Segunda,
10.
Atravesso
um período muito difícil, nuvens espessas tingem de negro os meus dias e lançam
neles toda a sorte de inquietudes, descrenças, vacilações; trago um peso
medonho dentro de mim que me custa arrastar. Diz-me a Piedade que vem cá a casa há quarenta anos, sempre assim foi. “É
a sua cabeça que desanda.” Talvez seja. Mas desanda para onde, boa amiga?
- Gostava de falar sobre o romance de
Aquilino que terminei há dias, mas falta-me ânimo, força anímica, capacidade de
raciocínio. Até porque o tema do Volfrâmio cruza-se com os milhões que devem
começar a chegar em breve a Portugal. Aquilo vai ser um nunca mais acabar de
desbravar a terra em busca do metal raro – o euro. Aquilino traça um período
histórico sem nunca nomear o Estado Novo e fá-lo com a sua habitual maestria de
linguagem, copiosa de sinónimos e adjectivos, cada um mais original que outro,
obrigando o leitor a um esforço hercúleo para o compreender. Os jovens, com o
ensino do português que se administra hoje nas escolas, estou certo não passam
da primeira página, absortos a olhá-la como um burro para um palácio. A
erudição da aquilina figura, a par de uma técnica concepcional, que deixa pouca
margem ao narrador e estende-se ampla pelas personagens a quem dá a orientação
da narrativa, quase só assente, à maneira de Austen, no dia-a-dia de um mundo
rendido ao dinheiro fácil, sob a batuta distante do nazismo e do seu adversário
britânico. A facilidade como as vidas e vidinhas chegam às páginas de Volfrâmio requer tarimba, imaginação,
criatividade e um esforço hercúleo na formação das sinapses que nos permitem
entrar no universo de uma região com seus caciques e figuras de proa, seus
dramas e grandezas. Nos nossos dias, um tal gongorismo é não só cansativo como
desmotivador. Os leitores de hoje, não têm arcabouço para ler Aquilino Ribeiro
e, diga-se em abono da verdade, talvez tenham razão. Parar a cada passo para
consultar o dicionário, é desmotivador e a leitura ou é cativante e motivadora
ou é uma chatice para eruditos. Não é, não foi o meu caso. Eu gozo o texto,
páro para respirar, para sentir o arfar criativo, a dificuldade, o tropeço,
tomo todo o tempo do mundo para caminhar naquelas águas que nenhum outro
escritor português conseguiu cruzar. Nem falo de técnica tão cara a João Tordo
e que eu, francamente, não sei o que seja; falo da dinâmica criativa, da
invenção pura, do livro que mais ninguém alcança escrever, do objecto único,
personalizado, que só Aquilino e mais ninguém se habilita a compor. Por
exemplo. Saramago possuía uma técnica perfeita, mas a quase todos os seus
livros falta qualquer coisa, uma voz desarrumada, uma palpitação desajustada, o
rumor artístico que só alguns possuem e poucos conseguem detectar ante um
criador nato. É verdade que foram escritos pelo autor do Memorial do Convento, mas tive sempre a impressão que um livro bem
escrito, com técnica e ritmo, não é uma obra-prima ou raramente estes dois
elementos se juntam. Dir-me-ão: “pois é, mas ele ganhou o Nobel”. Sim, e ainda
bem. Contraponho e quantos dos mais ilustres escritores que lemos e continuamos
a ler com interesse e sofreguidão, não obtiveram o galardão! E já agora quantos
dos que o ganharam caíram no mais profundo e convicto esquecimento. Se os
nomeasse, não caberiam em várias folhas A/4.
- Rui Pinto foi posto em liberdade vigiado
pela Polícia para sua segurança. É de toda a justiça, mais a mais quando os ladrões
que ele descobriu nem incomodados foram. Ou estarei enganado e os galifões do
futebol estão já todos atrás das grades?
- Como não fui habituado porque tinha
quem o fizesse por mim, é sempre como um condenado que levo o carro à oficina,
à inspecção e assim. Foi o caso hoje. Às 8 horas e 30 minutos estava com a
carroça no estábulo para alinhamento da direcção; quinta-feira levá-la-ei às
sortes a ver se está apta a fazer a guerra da estrada. Tempo ameno, enfim! De tal modo, que andei a
cortar o relvado, a regar, a aparar ramos de árvores aqui e acolá, carregá-los
para o fundo da quinta a fim de os queimar no inverno. Enquanto o carro esteve
nas mãos do mecânico, sentei-me no café perto e li uma série de artigos úteis
ao meu trabalho no romance (a infância de Semyon). Estou tentado a fazer a
primeira sequência de compota de figo. Vi o preço do dito cujo ontem: 3,5
euros/quilo. Ouro puro! Trabalho à secretária de pernas ao léu, o vento
entrando pela janela do escritório e saindo pela do salão ou vice-versa.