quarta-feira, novembro 17, 2021

Quarta, 17.

Há uma tragédia humana que me revolta: a utilização de seres humanos como canhões. É isso que faz o imbecil ditador da Bielorrússia ao dispor cidadãos na fronteira com a Polónia. A migração tem sido e continua a ser a maior vergonha da UE. A única pessoa que se distinguiu pela positiva, foi a senhora Merkel mas largou a governação.   

         - Antes de deixarmos Quiberon, fomos, Robert e eu, dar uma volta de carro pela costa selvagem até Trinité sur Mer. Impressiona a mácula de rochedo agreste, a pique para o mar, onde ninguém se afoita. Todo este mundo escuro, perigoso e belo, é o retrato de uma parte da França sem igual. Quando o mar bate nas rochas, agiganta figuras dantescas que parecem emergir do fundo dos oceanos em ameaça e fúrias demoníacas. Respeitinho é a palavra que o som das ondas emitem obrigando os seres humanos a manter a devida e cautelosa distância. Não há qualquer forma de diálogo, nem a presença das centenas de franceses passeando à sua beira, parece facilitar a aproximação. Em Trinité sentámo-nos a tomar café diante da marina engalanada. É um espectáculo digno de se ver. Tudo ali cheira a dinheiro, a bom gosto, a prosperidade. O próprio sistema que permite aos barcos subirem com a maré, é um achado de engenharia. Só a personagem da foto está a mais. 


         - Regressámos a casa a tempo de almoçarmos e prepararmos a partida com tempo. Pelas 13 e trinta minutos, tudo arrumado, o carro carregado, Annie decidiu que precisava de dormir a sesta. Robert bufou, desesperado, porque não queria chegar a Paris a desoras. Mas conformou-se, os homens conformam-se sempre, espécie de lacaios de libré ao serviço das madames coquettes, irritáveis e caprichosas. Esperámos – Laure, Robert e eu – que Annie se erguesse do seu leito real. Quando julgávamos que íamos sair, ela decide começar a capinar no jardim. Robert tem, enfim, uma reacção e vem juntar-se a nós os dois que, instalados na viatura, aproveitávamos o tempo para ler. “Ela sempre gostou de fazer esperar os outros”, diz o marido fora de si. Pelas três horas, ei-la que se aproxima, senta-se ao lado do companheiro, e ordena-lhe que siga para a marginal porque quer ver o mar antes de deixar Quiberon. Esta afronta é tão banal nos casais que nem se dão conta da falta de dignidade que devem um ao outro. Com o atraso imposto à partida, chegámos a casa passava das nove e meia da noite. Casa-te faz como os outros, Helder. 

         - Por aqui como pelo meu país, o SARS-COV-2 reaparece em força. Fui ao quartier Opéra esta manhã de coração nas mãos. O metro à pinha e as pessoas (muitas) coladas umas às outras, de máscara é verdade, mas de nariz a descoberto. No autocarro que me conduz a casa, a maioria dos passageiros, africanos e árabes, usa a máscara para iludir aquilo que ninguém vê: fiscais. Desde meados do mês passado que vou passando por entre os pingos da chuva sem me molhar. Espero assim continuar e escapar à saudação bárbara da pandemia. 

          - Pelo caminho, como é de uso, faz-se uma refeição ligeira. Esta saiu do habitual, mais rica e original, porque o Robert comprou em Concarneau um opíparo chamado Kouignette. Fazem-no doce e salgado e este que experimentámos é de comer e chorar por mais: foie gras embrulhado numa massa tenra com ervas, como se fosse um petit four ou uma tapa. A loja onde foi comprado, logo à esquerda de quem entra no forte, é por si só uma tentação; um espaço sobre o comprido onde se expõe em mesas corridas toda a sorte de doces e salgados. A variedade é tal, que nem a proprietária me conseguiu dizer quantos exemplares culinários expõe.       

         - Há instantes, no largo em frente à igreja de Notre-Dame de Lorette, uma mulher embrulhada num cobertor com dois filhos de uns dez anos, esmolavam de quem saía ou entrava no templo. A alegria traquina dos dois rapazes era tal, que contagiava todos os  que por ali passavam e outro remédio não tinham que contribuir para que aquela excitação perdurar-se. Os filhos dos ricos morrem de tédio chafurdando na riqueza dos pais; os dos pobres desfraldam os dias em liberdade e beleza provando que não é mais feliz quem possui, mas quem vive do essencial. Há em cada pobre um Poverello de Assis. 

         - A Rússia disparou um míssil de forma a destruir um satélite seu. A América insurgiu-se. Hipocrisia pura. Os EUA já fizeram o mesmo.