Terça, 18.
Voltei
à Brasileira depois da queda de sexta-feira. Assim que me viram, os empregados
precipitaram-se para saber do meu estado de saúde. A nova gerência também veio
conversar comigo e, aproveitando a ocasião, pedi-lhes que estendessem a
passadeira vermelha para que o meu próximo boléu tenha a dignidade
cardinalícia. Prostrado sobre o chão atapetado, era como dar grandeza ao vulgar
acidente e importância ao artista sem editor, ao escritor a quem o último
editor ficou a dever 12 mil euros de direitos de autor, ao autor na calha do
próximo prémio Nobel.
- Dia fausto. Da Brasileira, meti-me
num táxi, e fui ao encontro da Carmo Pólvora para um almoço no velho e saudoso
Varina da Madragoa. No caminho dei boleia ao Carlos Soares e os três almoçámos cá
fora, na calçada lisboeta da Rua das Madres, agora cortada ao trânsito. O
restaurante conserva a decoração, os afectos, o ambiente de há 20, 30, 40 anos
quando ali ia todas as semanas almoçar ou jantar com a Isabel e o Saramago. Há
pelo menos quinze anos que lá não punha os pés e foi com prazer que ouvi do
antigo empregado: “Olha o senhor Helder de Sousa! Está na mesma, não mudou
nada!” O costume, sendo o salmo já meu conhecido, hoje, dito daquele modo, por
um homem simples, de avental e ar provinciano, pareceu-me ter de facto ainda a
idade e o aspecto que aquelas paredes admiraram e a Isabel dizia ser a de um
“jovem pajem”. O sol, não batia nas mesas instaladas na rua, um vento tangente,
passava tornando o lugar aprazível e calmo (só o presidente da CGD veio almoçar
com uma companhia que o esperava no interior). O menu não mudou, como não se
alterou a atmosfera do bairro, sendo o todo obra do seu anterior proprietário,
António, hoje reformado e a viver em Azeitão. Para a mesa despejaram-se as memórias
dos vivos e, sobretudo, dos mortos. Cada um de nós, vivendo uma vida do lado da
arte, desse mundo alheio ao mundo pequenino que o português médio transporta, carrega
um esteio de vivências que transformam os dias num conto irradiante de acontecimentos
que os anos não abarcam. As pequenas misérias que a grandeza esconde, as ambições
que a realidade expõe, a ganância que o seu oposto impede, Portugal é fértil de
personagens de fantasia que não passam de simples aldrabões, gatunos sem classe
e gigolôs de pé descalço. Teria de escrever umas quantas páginas só para falar
daquela figura açoriana que um dia me convidou para ir aos Açores integrado na
mesa de honra da futura Casa Museu Natália Correia. Eu apercebi-me in loco que qualquer coisa habitava o
empreendimento de sombras negras e não quis envolver-me no projecto – só esta
tarde conheci a história por dentro e agradeci a intuição que me protege de me
envolver com gente ordinária que está por todo o lado, sobretudo, na chamada
classe alta. O almoço foi extremamente agradável, embora por dentro não
deixasse de pensar nas descobertas que a Carmo que conhecia aquela gente toda
de ginjeira me revelou. Pura sacanagem.
- Em Novembro do ano passado, estando
em Paris, encomendei pela Net um livro de George Sand utilizando a morada da
Annie. O que devia chegar em quatro dias, veio em oito não estando eu já lá. Combinámos
que eles viriam cá passar uma semana em Abril deste ano, e Robert traria então a
obra. Entretanto, a Covid-19 instalou-se e o projecto ficou adiado sine die. Pedi, nessora, ao Robert que
mo enviasse pelo correio. Que fui eu fazer! Vários sms tentando dissuadir-me de
o ter por essa via, porque os portes eram caros e talvez não merecesse a pena. Insisti
e perguntei quanto iria ele despender: 2 euros! Riposto dizendo-lhe que não
empobrecesse porque eu lhe pagaria a despesa. Hesitante, pressionado pelas
circunstâncias, semana e meia depois, informou-me que o livro tinha sido
despachado e me ofereceria os portes de correio. Monsieur George Sand
entrou-me em casa esta manhã pelo braço do carteiro dois meses depois de ter
sido expedido... A pior doença da velhice, não são as artroses, os males do
coração, a falta de energia, é a obsessão pelo dinheiro - foi isso que disse ao
Robert por sms!