sábado, novembro 20, 2021

Sábado, 20.

O que me surpreende ou nem por isso, é a quantidade de pobres que estão por todo o lado a mendigar porque têm fome: nos transportes públicos, na rua, nas plataformas do metro, à entrada dos supermercados. Muitos são franceses embora o Robert diga o contrário por ignorância ou patriotismo tolo. É verdade que Paris tem centenas de migrantes que vivem na rua em condições cruéis; mas também é visível que muitos nacionais estão ao lado dos infelizes sem pátria nem família. Sempre que algum se me dirige, contribuo com algumas moedas; no meu interior, porém, acumula-se a revolta e a impaciência contra uma sociedade que os devora de indiferença. São heroicos estes nossos irmãos e nem sempre o seu heroísmo tem a ver com miséria e pobreza. Muitos, nos seus países, eram professores, técnicos qualificados, mulheres e homens honrados que deixaram a sua pátria porque o poder instalado deixou medrar a erva ruim da sua conduta governativa sectária, dos seus interesses putrefactos.  

         - Ontem tivemos ao jantar connosco a Michel recomposta do susto do assalto. À roda de uma excelente raclette e de bons vinhos, a noite arrastou-se em conversa solta e temas passageiros, daqueles que não nos dão a volta à cabeça. Hugo bebeu e comeu como se não o fizesse há uma data de meses. Esta manhã, ao pequeno-almoço, Robert comentou comigo o espectáculo da gula do filho da Annie em termos e palavras de grande repulsa, acrescentando que ele aproveita a minha presença para se impor. Hugo antes socialista, mas desde que experimentou o regime capitalista que varre os países asiáticos (ele vive em Taiwan), passou a vender teorias de direita radical com manifesto desprezo pelos pobres e derrotados da vida. De contrário, por imposição do homem da casa, quotidianamente, ele desce do seu quarto no primeiro andar, recolhe o tabuleiro que a mãe lhe prepara, e volta a subir como um monge ou presidiário para comer só na célula. À nossa mesa é que ele não tem permissão de abancar. Quelle vie! Quelle vie! 

         - A Áustria acaba de confinar toda a população. Certamente em breve outros países da cortina da UE farão o mesmo. Falam da quinta onda, mas ninguém nos explica de onde vem esta onda se do Atlântico, se do Pacífico. 

         - Outro dia, a convite do Francis, jantei num restaurante muito frequentado pela elite política e artística próximo da Ópera. Jantar animado de conversas homo que são o seu forte. À mesa estiveram muitos dos conhecidos governantes com quem ele privou de perto,  da política a altos quadros da finança e da economia. Do que ouvi acerca das suas vidas íntimas, daria um longo romance. E quem Sabe?  Francis: “Gosto de conversar contigo porque se pode falar de tudo sem preconceitos.” E eu: “Essa malta com quem te dás – reis e rainhas, Presidentes da República e primeiros-ministros - sabes a razão que os leva a serem teus amigos volvidos tantos anos de teres deixado a diplomacia? - Não. - Têm medo que contes as suas vidinhas de retaguarda.” Riu-se, agradado.  

         - Como se pode travar a expansão do coronavírus, quando as pessoas pela noite fora convivem sem máscara nem distanciamento! Na zona por onde andámos até perto da meia-noite, quase ninguém a usava. Pior ainda. O metro da linha 14, chique e sem ruído, circulava provido de noctívagos. Já a linha 13 que nos trouxe a Saint-Denis, todos os vagões vinham a abarrotar, bafo contra bafo, impressionantemente cheios àquela hora.