segunda-feira, agosto 10, 2020

Segunda, 10.
Atravesso um período muito difícil, nuvens espessas tingem de negro os meus dias e lançam neles toda a sorte de inquietudes, descrenças, vacilações; trago um peso medonho dentro de mim que me custa arrastar. Diz-me a Piedade que vem cá a casa há quarenta anos, sempre assim foi. “É a sua cabeça que desanda.” Talvez seja. Mas desanda para onde, boa amiga?

         - Gostava de falar sobre o romance de Aquilino que terminei há dias, mas falta-me ânimo, força anímica, capacidade de raciocínio. Até porque o tema do Volfrâmio cruza-se com os milhões que devem começar a chegar em breve a Portugal. Aquilo vai ser um nunca mais acabar de desbravar a terra em busca do metal raro – o euro. Aquilino traça um período histórico sem nunca nomear o Estado Novo e fá-lo com a sua habitual maestria de linguagem, copiosa de sinónimos e adjectivos, cada um mais original que outro, obrigando o leitor a um esforço hercúleo para o compreender. Os jovens, com o ensino do português que se administra hoje nas escolas, estou certo não passam da primeira página, absortos a olhá-la como um burro para um palácio. A erudição da aquilina figura, a par de uma técnica concepcional, que deixa pouca margem ao narrador e estende-se ampla pelas personagens a quem dá a orientação da narrativa, quase só assente, à maneira de Austen, no dia-a-dia de um mundo rendido ao dinheiro fácil, sob a batuta distante do nazismo e do seu adversário britânico. A facilidade como as vidas e vidinhas chegam às páginas de Volfrâmio requer tarimba, imaginação, criatividade e um esforço hercúleo na formação das sinapses que nos permitem entrar no universo de uma região com seus caciques e figuras de proa, seus dramas e grandezas. Nos nossos dias, um tal gongorismo é não só cansativo como desmotivador. Os leitores de hoje, não têm arcabouço para ler Aquilino Ribeiro e, diga-se em abono da verdade, talvez tenham razão. Parar a cada passo para consultar o dicionário, é desmotivador e a leitura ou é cativante e motivadora ou é uma chatice para eruditos. Não é, não foi o meu caso. Eu gozo o texto, páro para respirar, para sentir o arfar criativo, a dificuldade, o tropeço, tomo todo o tempo do mundo para caminhar naquelas águas que nenhum outro escritor português conseguiu cruzar. Nem falo de técnica tão cara a João Tordo e que eu, francamente, não sei o que seja; falo da dinâmica criativa, da invenção pura, do livro que mais ninguém alcança escrever, do objecto único, personalizado, que só Aquilino e mais ninguém se habilita a compor. Por exemplo. Saramago possuía uma técnica perfeita, mas a quase todos os seus livros falta qualquer coisa, uma voz desarrumada, uma palpitação desajustada, o rumor artístico que só alguns possuem e poucos conseguem detectar ante um criador nato. É verdade que foram escritos pelo autor do Memorial do Convento, mas tive sempre a impressão que um livro bem escrito, com técnica e ritmo, não é uma obra-prima ou raramente estes dois elementos se juntam. Dir-me-ão: “pois é, mas ele ganhou o Nobel”. Sim, e ainda bem. Contraponho e quantos dos mais ilustres escritores que lemos e continuamos a ler com interesse e sofreguidão, não obtiveram o galardão! E já agora quantos dos que o ganharam caíram no mais profundo e convicto esquecimento. Se os nomeasse, não caberiam em várias folhas A/4.  

         - Rui Pinto foi posto em liberdade vigiado pela Polícia para sua segurança. É de toda a justiça, mais a mais quando os ladrões que ele descobriu nem incomodados foram. Ou estarei enganado e os galifões do futebol estão já todos atrás das grades?


         - Como não fui habituado porque tinha quem o fizesse por mim, é sempre como um condenado que levo o carro à oficina, à inspecção e assim. Foi o caso hoje. Às 8 horas e 30 minutos estava com a carroça no estábulo para alinhamento da direcção; quinta-feira levá-la-ei às sortes a ver se está apta a fazer a guerra da estrada.  Tempo ameno, enfim! De tal modo, que andei a cortar o relvado, a regar, a aparar ramos de árvores aqui e acolá, carregá-los para o fundo da quinta a fim de os queimar no inverno. Enquanto o carro esteve nas mãos do mecânico, sentei-me no café perto e li uma série de artigos úteis ao meu trabalho no romance (a infância de Semyon). Estou tentado a fazer a primeira sequência de compota de figo. Vi o preço do dito cujo ontem: 3,5 euros/quilo. Ouro puro! Trabalho à secretária de pernas ao léu, o vento entrando pela janela do escritório e saindo pela do salão ou vice-versa.