quinta-feira, março 16, 2023

Quinta, 16.

Ontem, depois de ter perdido duas vezes a ordenança médica para fazer uma tac ao cérebro, lá fui quatro horas antes sem comer, realizar a ordem da Dra. Vera Martins. Deparei-me com um clínico curioso, oficial da Armada, que antes de me deitar no esquife diabólico, quis saber a razão para aquele exame. Contei-lhe a discussão com o João, os tiques no dia seguinte, a “médica” que me atendeu no Centro de Saúde de Palmela. Riu-se. Depois disse que provavelmente tudo o que me aconteceu foi uma descasca do sistema nervoso. A seguir, enquanto me aconchegava ao meu destino mortuário, foi-me contando que teve por doente Mário Soares, Jorge Sampaio e António Filipe do PCP, todos com histórias diferentes e, no caso do ex-deputado comunista, embora feio e sisudo, todo ele à moda antiga, (digo eu), ao que parece boa pessoa. Disse-lhe que eu tinha estado com ele no enterro de Urbano Tavares Rodrigues, na SPA e enquanto eu rezava um padre-nosso por alma do meu amigo, ele ali estava circunspecto a cumprir a obrigação de representar o partido no adeus ao camarada. Bref. Ulteriormente, deseja-me boa noite e desaparece para se fechar num cubículo à entrada do consultório de onde opera a caixa abobadada para onde me deslizou a cabeça. Por momentos parece que estou a viajar num avião supersónico, ruído e uma imagem que roda a grande velocidade enche-me os olhos de maravilhas tentadoras que almejo tocar. A viagem dura um espaço ainda longo, que começa a incomodar-me porque penso que ele está a pesquisar coisas que eu não quero que descubra. Tento mover a cabeça, mas ela está presa à base por uma tira sólida. Fico calmo, mas o meu cérebro, habituado a cogitar sem descanso, põe-se a imaginar que visão vai para lá daquela urna onde estou pronto a partir para um qualquer obscuro canto de mim mesmo, subitamente à mercê da cultura e da inquietação científica do médico. Ei-lo a destapar-me dos montões de atoalhado de papel que me envolveram o pescoço, a deslizar a tumba de modo a desembaraçar-me daquele túnel onde estivera imóvel, fingindo de morto. 

- O que faz na vida? – quando me levanto e fico olhos nos olhos com ele, sendo da mesma altura. 

- Melhor diria o que tenho feito na vida. Porque pergunta?

- Porque estou surpreendido com a qualidade do seu cérebro. Está intacto para a idade que tem. 

- Olhe, tenho trabalhado toda a vida com palavras, escrita, jornalismo, sensações, emoções, muita curiosidade, cuidados com o sono, abadas de leituras e hoje vivo como sempre sonhei – a escrever e a ler. 

- Pois. Todo esse trabalho foi muito benéfico ao seu cérebro. Hoje vai levar consigo o disco e dentro de dias, por e-mail, receber o relatório. – E à despedia, já no corredor: - Parabéns pelo cérebro que tem. 

Dá que pensar. Anda há duas semanas a oftalmologista dizia-me que mantenho um pouco mais de 80% de visão e agora o meu cérebro parece estar intacto. Irei eu a caminho da velhice ou em retrocesso para a juventude airada? O vício de uma vida leviana e dissoluta que foi a minha, desta vez à moda da velhice capada de todos os desejos, será a sina que me espera? Então, com este cérebro, já não deslizo para a mesma morte de Virgínia Woolf como tantas vezes pensei ser o meu destino? E que lugar terá Deus em tudo isto? Porque Ele nos prepara para o nosso fim sem nos dizer onde e quando iremos deixar estas inquietações e estas (porque não dizê-lo) esperanças e sonhos de velho a caminho da redenção.  

         - Como tudo é fantasia, Santo Deus! De Lisboa segui directo para Setúbal onde tinha várias compras a fazer. Uma delas na farmácia para saber da farmacêutica Dra. Madalena (ela é a minha conselheira em suplementos ditos alimentares) que espécie de produtos existem para baixar a tensão. Indica-me a oliveira em cápsula, mas eu descarto a ideia porque não tem os efeitos curativos que dizem possuir. Acabo a comprar o Valdisper e ela diz-me que gostava de me ver a tensão e fôssemos do balcão para o seu gabinete nas traseiras. Quando me desloco, tropeço na trotinete de um rapaz que estava a ser atendido ao meu lado e fico literalmente estendido no chão. Acodem todos ao mesmo tempo – técnicos de farmácia (como agora se diz), farmacêuticas, naturalmente a doutora Madalena e umas velhas muito aperaltadas que iam tendo um “chalique” de mãos no coração numa aflição. Erguido, encaro o rapaz e digo-lhe da minha indignação por ter entrado na farmácia com o aparelho e ainda por cima tê-lo deixado de qualquer maneira enquanto era atendido. Ele fica muito assustado, todo o mundo a cascar-lhe em cima, as velhas a jurarem que se fosse com elas já iam a caminho do Otão com os ossinhos todos desfeitos. Ante as desculpas e o pavor que vi no rosto da beauté, abracei-o e disse-lhe que estava desculpado, e para a próxima pensasse que a farmácia não é lugar para se entrar de trotinete. Bom. Sentado no gabinete da farmacêutica, ainda mal refeito do susto e das dores na anca da perna que um dia será levada a Fátima num andor aos ombros das raparigas e rapazes, disse à minha protectora “isso, como estou, deve apontar para vinte”. Não foi vinte, mas dezasseis o que para ela era muito, mas para mim, do signo Virgem, sei que não representa nada de grave. Dali, com tapete estendido no chão da botica, as velhas à minha espera para saberem como me sentia, fui ao Alegro comprar o necessário para o jantar. Cheguei a casa uma hora depois. A tensão registava 13,1-6,7. O habitual. 

         - Esta manhã meti ombros a tarefas difíceis. Como a Piedade esteve cá, pude, com a motosserra, continuar a desfazer-me de umas quantas plantas da família da yuca que tinha junto à piscina e no jardim. Estas donzelas, estavam já espigadotes, com pernas grossas e barba de homem das cavernas. Saí do trabalho que apenas começou, desfeito em água e cansaço e dores nos lombares. Vou precisar de uns dias para me recompor. Vai chover não tarda.