terça-feira, novembro 30, 2021

Terça, 30.

Apesar de ter aberto as janelas de par em par, morreu aqui o perfume de mulher ou antes foi por todo o rés-do-chão sepultado. Se me sento nos sofás, se abro o Expresso que o João deixou para trás, se vou da sala de jantar ao salão, sorvo em todos os lugares um aroma feminino que me inebria. Não vou dizer que me é desagradável, digo que me é estranho, pouco natural, não corresponde aos odores que entram do campo e invadem o interior do cheiro das laranjeiras, das árvores e da vinha que abraçam num abraço envolvente e apertado a casa e estão afeitos ao seu morador. 

         - Domingo abeirou-se a Piedade, tristonha. Fi-la sentar-se no salão porque percebi que tinha de a ajudar. Despejou o que havia travado durante a minha ausência e lhe era insuportável reter. O neto, neste último mês, instalou lá em casa uma africana roliça que se diz namorada do rapaz. Com ele dorme e partilha a habitação, num manifesto desprezo pela sua idosa proprietária. A pobre avó que já teve a sua dose com a primeira rapariga que se apressou a ter uma criança e fez a vida insuportável à Piedade e ao pai, vê-se de novo metida num beco sem saída que decerto virá a ser a reiteração da outra que abalou com o filho para a Holanda e a deixou num vale de lágrimas e tormentos. Aconselhei-a a correr com ambos para o andar vazio que possui na Quinta da Torre se quiser viver mais alguns anos. É tão agradável ter uma família nos dias de hoje, que eu choro baba e ranho todas as noites por não ter a casa cheia de amorosas criancinhas... 

         - Ia-me a esquecer ou não estou aclimatizado ainda à minha terra. País giríssimo, albergue de toda a sorte de gente, sobretudo gatunos, corruptos e vendedores de banha da cobra, com rostos onde se perde ou se reinventa a honorabilidade quando enfrentam as televisões, convictos de afirmações concordantes com o seu estatuto de defensores da moral e bons costumes, da ética e da democracia. Penso em Agostinho Branquinho e Marco António. E porque carga me levou a mim ao encontro de duas respeitáveis criaturas que o MP, pensado diferente, acusa de branqueamento de dinheiros indevidos. Ambos foram secretários de Estado da Segurança Social do Governo PSD-CDS, portanto, estimáveis servidores da nação, naturalmente, sem contas em off-shores e conhecimento onde fica o Panamá. Que embirração esta do Ministério Público! 

         - O Chega adoptou a máxima salazarista: Deus, Pátria, Família e... Trabalho. Bom. Eu como os meus leitores decerto já se deram conta, não dou qualquer espécie de crédito ao partido como não concedo às damas do BE. O homem que dirige o Chega, é boçal, incongruente, não apresenta bases sólidas, políticas e sociais; falta-lhe o mínimo de ética e conhecimento para um dia gerir o país.  É arruaceiro, português de berço coxo, não merece uma linha que os jornais lhe dedicam porque têm de vender papel e o quanto pior melhor na linha do jornalismo dos nossos dias.  

         - A 8 de Agosto de 1943, Julien Green anota no seu diário a mais surpreendente e trágica definição da II Grande Guerra: “Un enfant allemand, réfugié de Hambourg, arrive à la frontière danoise après l´effroyable bombardement de cette ville par la RAF. L´enfant a douze ans. Il porte deux sacs que les douaniers lui font ouvrir; le premier contient les lapins du petit garçon: le second contient le corps de son frère âgé de deux ans.” (pag. 479 Toute Ma Vie, Bouquins) Fechei o livro incapaz de conter as lágrimas e a revolta que me tomou; adormeci muito tarde e no dia seguinte ainda carregava o peso desta imagem. A todos os que pensam fazer a guerra, deviam ser enviadas estas linhas.