitui a loucura que os levou a toda a sorte de orgias, nas décadas 30 e 40 e, no caso de Green, fortaleceu a sua busca pela virtude de vida proclamada nos Evangelhos. Cristo cai três vezes com a pesada cruz às costas; também Julien se rende à beleza de um rosto, à harmonia de um corpo. E de queda em queda, sai mais robustecido para conquistar o rumo que Jesus quer para cada um de nós. A sua luta entre o bem e o mal, entre o desejo carnal e a perfeição dos dias, o desvio de um olhar e o pensamento do caminho novo, atravessam centenas de páginas. Foi por isso que eu chamei ao segundo volume Toute Ma Vie o breviário de Green. Durante os cinco anos que ele passa em Baltimore, EUA, estuda a fundo teologia, devora a Bíblia, lê todas as vidas dos santos da Igreja, tem no seu convívio quotidiano sacerdotes, e consegue praticamente escapar ileso às tentações que se cruzam com ele nas ruas de Nova Iorque e Washington. É confrangedora essa luta, esse rasgão no corpo ainda jovem e cheio da sensualidade que alimenta o delírio, apazigua os sentidos e fornece ao corpo a urgente realização dos seus desejos, corpo e mente em disputa pela perfeição que a Igreja impõe sem ter em conta as necessidades fisiológicas e psicológicas de cada ser humano. Até à chegada de Wilbur um jovem aspirante a poeta. Com ele tudo recomeça, com ele as angústias metafísicas crescem, o querer e não querer, as horas vazias povoadas do corpo magro, frágil que ele possui na sofreguidão que a abstinência demasiado longa produz. Personalidade complexa e fascinante, Julien Green viveu por antecipação e num tempo impreparado para aceitar a franqueza dilúcida e dura da verdade. 

         - Eis uma charada à Rui Rio: “Sou católico, mas não sou crente.” Atenção: em política o homem é também isto e aquilo. 

         - A mim preocupa-me imenso o que se passa nas redes sociais. Sobretudo o controlo e invasão da privacidade de cada um, a apropriação da internet para certos abusos é matéria de estudo para a inglesa Shoshana Zuboff. Pedro Rios trouxera intacta há dias ao Público e dissecou-a com inteligência e oportunidade. Lembrei-me dos Robert que há por este mundo fora. Ele de cada vez que liga o computador, desce como cascata fumegante, um chorrilho de publicidade, mails, propostas e assim. Digo-lhe que a culpa é só dele e comunico-lhe que no meu não descarrega nada, absolutamente nada. Isto porque estou sempre com muita atenção, não aceito isto nem aquilo, não quero ser rico nem famoso, não preencho APPs, quero salvaguardar a minha privacidade até ao limite do possível. E ainda não conhecia estas palavras da escritora: “As nossas vidas dependem de tecnologias que nos extraem em segredo a nossa experiência privada, traduzida em biliões de dados, para ganhar dinheiro. Uma invasão que reduz a liberdade, compromete a saúde mental e ataca a democracia.” Mais vai longe: “Google, Facebook e YouTube, não permitem recusar cookies (outro dia falei aqui disso) de forma simples como aceitá-los, o que viola a liberdade de consentimento.”  A isto chama a autora “o capitalismo da vigilância”.