Sexta,
14.
A Festa
do Avante. Os comunistas ganhariam em abandonar aquele barco, não só porque por
muita disciplina revolucionária que os camaradas tenham, o coronavírus não
tendo partido, quando ataca não olha a quem – é democrático...
- Esta manhã tornei-me a espalhar. Não
tendo visto a peanha para onde a Brasileira se estende, fiquei estirado à porta
do café. Óculos para um lado, mochila para outro, e um horror de turistas e o
Igor e o Carlos que estavam mesmo ali a socorrerem-me. Levantei-me in petto chateado com tanta gente à
minha volta. À parte um arranhão no mesmo joelho que surpreendeu os gatos outro
dia, quero dizer aquele que os homens desmaiam quando comparam a sua perfeição
com as suas trancas gémeas, nada mais tive a registar. Mas podia ali ficar, é dos manuais que os
velhos partem na sequência de uma queda.
Muito haveria a dizer sobre o assunto,
talvez nem 200 páginas chegarão para contar uma tal tragédia. Porque não é a
mesma coisa tombar em frente da catedral outrora poiso de liberdade, complô de
anarcas e gente de esquerda, lugar de salvação dos aflitos chegados das
redacções dos jornais com morada no Bairro Alto, diante daquele bigodaços que
decora a fachada saboreando uma chávena de café, que morrer num hospital,
igreja, a caminho do trabalho ou num lupanar sobre a Ribeira onde todos os
odores pestilentos dos abandonados à sua sorte fedem. Há naquela queda, que
diabo, qualquer coisa de grandioso, espécie de ensaio sobre a dignidade da
morte ou antes do modo como se vai desta para melhor, o corpo sobre a calçada lisboeta,
o pagode a olhar o desconhecido que veio ali falecer, àquela hora álgida,
batida pelo saracoteio do vento que subia o Chiado e trazia frigidez à dor, um
toque humano no deslize do sofrimento. Se eu me ficasse ali, defronte de
Fernando Pessoa sentado a bebericar café, os heterónimos em volta, distribuídos
pela esplanada, um ou outro passante abancando num instante a seu lado para a
fotografia da praxe, a minha morte tornar-se-ia no segredo melhor divulgado. Lisboa
inteira veria o meu corpo esguio prostrado diante da porta de ferro da ilustre
catedral santificada pelos conspiradores, pouso de pides e bailarinos,
homossexuais e putas finas, dedo mindinho apontado ao primeiro chulo que à
porta assomasse, pintores e artistas a consumir o tempo no tempero espesso da
revolta. Todos, como num movimento sintonizado na memória das horas que
passámos juntos, sentados às mesas antes da queda que me fez moribundo,
discutíamos o Universo como se vivêssemos anos a provir na completa
incandescência do nosso despautério. Aquele que no chão jazia, deixara a
conversa a meio, ia a murmurar qualquer doutrina que endireitaria o mundo tão
torto dos nossos dias, decerto uma máxima que ficara travada no seu cérebro,
nessa colada que, num ápice, o apartou do lugar da vida para o mausoléu da
morte. Um “oh!” rotundo ecoou na esplanada do Chiado, numa manhã aprazível,
animada pelo desassossego dos turistas, do movimento dos empregados sorridentes
depois de meses de tédio a ver passar a Covid -19. Nunca em momento algum se
fez silêncio. Entre uma vida que se apagou, tantas outras prosseguiram ali na
animação que enche os dias de verão numa artéria batida da capital. Turpitudes
e desgraças na calçada ficaram, assim como os dias lavados dos pregões e dos
fados. Da queda nem um murmúrio se ouviu, apenas um "oh!" seco a ecoar de mesa em
mesa, de rosto em rosto, de surpresa em surpresa. Quem caiu ali ficou com a
carga de histórias que só ao Criador contará quando Ele o chamar... Esse não será um dia triste, porque ele irá, enfim, conhecer a Face do bom Deus e entrar numa outra qualquer forma de vida.