segunda-feira, março 27, 2023

Segunda, 27.

Como sempre, por aqui, trabalho não falta. Ontem não parei um segundo, primeiro na cozinha a preparar dois pratos e uma sopa para arquivo, depois ida à Moita à feira mensal procurar barbante para a roçadora e de seguida comecei e acabei de roçar o mato que se acumulou em volta da piscina. Eu não peço a Deus descanso, peço trabalho e protecção. É a labuta que me faz feliz, me arredonda o olhar quando fixo a paisagem atapetada de um verde cintilante e vejo nela o esforço que o meu corpo ainda consegue expedir. A minha existência actual, desdobra-se entre as coisas do espírito e da vida prática. Ninguém poderá imaginar a hora queda que passei sexta-feira no Vitta Roma onde fui almoçar, corrigindo dez páginas do romance! São momentos sublimes, ímpares, que me transportam para um mundo que não toca os ramos desalmados deste, envoltos numa felicidade limpa, pura, que resumem e conferem realidade à minha passagem por esta terra, ao esforço epopeico do existir em conformidade com o murmúrio interior, a vida constante, solitária, de par com os elementos que lhe dão consistência e razão de ser. Talvez por me ter cabido viver num país pequeno, governado por gente pequena, importante de razões mesquinhas, merdelhices sem qualquer relevância nem grandeza, eu tivesse sido obrigado a fechar-me na liberdade que o conhecimento me trouxe e o espírito critico me desenvolveu. Duas realidades trabalharam o meu carácter - a busca pela verdade e a descoberta que nos circunscreve ao estatuto de marginal ou se preferirem de ilhéu.   

         - Esta manhã, após duas horas de trabalho lá fora seguidas de meia hora de piscina, engolido o almoço, estirei-me na chaise longue a reler Julien Green. O corpo pedia-me aquele repouso iluminado pelos textos do escritor, mas o calor agradável, o silêncio que crescia em volta, convidavam a uma sesta prontamente acolhida. Teria sido meia hora, mas esse tempo replantou em todo o meu corpo o dinamismo com que comecei o dia. Recusei-me hoje trazer aqui alguma revolta que o país que somos hoje sempre nos agita. Nada do que por cá se passa tem interesse para estas páginas onde o silêncio branqueia o barulho e a farfalhice do dia-a-dia. Apetecia-me concluir como Green este diário é “le journal des deux, le journal de moi-même entier, de moi-même enfin reconcilié avec moi-même” (p. 537).