Sexta,
17.
Depois
da visita à espantosa exposição do Institut du Munde Arabe, Chrétiens D´Orient
Deux Mille Ans D´Histoire, subi a pé até ao Luxenbourg. Andava à procura da
obra de Loti Vers l´Ispahan que acabei
por encontrar em S. Michel e simultaneamente fazer tempo para a recepção a que
Eliette me convidou no seu apartamento da Rue de Saint- Honoré, a dois passos
do Louvre e do Palais Royal onde viveu Colette e Cocteau. Belo e simples
espaço, decorado a rigor, onde Françoise me aguardava e Annie e Robert se nos
juntaram mais tarde. Champanhe do melhor, entrada de fois gras, de queijo, petit fours deliciosos, discussão à
mistura sobre tudo e o mais. A anfitriã tem um romance a sair para Janeiro e
mostrou-nos as provas em que trabalha arduamente. De raspão falou-se de mim e
do meu destino próximo sob as mesmas preocupações. Que os meus amigos têm
acompanhado dando-lhes eu a ler os e-mails diários do “meu” editor. Eliette
aconselhou-me a vencer as reticências e a avançar. Mais uma. Deixámos a sua
companhia já a noite se havia instalado por toda a cidade. O bairro, pela hora
tardia, habitado de gente aisés é
muito animado, as ruas estreitas com os seus avançados terraços, bistros,
cafés, bares onde a vida ferve nas conversas vadias, na vagabundagem fora de
horas, um gosto refinado, um leve perfume da Paris de outros tempos circulando
no ar.
Colette e a sua paixão pelos gatos |
Cocteau e Jean Marais |
- Hoje grande deambulação pedestre
pela cidade que começou na Place de la Republique, desci depois a grande Rue
Turbigo, Rue Saint Martin, Rue du Louvre, Les Hales, Châtelet, atravessei a ponte
Napoleão III para entrar na Rive Gauche onde me atirei li-te-ral-men-te para um
canapé do café com o mesmo nome e pedi, exausto, uma cerveja fresca. Foram
horas de marcha, intervaladas para o almoço num modesto e bom restaurante a
meio da Turbigo, com entrada no Fórum e numa loja suspensa do tempo, a D.
Dehillerin, que vende tudo para casa, inclusive a poeira que os anos deixaram
em cada peça, e onde os empregados idosos e risonhos nos atendem no passo lento
que as suas figuras paternais impõem. Cheguei ao fim do dia arrasado, a perna
que os homens acariciam com lentidão e tremores excitantes ajudando a outra que
as mulheres devoram com ternura e placidez. As duas, sendo irmãs, dissimulam as
dores reinventando o prazer das caminhadas com o júbilo desconcertante do
entendimento. Hossana!
- Um pouco por toda a cidade,
manifestações contra o Código de Trabalho. Não só da esquerda de Mélenchon, mas
também dos sindicatos. Contudo, com fraca mobilização, dando assim margem a que
Chou Chou imponha os seus objectivos.
- Le Figaro foi o único jornal a dar a
notícia da nova versão do Pai Nosso, num artigo extremamente interessante e profundo
de Jean-Marie Genois. A alteração não é substancial, mas diz tudo do que pensa
a Igreja dos nossos dias e das sucessivas traduções que foram sendo feitas à
oração de Jesus Cristo. O que foi modificado foi “não nos deixes cair em tentação” por “não nos deixes entrar em tentação”. Esta nova
formulação, parece querer dizer que os fiéis não são mais a partir de agora sujeitos por Deus à tentação, mas
enquanto seres livres de escolher o
mal. Na liturgia antiga era como se Deus querendo o nosso bem, nos condenasse à
tentação do mal. A nova, por assim dizer, dá-nos a liberdade de escolher entre
o Bem e o Mal. Para se perceber a actual realidade da Igreja, cito monsenhor
Guy de Kerimel, bispo de Grenoble-Vienne: “Dieu ne tente pas, Dieu ne nous
retire pas toujours de la tentation ou de l´épreve. Il peut se servir de la
tentation pour exercer et fortificier la liberté de l´être-humain.” Complicado?
Talvez, mas é assim. Eu, contudo, prefiro o texto canónico grego e gosto
particularmente do Pai Nosso ortodoxo e da tradução que Frederico Lourenço dele
faz do grego. Parece que a raiz desta interpretação, vem de longe e reside no
verbo grego “eispherein” que pode crer dizer “submeter”, “pôr à prova”
,“tentar”. Daqui o meu eterno reconhecimento ao helenista de Coimbra.