quinta-feira, novembro 23, 2017

Quinta, 23.
Ontem subi ao meu quarto no primeiro andar da casa para dormir. Aquecido e confortável, fiquei até tarde a ler. Lá fora corria o vendaval, com chuva forte a que se juntou o barulho do mar, revolto. Agradáveis horas a ouvir aquela sinfonia de sons insubmissos, que faziam tremer as janelas, mas deixavam-me uma sensação de conforto e serenidade. Pela uma da manhã, apaguei a luz. Durante muito tempo pensei que adormecia embalado pela tempestade. Qual quê! Só pelas três da madrugada, quando, enfim, a orquestra entrou no final pianíssimo, pude mergulhar no doce feitiço do sono profundo.

         - Após o almoço que Robert nos ofereceu num restaurante simpático da Praça Hosche, deixámos a Annie no carro e fomos caminhar através das arribas selvagens, seguindo o trajecto pré-definido que limita a orientação do visitante e abre à natureza o caminho que sempre fora o seu. Antes, num café barulhento que parecia ter sido criado para receber todos os coxinhos, coitadinhos, trabalho com imensa dificuldade no romance. Não só devido ao barulho que reinava à minha volta, como ao facto de as frases não brotarem e eu ter que as refazer uma dúzia de vezes. Só ao cabo de duas horas, o cérebro pôde orientar o discurso narrativo e torná-lo consistente.
Ponta selvagem de Congel 

         - A propósito da atenção que Corregedor tem com os seus amigos, tenho algo a dizer. O João é pai de três filhos, avô, tem uma vida movimentada do ponto de vista social e político, mas nem por isso deixa de alimentar as amizades. Está sempre disponível para elas, interessa-se pelos seus problemas, ajuda no que pode, sabe, enfim, que a reciprocidade nas relações como em tudo o resto é essencial para não se cair no egoísmo e no gosto exagerado de si próprio, na solidão ainda que a dois. Sair do conforto familiar e pessoal, é essencial para que os amigos não sintam que a carroça dos momentos felizes é puzada apenas por um dos lados. Eu acredito cada vez menos naquelas e naqueles que invocam a falta de tempo, a mentira “não te queria incomodar”, “o último que telefonou fui eu” e outras figuras do egocentrismo e da falsidade que orientam as relações humanas de hoje. Quando trabalhavam atribuiam à ocupação as culpas da sua ausência; na reforma aos filhos e netos, ao papagaio e à doninha. Sem dar por isso estão sós, doentes e intoleráveis de trato. Esperam, irritados, a morte.


         - Choveu bem pela manhã, chove menos à tarde. O céu está acastelado de nuvens escuras. A maioria das belas casas de telhados em pirâmide de lousa está fechada. A cidade estival não aceita de bom grado o Inverno. Pouca gente, quase nenhum movimento, ruas vazias. Apesar disso, as ligações de barco para Belle-île-en-Mer funcionam. Ouço das janelas do meu quarto o grito da sirene a avisar os passageiros da partida.