Quinta,
23.
Ontem
subi ao meu quarto no primeiro andar da casa para dormir. Aquecido e
confortável, fiquei até tarde a ler. Lá fora corria o vendaval, com chuva forte
a que se juntou o barulho do mar, revolto. Agradáveis horas a ouvir aquela
sinfonia de sons insubmissos, que faziam tremer as janelas, mas deixavam-me uma
sensação de conforto e serenidade. Pela uma da manhã, apaguei a luz. Durante
muito tempo pensei que adormecia embalado pela tempestade. Qual quê! Só pelas
três da madrugada, quando, enfim, a orquestra entrou no final pianíssimo, pude
mergulhar no doce feitiço do sono profundo.
- Após o almoço que Robert nos
ofereceu num restaurante simpático da Praça Hosche, deixámos a Annie no carro e
fomos caminhar através das arribas selvagens, seguindo o trajecto pré-definido
que limita a orientação do visitante e abre à natureza o caminho que sempre
fora o seu. Antes, num café barulhento que parecia ter sido criado para receber
todos os coxinhos, coitadinhos, trabalho com imensa dificuldade no romance. Não
só devido ao barulho que reinava à minha volta, como ao facto de as frases não
brotarem e eu ter que as refazer uma dúzia de vezes. Só ao cabo de duas horas,
o cérebro pôde orientar o discurso narrativo e torná-lo consistente.
Ponta selvagem de Congel |
- A propósito da atenção que Corregedor
tem com os seus amigos, tenho algo a dizer. O João é pai de três filhos, avô, tem
uma vida movimentada do ponto de vista social e político, mas nem por isso
deixa de alimentar as amizades. Está sempre disponível para elas, interessa-se
pelos seus problemas, ajuda no que pode, sabe, enfim, que a reciprocidade nas
relações como em tudo o resto é essencial para não se cair no egoísmo e no gosto
exagerado de si próprio, na solidão ainda que a dois. Sair do conforto familiar
e pessoal, é essencial para que os amigos não sintam que a carroça dos momentos
felizes é puzada apenas por um dos lados. Eu acredito cada vez menos naquelas e
naqueles que invocam a falta de tempo, a mentira “não te queria incomodar”, “o
último que telefonou fui eu” e outras figuras do egocentrismo e da falsidade
que orientam as relações humanas de hoje. Quando trabalhavam atribuiam à
ocupação as culpas da sua ausência; na reforma aos filhos e netos, ao papagaio e
à doninha. Sem dar por isso estão sós, doentes e intoleráveis de trato. Esperam,
irritados, a morte.
- Choveu bem pela manhã, chove menos à
tarde. O céu está acastelado de nuvens escuras. A maioria das belas casas de
telhados em pirâmide de lousa está fechada. A cidade estival não aceita de bom
grado o Inverno. Pouca gente, quase nenhum movimento, ruas vazias. Apesar disso,
as ligações de barco para Belle-île-en-Mer funcionam. Ouço das janelas do meu
quarto o grito da sirene a avisar os passageiros da partida.